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SÃO PAULO – A pandemia desencadeou uma série de problemas nas cadeias mundiais de abastecimento. Suspensão da produção em fábricas, redução de mão de obra disponível por causa da doença, quarentenas e interrupção do funcionamento de terminais marítimos, frente a um forte aumento da demanda global, têm contribuído para escassez de produtos e aumento da inflação em diversos países.
Nos últimos meses, o transporte marítimo virou o grande foco de tensão, pois a Covid-19 exacerbou gargalos de logística que afetam fornecedores e mercados aos redor do mundo, e causam um efeito em cascata a longo das cadeias produtivas. No mês passado, por exemplo, o terminal Meishan, no porto de Ningbo-Zhoushan, na China, passou duas semanas fechado depois que um funcionário testou positivo para Covid-19.
Trata-se do terceiro maior porto do mundo em movimentação de contêineres, e a paralisação ocorreu num momento em que há escassez de contêineres no mercado internacional. Em meados de agosto, cerca de 350 embarcações porta-contêineres estavam paradas em portos ao redor do globo aguardando embarque ou desembarque.
A China tem adotado um política de tolerância zero com a Covid-19, frente ao risco de um recrudescimento da pandemia com o avanço da variante Delta. Em maio, casos da doença provocaram paralisação no porto de Yantian, em Shenzhen, no país asiático. O transporte marítimo ainda sofreu o impacto do encalhe do navio Evergreen no Canal de Suez, em março.
Do lado da oferta, o congestionamento está na Ásia, especialmente na China. Já do lado da demanda, o problema se concentra principalmente nos Estados Unidos, mas também na Europa. Os asiáticos são os grandes fornecedores de insumos e produtos acabados, e os norte-americanos e europeus, os compradores. Houve aumento significativo do custo do frete, atrasos nas entregas e há receio de desabastecimento nos EUA.
O valor médio do frete internacional em contêineres de 40 pés está acima de US$ 10 mil, segundo o World Conteiner Index da consultoria Drewry, enquanto antes da pandemia variava de US$ 1,2 mil a US$ 2 mil. De acordo com a empresa, o indicador subiu por 21 semanas consecutivas até a última quinta-feira (9).
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O transporte de carga de Xangai, na China, para Nova York, nos EUA, e Roterdã, na Holanda, custa hoje muito mais do que a média mundial, acima de US$ 15 mil e US$ 14 mil, respectivamente, informa a Drewry. Empresas disputam espaço em contêineres no mercado à vista (spot), o que faz os valores subirem ainda mais.
“Estamos vivendo uma crise global de oferta e demanda, e uma desorganização sem precedentes do comércio internacional”, disse o diretor do Departamento de Transportes da Fundação Getulio Vargas (FGV), Marcus Quintella.
Queda profunda, retomada rápida
O comércio internacional sofreu depressão nos primeiros meses da pandemia, mas voltou a crescer mais rapidamente do que se esperava, já em junho de 2020. Essa dinâmica atrapalhou o fluxo normal de contêineres, que estavam em falta em localidades importantes na época da retomada.
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“Os contêineres ficaram presos em muitos portos e não conseguiram sair”, observou o economista Michel Alaby, consultor de comércio exterior. Da mesma forma, navios foram tirados de circulação em função da baixa demanda e não estavam disponíveis para entrar imediatamente em operação. Some-se a isso as restrições nos portos e embarcações em quarentena por causa da Covid.
A injeção de recursos na economia global por pacotes de auxílio emergencial, mudanças nos hábitos de consumo e avanço do comércio eletrônico impulsionaram o crescimento da demanda. É o que ocorre atualmente no Hemisfério Norte, com o início do ano letivo e a formação de estoque para datas festivas até o final do ano.
“A notícia positiva é a reabertura do porto de Ningbo, na China. A paralisação trouxe uma perturbação adicional que teve reflexo no frete”, afirmou Matheus de Castro, especialista em Infraestrutura da Confederação Nacional da Indústria (CNI). “Mas o momento ainda é delicado”, acrescentou.
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E por aqui?
O Brasil sofre os efeitos na forma de demora nas entregas, cancelamentos e aumento do preço do frete. Embora por aqui não haja tanto receio de desabastecimento, o custo do transporte é repassado para o produto e pesa no bolso do consumidor, num momento em que a inflação está em alta.
A indústria e o varejo não esperam falta generalizada de mercadorias, com exceção da indústria automobilística. Várias montadoras instaladas no País anunciaram recentemente suspensão da produção por falta de semicondutores (chips) e outros componentes.
“O setor caminha para a digitalização, para a conectividade. Este é um movimento que começou a crescer de maneira mais ampla no período da pandemia”, explicou Antônio Jorge Martins, especialista em gestão estratégica de empresas automotivas da FGV. “E foi mais afetado porque não tem tradição de compras tão grandes de semicondutores”, destacou.
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As montadoras tiveram que competir por componentes tecnológicos com outras indústrias, como as de eletroeletrônicos e de informática, que são clientes tradicionais dos fabricantes destes insumos e não interromperam as encomendas durante a pandemia, como ocorreu com o segmento automotivo.
É que a indústria automobilística trabalha com baixos estoques, ao contrário de outros setores. Quando precisou, não encontrou produtos disponíveis. Isso não é exclusividade do Brasil. A Toyota, por exemplo, anunciou em agosto a suspensão da produção em 14 fábricas no Japão.
Na mão contrária, os fabricantes de eletroeletrônicos aproveitaram para encomendar mais componentes, depois de um período de escassez no início da pandemia. Vale lembrar que o segmento de computadores, celulares e tablets viu a demanda crescer na esteira do isolamento social, do trabalho remoto e do comércio eletrônico.
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“O setor sofreu com a falta de componentes já em fevereiro de 2020, com a paralisação da fabricação na China, mas com a queda das compras pela indústria automobilística, nós a substituímos e conseguimos aumentar a produção de equipamentos”, contou o presidente da Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica (Abinee), Humberto Barbato.
A mesma lógica vale para a indústria de eletrodomésticos. “Para ficar em casa com mais conforto, as pessoas compraram mais eletrodomésticos”, disse o presidente executivo da Associação Nacional de Fabricantes de Produtos Eletroeletrônicos (Eletros), Jorge Nascimento.
Para este segmento, a escassez de componentes ocorreu também em 2020, mas faltaram mais insumos nacionais do que importados, como aço, plástico e papelão para embalagens. “A cadeia não acompanhou a produção final”, declarou Nascimento, acrescentando que o mercado voltou a se normalizar a partir do primeiro trimestre de 2021.
O setor de brinquedos também não relata escassez de componentes no momento, com exceção de chips para algumas bonecas com movimento. “A produção de brinquedos está a todo o vapor para a Semana da Criança”, afirmou o presidente da Associação Brasileira dos Fabricantes de Brinquedos (Abrinq), Synésio Batista da Costa. Ele ressalta que o segmento começou a fabricar os produtos para a data em junho, portanto as encomendas de componentes tinham ocorrido anteriormente.
Para o Natal, porém, há dúvidas. “Se considerada a fotografia de hoje, então sim, é possível [haver desabastecimento], mas é tudo muito dinâmico, a situação pode ou não ser resolvida”, destacou.
Não falta, mas encarece
Mas o aumento do valor do frete já teve impacto nos preços dos produtos finais. Altair Baptista, diretor da TFA Cargo, agente de cargas, conta que o custo médio do transporte da China para Santos (SP) saiu de cerca de US$ 1 mil antes da pandemia para US$ 11 mil atualmente, no caso de contêineres de 20 pés, e de US$ 2 mil para US$ 13 mil nos de 40 pés.
Da China para Manaus, no Amazonas, onde se concentram indústrias de eletroeletrônicos, o valor chega a US$ 23 mil para contêineres de 40 pés. “Com certeza isso vai para os preços dos produtos”, comentou Baptista.
Nascimento, da Eletros, relata que os preços de eletrodomésticos aumentaram de 10% a 15% este ano, em média, em parte por causa dos insumos. “Não sabemos se vão ocorrer novos aumentos neste segundo semestre. Houve um crescimento real do custo de produção no Brasil, mas estamos fazendo um esforço para não aumentar novamente”, observou.
Na mesma linha, Barbato, da Abinee, diz que em seu setor o faturamento global de 2020 subiu cerca de 14% em termos reais, o que revela avanço dos preços em função dos custos. Costa, da Abrinq, afirma que os custos também já foram absorvidos na indústria de brinquedos.
Na indústria automobilística, porém, novos reajustes podem ocorrer. De acordo com Martins, da FGV, mesmo com falta de modelos no mercado brasileiro, há pressão das matrizes das montadoras pela geração de lucros nas subsidiárias.
E agora há outros fatores que podem pesar sobre os preços, conforme Marcel Solimeo, economista-chefe da Associação Comercial de São Paulo (ACSP). É o caso da conta de energia elétrica, mais cara em função da crise hídrica. Ele recomenda que quem puder antecipar as compras de final de ano deve fazê-lo para não correr o risco de pagar mais caro daqui a alguns meses, ou até de não achar o produto. “Mas não correr para fazer estoques”, observou.
Atrasos e cancelamentos
Outro problema causado pelos gargalos marítimos é o atraso nas entregas e cancelamentos. Da China para o Brasil, de acordo com Baptista, os atrasos nos embarques vão de duas semanas a um mês e meio além do prazo normal, sem contar o tempo do navio no mar. A situação começou a se agravar há cerca de quatro meses, segundo ele.
O Brasil sai perdendo na preferência dos armadores em relação ao Hemisfério Norte. O mercado brasileiro representa apenas 1% da movimentação mundial de contêineres, e importa mais produtos desta forma do que exporta, o que faz com que equipamentos cheguem cheios ao Brasil, mas voltem vazios aos portos de origem.
“Os armadores preferem as rotas para os Estados Unidos e Europa, para onde os contêineres vão e voltam cheios”, observou Quintella, da FGV. Castro, da CNI, afirma que a entidade havia identificado “problemas de concentração” entre as empresas de navegação antes da pandemia. “Há uma briga global pela capacidade disponível de navios e contêineres com os Estados Unidos e a Europa, e as empresas vão para as rotas mais rentáveis”, comentou.
Quando tudo voltará ao normal?
A indústria não espera uma recuperação rápida da logística internacional. A avaliação é que algum grau de normalidade pode ser atingido até o final deste ano ou início do próximo, mas há muitas incertezas no horizonte, principalmente o receio de um recrudescimento da pandemia.
Problemas estruturais com certeza não serão resolvidos em curto prazo, pois exigem iniciativas que tomam tempo, como ampliação de portos, aumento da disponibilidade de contêineres e navios, e avanço da capacidade de fábricas.
“São questões que não se resolvem rapidamente. A expectativa é ir superando gradativamente um gargalo depois do outro. Com a redução da pandemia, os canais vão voltado à normalidade, mas não simultaneamente”, ressaltou Solimeo.
O cenário leva as empresas a buscarem alternativas. Barbato relata que 73% das associadas à Abinee foram atrás de novos fornecedores, depois da escassez no início da pandemia. Em alguns casos, se o frete de importação sobe muito, vale à pena passar a produzir a mesma mercadoria no Brasil. Costa diz que a indústria de brinquedos, por exemplo, tem condições de fazer isso.
Larry Carvalho, advogado que atua no ramo de navegação, acrescenta que algumas empresas passaram a comprar produtos de outras origens, ao invés da Ásia, para fugir dos fretes inflacionados. Ele citou como exemplo o vidro do Egito. Embora a China siga como maior fornecedora de vidros do Brasil, as importações do país árabe cresceram quase quatro vezes de janeiro a agosto de 2021, em comparação com o mesmo período de 2020, para mais de US$ 9 milhões, segundo dados do Ministério da Economia.
O advogado ressalta a importância de exportadores e importadores terem planos alternativos. Ele destacou as frutas do Nordeste, que podem estragar no porto em caso de atrasos. “O mercado tem que estar atento”, declarou.
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