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SÃO PAULO – Muita água ainda deve rolar em relação à reforma tributária que o governo federal encaminhou ao Congresso, no último dia 21 de julho. Mas pelas impressões iniciais, especialistas já avaliam que a proposta é tímida e deve afetar em cheio os serviços e a classe média.
Entre os principais méritos, economistas e tributaristas ouvidos pelo InfoMoney citam a tentativa de simplificar o atual sistema tributário. Um segundo ponto positivo seria o fato de a reforma ter sido apresentada como projeto de lei, o que garante abertura para amplas discussões e ajustes durante a sua tramitação.
O material foi entregue pessoalmente pelo ministro Paulo Guedes aos presidentes do Senado, Davi Alcolumbre, e da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia. O gesto, simbólico, representaria a tentativa de alinhamento da peça do Poder Executivo à Proposta de Emenda Constitucional (PEC 45), originária da Câmara, e à PEC 110, proposta pelo Senado.
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Baseada na fusão do PIS e da Cofins, a primeira parte da reforma tributária governamental cria a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), imposto de valor agregado com alíquota única de 12% para todos os setores.
Diante das PECs 45 e 110, que propõem também a unificação de tributos estaduais e municipais, como o ICMS e o ISS, a reforma do governo parece acanhada. Mas alguns tributaristas destacam como acertada a estratégia do governo de focar esta fase inicial na fusão de dois impostos federais, como o PIS e Cofins.
Os especialistas preveem um longo debate envolvendo os governadores dos 26 estados e o Distrito Federal e prefeitos de mais de cinco mil municípios, durante as discussões sobre medidas envolvendo impostos estaduais e municipais. E apostam num processo menos acalorado com os tributos sob jurisdição federal, neste início de processo.
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Proposta parcelada
Sem uma ideia global da reforma, os tributaristas dizem ser difícil avaliar quem sai ganhando ou perdendo, efetivamente.
Para o professor de finanças do Insper, Michael Viriato, está cedo para falar com exatidão sobre os reflexos para a população. “Hoje, olhando a proposta parcelada, pegando somente o que foi anunciado, o setor de serviços tem uma elevação considerável, mas ainda não se tem uma ideia do todo”, ressalta. Na visão dele, é precipitado falar em aumento de imposto se ainda não há certeza do que vai ser proposto.
Viriato diz que o ministro Guedes garantiu, e que deputados também seguem na mesma linha, que haveria uma redução e uma simplificação da tributação. “A gente precisa entender ainda onde está essa redução, que não está clara.”
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Veja a seguir alguns dos principais impactos dos pontos apresentados pelo governo até o momento.
1) Simplificação para empresas
O advogado tributarista Samir Choaib concorda que neste primeiro momento é difícil mensurar o impacto, em termos de economia ou aumento de carga, mas ele lembra que o discurso do governo indica que a reforma tributária coloca como foco inicialmente a redução da tributação da pessoa jurídica e aumento da pessoa física. “Esta primeira etapa, envolve apenas pessoa jurídica e dois impostos.”
O tributarista afirma que a reforma não visa apenas a questão financeira do imposto, mas também toca numa questão discutida há tempos, o chamado “custo Brasil”. “A simplificação vai ajudar no controle e em toda a estrutura complexa que as empresas atualmente precisam ter para calcular os impostos”, diz, apesar de ressaltar que a simplificação também está em fase embrionária.
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“Idealmente, seria melhor uma reforma total, completa e estrutural. Mas também sabemos o quão traumática seria e quanto demoraria para acontecer”, afirma o economista, professor e coordenador do MBA da Fundação Instituto de Pesquisas Contábeis, Atuariais e Financeiras (Fipecafi), Alexandre Evaristo. Para ele, a opção do governo em propor pequenas reformas é positiva.
O professor da Fipecafi diz que, segundo apregoa o governo, neste primeiro momento acontece a criação da contribuição de bens e serviços. Numa segunda etapa, haveria a eliminação do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), que incide sobre a indústria, e a criação de um imposto seletivo. Depois, num outro momento, com a reforma do Imposto de Renda, aconteceria a tributação de dividendos.
2) Imposto digital e o retorno da CPMF
Do que se conhece da proposta de reforma tributária do governo, até agora, o ponto mais polêmico, segundo Evaristo, é a criação de um imposto parecido com a CPMF para compensar a desoneração da folha de pagamentos. O extinto imposto sobre transações financeiras vigorou entre 1997 e 2007, em meio a críticas generalizadas por parte da sociedade civil e o empresariado.
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O ministro Paulo Guedes já disse que deve criar um ‘microimposto digital’ e o presidente Jair Bolsonaro deu sinal verde para o novo imposto nos últimos dias. O novo tributo teria alíquota de 0,2%, e recairia sobre todo tipo de transação digital, como compras de débito, crédito e pagamentos online.
Economistas e tributaristas já apelidam o novo imposto de “CPMF digital” e criticam a ideia ao alegar que países desenvolvidos já não utilizam tributos que incidem sobre todas as etapas do processo produtivo e do consumo. Tributar todas as transações digitais seria uma forma “preguiçosa” de resolver problemas tributários.
Outros dizem ainda que o novo imposto digital não veio para compensar a desoneração da folha, mas, sim, para financiar o novo programa social do governo, o Renda Brasil.
Para rebater a ideia de que o novo imposto seria o retorno da CPMF, Guedes defende que apenas pagamentos eletrônicos serão tributados, cheques, saques e depósitos, que eram tributados pela CPMF, ficariam de fora – mas vale lembrar que são meios em desuso no mundo atual.
O professor da Fipecafi acredita que o novo imposto pode facilitar a arrecadação e garantir sonegação quase zero, mas avalia que é um tributo desigual porque não enxerga a capacidade contributiva de cada cidadão e olha só para a transação nominal que, muitas vezes, não chega a refletir algum tipo de venda.
O especialista acrescenta que o tributo vai na contramão da inclusão de mais brasileiros no sistema bancário, incentivada nos últimos anos pelas fintechs. “Ao aumentar o custo dessas transações para pessoas físicas de menor capacidade contribuitiva, elas podem se ver obrigadas a sair do sistema bancário”, diz Evaristo.
3) Serviços mais caros
Outro ponto que gerou críticas é a unificação do PIS e da Cofins, que se transformariam na CBS, com alíquota de 12% – o assunto gerou uma grita do setor de serviços. A unificação é positiva, mas a alíquota é preocupante, segundo os especialistas, porque vai mais do que triplicar a alíquota atual do setor de serviços que é de 3,65% no regime cumulativo.
Com um aumento de 8,35 pontos percentuais entre a alíquota atual e a que está em gestação no pacote tributário do governo Bolsonaro, o impacto vai ser gigantesco. Tamanha diferença de tributos vai impactar principalmente os custos para a classe média, que está tendo de enfrentar redução de salário e demissão em tempos de pandemia.
Evaristo avalia que essa alíquota de 12% fica bem alta. “É um aumento de carga bastante significativo. Serviços como educação, saúde, transportes, telecomunicações, advocacia, entre outros vão ficar bem mais caros”, diz.
O professor conta que a resposta do governo para essa questão é que, no setor de serviços, quem está à frente do consumidor na ponta final, geralmente está no Simples. “E esse tributo não será alterado com a CBS”, lembra o professor.
Ele ressalta que o governo, no discurso, garante que a reforma não vai aumentar a carga tributária. “Mas não traz estudos que comprovem isso.” Ele diz que, historicamente, todas as reformas tributárias que passaram a vigorar, resultaram em aumento. “E o setor de serviços é a bola da vez”, afirma.
4) Classe média afetada
O cabeleireiro e o dentista, por exemplo, não vão pagar os 12% da CBS. No entanto, o impacto vai recair sobre empresas de serviço de médio porte, que prestam serviços para o consumidor final e não estão no Simples.
Grandes colégios e universidades, hospitais, clínicas médicas, advogados etc. costumam estar nesse rol. Sem ter como absorver os custos de tamanha mordida do governo federal, a conta certamente chegará aos clientes pessoas físicas, que são obrigados a consumir esses serviços, muitos dos quais essenciais na vida das pessoas.
No Brasil, caso o consumidor queira um pouco mais de qualidade e eficiência em serviços básicos, que deveriam ser a contrapartida da elevada carga tributária, tem que botar a mão no bolso. Educação, saúde, transporte privados, entre outros itens do cotidiano, consomem 70% da renda dos pais de família de classe média.
“Essas empresas de serviço que não estão no Simples trocam uma tributação que hoje é regime cumulativo de 3,65% por uma da CBS que vai ser de 12%”, calcula o professor. Segundo ele, esse é um segmento que vai ter um impacto relevante na carga tributária.
Mas, segundo Evaristo, qualquer política fiscal passa pelo dilema entre optar pela simplicidade e eficiência ou maior equidade. “Quanto mais se olha para as particularidades de cada contribuinte, mais o sistema tributário se torna complexo. É um desafio, e o governo optou pela simplicidade”, diz.
Uma das críticas à CBS é que o governo parte da premissa de que as empresas conseguem repassar ao consumidor o aumento de tributo, sem afetar o lucro. “Isso é uma meia-verdade, porque vai depender muito das condições do mercado para poder fazer esse repasse”, frisa o professor da Fipecafi, que alerta também sobre o risco inflacionário.
5) Tributação de dividendos
Nesta primeira etapa ainda não foram incluídas mudanças envolvendo a tributação de dividendos (lucros das empresas, distribuídos a investidores), mas integrantes da equipe econômica já mencionaram que existe essa intenção em diferentes ocasiões.
“A impressão que dá é que a isenção de dividendos está com os dias contados”, avalia o professor da Fipecafi. Segundo ele, a maior parte dos países tributa os dividendos, e o Brasil tem sido exceção no mundo.
Evaristo argumenta que a tributação de dividendos deveria ser feita com redução do Imposto de Renda de Pessoa Jurídica, caso contrário vai gerar aumento da carga tributária. “Não faz sentido aplicar o IRPJ e a CSLL [Contribuição Social sobre Lucro Líquido], que combinados, hoje, chegam a uma alíquota de 34% e ainda assim tributar a distribuição dos dividendos com Imposto de renda na fonte”, explica.
6) Imposto de Renda
Outra questão considerada polêmica diz respeito às mudanças que o governo pode propor sobre o Imposto de Renda de Pessoas Físicas. A ideia seria eliminar algumas deduções hoje autorizadas, como despesas médicas e educação.
Para compensar a eliminação desses mecanismos que garantem pagar menos imposto de renda ou restituir o imposto cobrado a mais, o governo pode reduzir para 25% a alíquota máxima de IR, que atualmente está em 27,5%, conforme afirmou o assessor especial do Ministério da Economia, Guilherme Afif Domingos, ao portal G1.
“As deduções de gastos com saúde e educação são permitidas porque o governo não dá condições básicas para esses serviços”, critica o advogado tributarista Samir Choaib, que defende que educação e saúde são direitos fundamentais do cidadão. “O governo devia manter as deduções e corrigir a tabela. A falta de correção na tabela é aumento disfarçado da carga tributária”, diz.
Ao G1, Afif Domingos disse que o aumento na faixa de isenção do Imposto de Renda está em discussão. Atualmente, são isentos os trabalhadores que ganham até R$ 1.903,99 mensais e, com a proposta, seriam isentos os salários de até cerca de R$ 3 mil.
“A correção da tabela é um elemento importante. O governo não deveria tributar o mínimo existencial”, afirma Evaristo, da Fipecafi. Ele diz que, quando se vincula esse mínimo em termos nominais, se perde a noção do tempo com relação à inflação.
O professor de Finanças do Insper Michael Viriato tem opinião diferente sobre as deduções. Segundo ele, algumas pessoas seriam beneficiadas com a eliminação das deduções do IR e outras penalizadas. “Eu, por exemplo, seria beneficiado. Não tenho filho, nem gasto com educação e saúde. Para mim, seria muito bom.” Segundo Viriato, seja qual for a alteração, alguém sempre vai sair insatisfeito.
A economista e pesquisadora da Fipe, Maria Helena Zockun, defende que se acabe com todos os abatimentos e com o limite de isenções, “e que todo mundo pague o IR”. Ela propõe utilizar o Imposto de Renda para eliminar as contribuições trabalhistas. “Já que a população inteira contribui, que se utilize o Imposto de Renda para financiamento da previdência. Todos pagam Imposto de Renda”, diz.