Pandemia complica ainda mais os balanços de Uber e 99. É possível tornar esse modelo de negócios viável?

Em tempos incertos, apps reduziram margens para continuar atraindo motoristas. Se bem sucedido, esforço pode levar à lucratividade depois da tempestade

Mariana Fonseca

Logo do aplicativo da Uber em celular (Shutterstock)
Logo do aplicativo da Uber em celular (Shutterstock)

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SÃO PAULO – De um lado, usuários com dificuldades em encontrar um motorista. Do outro, profissionais autônomos que não conseguem lucrar com as corridas devido aos custos crescentes no país. Esse é o cenário que os aplicativos de mobilidade Uber e 99 vêm enfrentando no país nos últimos meses.

Para solucionar esses problemas, 99 e Uber (U1BE34) anunciaram na última semana que uma porcentagem maior do valor das corridas irá aos motoristas – e sem mudar o preço pago pelos passageiros. Os reajustes anunciados variam entre 10% e 35%.

A boa notícia para passageiros e motoristas, no entanto, impacta diretamente nas já problemáticas margens desses aplicativos e faz especialistas questionarem: afinal, esse modelo de negócios é viável? É possível garantir que motoristas recebam bons retornos e que usuários tenham motoristas disponíveis? Quando esses aplicativos conseguirão ter lucro? O Do Zero ao Topo, marca de empreendedorismo do InfoMoney, foi atrás dessas respostas.

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A luta pela liquidez

Questionados sobre o assunto, Uber e 99 defenderam ao Do Zero ao Topo que os reajustes recentes foram necessários em prol da liquidez, uma métrica conhecida de todo marketplace. Ter liquidez é apresentar uma proporção de fornecedores e consumidores suficiente para garantir que tanto ofertas quanto visitas virem transações. No caso dos apps de mobilidade urbana, que seus motoristas tenham passageiros e vice-versa.

“99 e Uber são marketplaces complexos, porque sua liquidez deve acontecer em uma grande escala e em diversas regiões”, afirma Fábio Barcellos, cofundador da empresa de renda extra para motoristas de aplicativo Mobees. “O serviço ficou ruim para o usuário pela indisponibilidade de profissionais, e insatisfação não é um bom para negócios que dependem de liquidez. Existe um interesse em reequilibrar demanda e oferta do marketplace, ainda que temporariamente e por conta de uma conjuntura ruim.”

Vinicius Araujo, analista internacional na XP Investimentos, ressalta que não é a primeira vez que a Uber tem de ampliar temporariamente seus repasses para garantir liquidez. Nos Estados Unidos, a demanda por corridas voltou a partir do segundo trimestre deste ano. A empresa teve de abaixar as comissões para equilibrar essa procura com uma boa oferta de motoristas. As comissões caíram de 25,8% no segundo trimestre de 2020 para 18,7% no mesmo período de 2021.

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Enquanto a falta de motoristas por aqui está ligada ao aumento dos combustíveis, o mercado americano enfrenta um problema ligado diretamente as pessoas. “Lá existe outro problema, de mão-de-obra. Está difícil conseguir novos motoristas com empresas como Amazon e McDonald’s promovendo aumentos salariais”, afirma Araujo.

Para a Associação dos Motoristas de Aplicativo de São Paulo (Amasp), no entanto, o reajuste adotado pelos aplicativos no mercado local não ameniza a situação dos motoristas, “levando em consideração os nove aumentos que tivemos neste ano de 2021 nos combustíveis, totalizando 51% de aumento”. Segundo a associação, houve um congelamento das tarifas para os motoristas desde 2015, até dias atrás, para um reajuste “variável de 10% até 35%”.

“Estamos recebendo várias reclamações dos motoristas de que não estão vendo esse aumento no seu dia a dia. Foi dado o reajuste, mas, por outro lado, foi diminuída a tarifa dinâmica. (…) E não são todas as viagens que têm esse acréscimo. Para o motorista obtê-la, necessita de vários critérios, como dia, local, hora, data e demanda.”

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A lucratividade ficou mais distante?

Por anos, aplicativos de mobilidade como Uber e 99 adotaram o discursos de abrir mão do lucro para se consolidarem no país e criaram novos hábitos. Em agosto de 2019, a Uber tinha 69% de participação de mercado do país, enquanto a 99 tinha 24%, segundo uma pesquisa feita pela Mobile Time. As outras concorrentes detinham os 7% restantes. Mas, no momento em que as duas pareciam bem consolidadas, a pandemia atrapalhou o lucro.

Além da possibilidade de o marketplace não ser líquido o suficiente, os repasses maiores anunciados agora deixam mais distante a esperada lucratividade consistente, pelo menos no curto prazo.

A 99 é uma empresa privada, então não divulga consistentemente seu balanço financeiro. “Podemos comentar que, desde novembro de 2020, a 99 já observa um retorno de 100% no volume de viagens. Em 2021, esse volume continua crescendo justamente pela volta ao trabalho presencial e a reabertura de vários setores”, afirmou a 99 no comunicado enviado ao Do Zero Ao Topo.

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“Solicitamos uma pesquisa para o Datafolha que apontou que 31% das pessoas da classe C começaram a usar o aplicativo durante a pandemia e 77% dos nossos usuários pretendem manter ou aumentar as solicitações de corridas por aplicativo mesmo com o fim da pandemia.”

Em 2020, a 99 afirma ter investido mais de R$ 150 milhões no lançamento de novos produtos, em novos recursos de segurança e em suporte aos motoristas parceiros. “A nossa estratégia de crescimento para este ano se mantém inalterada e está centrada na eficiência, capilaridade e sustentabilidade do negócio, bem como no impacto positivo na sociedade”, escreveu a empresa.

A Didi Chuxing, gigante chinesa que comprou o aplicativo de mobilidade urbana em 2018, prepara-se para uma oferta pública inicial de ações (IPO) ainda para 2021. Por isso, falou sobre seus números do primeiro trimestre em um F-1. O formulário serve para registrar ativos estrangeiros na Securities and Exchange Comission (SEC), a CVM dos Estados Unidos.

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Sua frente internacional reúne operações em 14 países, com destaque para Brasil e México. Essa frente apresentou crescimento médio anual de 63,5% em usuários ativos, no período de março de 2019 até março de 2021. A receita foi de US$ 123 milhões no primeiro trimestre deste ano, alta de cerca de 5% ante o mesmo período de 2020. Mas a frente internacional é uma fatia pequena do resultado total da Didi Chuxing, que apresentou receita de US$ 6,4 bilhões e um lucro de US$ 837 milhões no primeiro trimestre de 2021. No primeiro trimestre de 2020, a companhia havia reportado prejuízo de cerca de US$ 605 milhões.

Neste mês, a agência de notícias Bloomberg reportou um possível investimento público na Didi Chuxing pela municipalidade de Beijing, com o objetivo de estatizar a companhia. A Didi Chuxing negou a informação e afirmou estar em cooperação com reguladores para uma revisão de sua cibersegurança. “Por parte de consumidores e investidores, existem preocupações com um possível monopólio e com uso de dados pessoais”, diz Nobre.

Já a Uber é uma companhia aberta na Bolsa de Valores de Nova York (NYSE). A companhia afirma que pretende atingir um Ebitda positivo até o último trimestre de 2021. “O mercado estava esperando um Ebitda positivo para o segundo trimestre, que não veio. Os incentivos no mercado americano afetaram o potencial de lucro da companhia”, diz Araujo, analista da XP.

A Uber apresentou uma receita de US$ 3,9 bilhões no segundo trimestre de 2021, alta de 105% sobre o mesmo período de 2020. Apenas a América Latina apresentou receita de US$ 307 milhões, aumento de 47%. Porém, o Ebitda da Uber ficou negativo em US$ 509 milhões no período. Mesmo assim, o resultado veio melhor do que no mesmo período de 2020, tal como a Didi Chuxing. A Uber havia apresentado um Ebitda negativo de US$ 837 milhões no segundo trimestre de 2020.

A lucratividade foi afetada não apenas pelos repasses maiores aos motoristas, mas também pelo investimento em outras frentes. Durante a pandemia, tanto 99 quanto Uber apostaram em alternativas de serviços, como carteiras digitais e entregas de refeições, de supermercado e de última milha de e-commerce.

“É uma maneira de dar mais opções aos motoristas diante de um problema de logística no país e uma demanda dos usuários por conveniência. O delivery também permite mais ampliações das taxas cobradas dos usuários, em comparação com as corridas. Depois de uma fase de taxas grátis para estimular a adoção, os consumidores se acostumam a pagar mais pela conveniência”, diz Barcellos, da Mobees.

A diversificação pode ser uma saída para garantir receitas de diversas fontes. Por outro lado, pede menos foco e mais investimentos. “A Uber é um player dominante na parte de logística de passageiro, mas tem uma margem pequena com esse negócio. Por outro lado, existem mais concorrentes locais no delivery, desde iFood no Brasil até DoorDash nos Estados Unidos. A Uber terá de criar ainda mais incentivos para pegar esses mercados”, diz Araujo.

Para Nobre, o foco em apenas uma indústria e uma geografia acabou beneficiando a concorrente Lyft. A empresa americana de mobilidade urbana reportou um Ebitda ajustado positivo de US$ 23,8 milhões no segundo trimestre de 2021. “A expansão para vários setores, enquanto o primeiro não é lucrativo, pede mais contração de dívida. Há quem ache melhor arrumar a casa primeiro para depois crescer mais, como o Lyft aparentemente tem feito”, concorda Araujo.

O analista internacional ressalta que riscos regulatórios são outra preocupação para o balanço financeiro dessas empresas. “A questão de se os trabalhadores são autônomos ou funcionários gera muita instabilidade. Na Europa, as conclusões têm sido ruins para a Uber, dando direitos trabalhistas previstos na constituição aos autônomos. Prevendo essa escalada regulatória, talvez esses incentivos aos motoristas sejam uma forma de aumentar a satisfação dos profissionais. Resolver a questão trabalhista é muito difícil, mas reduz seus riscos”, diz Araujo.

“99 e Uber se estabeleceram e os números melhoram mesmo em um momento bem desafiador. Essas empresas estão resolvendo seu dilema de perder dinheiro para criar hábitos. Agora que hábitos já se criaram e que está provado que o mercado é atraente e viável para escala, não dá para continuar no prejuízo. São empresas com acesso à capital, então dificilmente existirá um ponto em que o negócio se torne inviável. Mas todo mundo que está no negócio quer ver ele ficar no positivo. Até que os números venham consistentemente azuis, o debate sobre lucratividade continua”, resume Barcellos.

Ações em baixa

Nos Estados Unidos, além das questões relacionadas à pandemia e da regulação, o Uber enfrenta a crise dos semicondutores, que impacta a indústria automotiva e encarece os carros comprados ou alugados pelos motoristas.  “São riscos significativos, e por isso a ação tem caído bastante”, diz Araujo.

No ano, as ações da Uber apresentam queda de 22,72%. Cada papel está cotado em US$ 39,52 na Bolsa de Valores de Nova York (NYSE) às 18h30 desta quinta-feira (16), horário de Brasília.

A Didi Chuxing começou a negociar American Depository Receipts (ADR), ou recibos de ações de empresas não americanas negociados nos Estados Unidos, em 30 de junho deste ano. Desde então, os recibos apresentam queda de cerca de 42%. O ADR está sendo negociado a US$ 8,19 às 18h30 desta quinta-feira, horário de Brasília, também na NYSE.

Os analistas internacionais colocam a chegada dos carros autônomos como um possível ponto positivo para os próximos balanços das empresas de mobilidade urbana. “É uma questão de ‘quando’, e não de ‘se’ vai acontecer. As empresas de tecnologia continuam fazendo aportes relevantes em automóveis autônomos”, diz Araujo. “Os veículos já estão circulando em áreas delimitadas, então são testes em estágio avançado”, concorda Nobre.

Alguns exemplos de empresas investidoras são Alibaba e Google. A gigante chinesa liderou uma rodada de investimentos de mais de US$ 300 milhões na startup de direção autônoma chinesa DeepRoute.ai. Já a gigante americana criou uma divisão de carros autônomos que depois virou empresa separada: a Waymo.

A Didi Chuxing criou sua frente de carros autônomos desde 2016, que virou empresa independente em 2019. Enquanto isso, a Uber vendeu sua divisão de carros autônomos e decidiu investir na empresa do ramo Aurora. “A Uber tem problemas para financiar sua principal operação, então quem dirá combater outros players com capital completamente focado nessa empreitada por carros autônomos”, explica Araujo. No meio de uma tempestade, as empresas de mobilidade urbana precisam escolher seus melhores botes.

Mariana Fonseca

Subeditora do InfoMoney, escreve e edita matérias sobre empreendedorismo, gestão e inovação. Coapresentadora do podcast e dos vídeos da marca Do Zero Ao Topo.