Agora na Netflix a regra é ter regras

Cenário de incertezas e necessidade de mudança do modelo de negócios são testes de fogo para a cultura ágil e flexível da Netflix

Silvio Genesini

Importante: os comentários e opiniões contidos neste texto são responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a opinião do InfoMoney ou de seus controladores

Reed Hastings, fundador da Netflix (Divulgação)
Reed Hastings, fundador da Netflix (Divulgação)

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Os resultados do primeiro trimestre da Netflix não só fizeram o preço da sua ação despencar como chacoalharam os alicerces da sua cultura corporativa. Não é demais lembrar que a Netflix tem uma das culturas mais elogiadas e debatidas do mundo empresarial atual. Foi objeto de um livro recente chamado A Regra é Não Ter Regras, do seu fundador e CEO Reed Hastings com a consultora Erin Meyer. Como o próprio nome diz, a cultura foi desenvolvida, no curso de vários anos, para gestar um ambiente de liberdade e responsabilidade. Nele, o CEO vangloria-se de passar vários meses sem que precise tomar decisão nenhuma. O que significa, obviamente, que as decisões são tomadas em todos os níveis da organização. Uma organização, portanto, descentralizada, flexível e ágil. Uma ambição de toda uma comunidade empresarial inovadora que vê na inovação e agilidade um atributo das companhias vencedoras.

A jornada, documentada no livro, se fosse uma receita de bolo poderia ser descrita da seguinte maneira: adicione uma camada densa de talentos em toda a organização; crie um ambiente de franqueza radical; aí comece a remover todos os controles. Exemplos, atualmente bem conhecidos, de controles retirados e regras flexibilizadas: política de férias (tire o que quiser tirar); viagens e despesas (gaste o dinheiro da companhia como se fosse o seu); remuneração (“pay as a rock star”: sempre acima do mercado); não pagamento por performance (bônus são negativos para a flexibilidade); transparência absoluta (abrir todos as informações financeiras para a liderança) e por último (“last but not least”) decisões não precisam de aprovação.

Com as devidas desculpas pela simplificação de um livro de 300 páginas, o resumo acima é a representação, na sua estrutura básica, de uma das experiências mais ousadas de transformação empresarial e desmonte de modelos anteriores baseados na dobradinha comando e controle. Obviamente, não serve para todas as organizações nem tem o entusiasmo unânime das lideranças empresariais. Mas, não há como negar que é o mais próximo de um ambiente baseado na confiança e na ausência de políticas e procedimentos impositivos tão típicos das estruturas de governança que conhecemos.

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Agora, começamos a assistir ao teste de fogo de resiliência do modelo implementado. A hipótese atual é que organizações mais flexíveis e ágeis são capazes de conviver e reagir às incertezas e intempéries melhor do que estruturas monolíticas centralizadas. Também veremos se uma cultura potente sobrevive à necessidade radical de mudança do modelo de negócios.

Vejamos o que sabemos até agora. Os resultados do primeiro trimestre mostraram, pela primeira vez, uma perda de 200 mil assinantes. A previsão para o período seguinte é de uma evasão adicional de 2 milhões de contas. Culpou-se a concorrência, que se multiplicou e está ganhando mercado. Também se falou do compartilhamento de senhas que, se resolvido, adicionaria cerca de 100 milhões de conexões ao total de 200 milhões atuais. Uma pesquisa independente mostrou que nos Estados Unidos o churn do primeiro trimestre chegou a 3.6 milhões de usuários comparados com uma média de 2.5 milhões em períodos anteriores. Mais, que pela primeira vez a desistência de assinantes leais, com mais de 2 anos na plataforma, chegou a 20% do total.

Não é a primeira vez que a Netflix passa pela necessidade de mudar substancialmente seu modelo de negócios. Por volta de 2013, ficou claro que o formato anterior de agregar conteúdos de terceiros não funcionaria mais. Vários estúdios, Disney na primeira fila, sinalizaram que iam tirar seus títulos e produzir seus próprios streamings, como efetivamente aconteceu. Netflix deu uma guinada com House of Cards e passou a produzir seu próprio conteúdo original. O que aconteceu depois é história e o orçamento para estas produções só aumentou chegando à casa de 17 bilhões de dólares no último ano.

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Hoje o mercado não parece mais acreditar que o modelo baseado em investimento maciço em conteúdo original, monetizado por assinaturas que subiram de preço nos últimos anos, é sustentável perante uma concorrência que só aumenta. Veja a lista (parcial) já muito conhecida: Amazon Prime, Apple TV, Disney+, HBO Max, Globo Play, Paramount+, Peacock, etc.. Muitos deles com “deep pockets”. O valor de empresa caiu 70% nos últimos 12 meses, embora deva-se descontar a parcela do mau-humor do mercado e da queda acentuada das bolsas.

Os comunicados vieram logo em seguida: demissão, até agora, de 150 profissionais, ou 2% da força de trabalho; moderação de gastos e tetos salariais; testes de limitação de compartilhamento de senhas no Peru, Chile e Costa Rica; contenção no orçamento de produção de conteúdo original e anúncio de uma versão mais barata do serviço com a adição de publicidade, hipótese sempre rechaçada por Reed Hastings, mas que muitos dos concorrentes já usam. Sinais inequívocos de esgotamento de um modelo que foi vencedor e líder de mercado nos últimos anos.

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Um fato paralelo e simbólico destes tempos de ativismo digital foi a decisão de incluir no documento de cultura um capítulo sobre “Expressão Artística”. Diz que existirão conteúdos que podem contrariar os valores de certos colaboradores e que se eles não acharem que podem conviver com tais conteúdos a Netflix pode não ser o lugar certo para trabalharem. O movimento foi disparado pela reação a um episódio de Dave Chapelle, um comediante que fez comentários sobre transgêneros que muitos consideraram ofensivos. Apesar do cuidado na redação e na justificativa de que quem decide o conteúdo que quer ver é o usuário, não há como não considerar esta decisão algo impositiva e, de certa forma, contraditória aos aspectos de tolerância, discussão aberta e franqueza da cultura.

O que será do futuro? O que será da marca icônica que alterou drasticamente a forma como vemos TV e consumimos vídeo? O que será da empresa que disruptou Hollywood e produziu filmes e séries inesquecíveis em todos os lugares do mundo? O que será de uma organização que criou uma cultura baseada em princípios e uma ética sem códigos?

A indagação procede. Estamos em um tempo em que não há porto seguro nem garantias. Jeff Bezos tuitou recentemente: “Se você está atrás de uma leitura noturna apavorante deveria conferir o novo livro sobre o declínio e queda da General Electric”. As gerações do século passado hão de lembrar que o líder Jack Welch e a cultura da GE eram modelos invejáveis e que pareciam perpétuos. Não eram. Como diz Jorge Forbes, psicanalista e consultor que cunhou o termo TerraDois para descrever o mundo em que vivemos: “os dilemas corporativos atuais só podem ser tratados sem o conforto de um saber provado e garantido, através de uma estratégia e uma ética sustentada no risco, na aposta e na invenção”.

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Tomara que a Netflix invente novamente um novo futuro e repita a mágica que fez quando se transformou o aluguel de filmes em uma sala de cinema em casa. Tomara Reed Hastings encontre uma outra fórmula para continuar produzindo filmes e séries que nos emocionem e estejamos dispostos a pagar. Tomara, principalmente, que o mundo corporativo com menos regras, mais flexível, mais colaborativo, mais inclusivo e menos hierárquico seja a regra das culturas empresariais futuras.

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Silvio Genesini

Silvio Genesini é conselheiro de empresas e investidor e mentor de startups e empresas inovadoras. Foi presidente do Grupo Estado, da Oracle do Braisl e sócio-diretor da Accenture.