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Imagine uma sociedade em que, em meio a um sistema tributário constituído por dezenas de impostos complexos e distorcivos, grupos de interesse entrincheirados em nichos estabelecidos há décadas ou mesmo séculos, logram obter para si, junto ao poder central, isenções ou tratamentos fiscais diferenciados.
Ainda, que parte dessas elites fosse constituída por agentes do estado, que não pudessem ser destituídos de seus privilégios em função da proteção institucional aos seus “direitos adquiridos”.
Finalmente, imagine uma economia em que a carga tributária não pudesse mais ser ampliada, após anos a fio de aumento contínuo de impostos direcionados ao financiamento de gastos públicos cada vez mais elevados, e de redução quase impossível.
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Você acertou se pensou que estamos nos referindo ao Brasil de hoje. Mas acertou também se associou a descrição acima à França do século 18.
De fato, Alexis de Tocqueville, em “L´ancien Régime Et La Révolution”, nos mostra que o patrimonialismo da nobreza é uma das raízes da profunda desigualdade da sociedade francesa pré-1789.
Em um memorável trecho desta obra, o autor aponta a origem dessa distorção para a segunda metade do século 14, quando a França, exausta pelo esforço da Guerra dos Cem Anos contra a Inglaterra, concedeu a seus soberanos o direito de estabelecer impostos sem o consentimento prévio da sociedade, ao mesmo tempo em que a nobreza garantia para si várias isenções, fazendo com que a carga praticamente integral dos tributos caísse sobre os camponeses e a nascente burguesia.
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Francis Fukuyama, em sua magistral obra “The Origins Of Political Order”, nos ensina como essas distorções foram se intensificando ao longo dos séculos, ao mesmo tempo em que o chamado “Estado de Direito” impedia a reforma do regime.
Com efeito, muitos nobres e burgueses tornaram-se concessionários de serviços públicos, coletores de impostos à Coroa (cujos direitos de recolhimento precisavam ser adquiridos) ou magistrados locais.
Eram os “rent-seekers”, na terminologia consagrada pelos economistas clássicos e emprestada por Fukuyama.
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Os contínuos esforços de guerra exigiam a criação de mais impostos, que aumentavam as distorções e a regressividade do sistema.
Mas os “direitos adquiridos” da nobreza e dos concessionários de impostos e serviços reais funcionavam como o mecanismo que terminava por direcionar a carga tributária adicional sempre aos menos favorecidos.
No caso da França, como sabemos, o estouro dessa panela de pressão teria proporções catastróficas.
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A origem do patrimonialismo e dos privilégios no Brasil de hoje não está muito longe do instante do tempo cravado por Tocqueville para a França.
No que se refere à existência de privilégios dentre as classes, a estrutura do estado português daquela época guardava diversas semelhanças com o francês, mas, ao contrário do observado neste, mais baseado na autoridade real direta, tinha o Judiciário como instância maior de defesa do corporativismo e do reconhecimento de direitos adquiridos.
Como nos mostra Jorge Caldeira, em sua imperdível “História Da Riqueza No Brasil”, a prática se intensificou principalmente após as Ordenações Manuelinas, o compêndio de leis publicado por D. Manuel no início do século 16.
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Organizado em livros que tratavam das diferentes instâncias judiciárias a que as diferentes classes (fidalgos, clero, nobreza e os demais) estariam sujeitas, o compêndio instituiu a desigualdade de tratamento entre os indivíduos, definindo desde quem podia ser preso, e por quem, até as punições por diversos crimes, que variavam conforme a classe da pessoa.
Títulos específicos definiam, por exemplo, que desembargadores e altos funcionários podiam trazer para a Corte todos os processos em que estivessem envolvidos, sendo que estes servidores só podiam ser citados com autorização direta do Rei.
Esse sistema, exportado que foi por Portugal ao Brasil, não à toa nos soa familiar. Abolido na metrópole no século 19, aqui entre os trópicos atravessou os séculos com algumas alterações, mas, de forma geral, sobrevive até hoje em nosso ordenamento jurídico.
O foro privilegiado de certas autoridades, instituto praticamente inexistente em qualquer outro país moderno, foi parte integrante de todas as nossas constituições desde o Império e, confirmado pela Constituição de 1988, persiste até hoje entre nós.
As isenções e tratamentos fiscais diferenciados, resultado da relação, frequentemente corrupta, entre representantes do estado e grupos “rent-seekers” são uma antiga realidade no Brasil; e privilégios de funcionários públicos, que gozam de estabilidade (não podem ser demitidos) e vencimentos elevados e irredutíveis, frequentemente confirmados por todas as instâncias do Judiciário, são apenas alguns exemplos desta herança.
A expressão estado de direito (do inglês: “rule of law”) tem seu significado ligado ao ordenamento constitucional e à defesa de garantias individuais.
O mesmo Estado de direito que garante o direito de todos de votar e ser votado garante também, no Brasil, o foro privilegiado de autoridades, a estabilidade dos funcionários públicos, as isenções fiscais previstas em lei, o direito remanescente de algumas filhas solteiras de militares à pensão, a multa do FGTS em caso de demissão não justificada por parte do empregador, a possibilidade de um profissional liberal pagar metade do imposto de renda de um empregado celetista, e por aí vai.
Como na França do Antigo Regime, no Brasil de hoje, as distorções vêm mais se acumulando do que diminuindo, apesar do recente sucesso da sociedade em implementar reformas importantes, como a da Previdência.
A carga tributária tem subido não como necessidade frente às infindáveis guerras de Luis XIV e Luis XV, mas pelo gigantismo insaciável do Estado e pelas travas impostas pelo estado de direito à sua redução.
É interessante observar que o governo atual, que chegou ao poder como suposta alternativa à forma de fazer política no Brasil, foi quase completamente domesticado pelo establishment e pelas proteções a ele garantidas pelo estado de direito.
Ainda assim, ele abriga um núcleo verdadeiramente reformista, representado pelo ministro Paulo Guedes e sua equipe, que patrocinam e têm conseguido implementar algumas reformas liberais, além de vir combatendo, praticamente sozinhos, os grupos de interesse entrincheirados em nosso regime político e econômico.
Anne Robert Jacques Turgot foi ministro da fazenda de Luís XVI e fez uma legítima tentativa de reformar o Antigo Regime na França.
Discípulo de Vincent de Gournay, e precursor, em alguma medida, das ideias liberais de Adam Smith, Turgot procurou simplificar o sistema de impostos, aboliu controles de preços e publicou éditos que visavam reduzir diversos privilégios da nobreza.
Desagradando a quase todos, não resistiu, e foi demitido em dois anos, tendo sido essa a última tentativa de autorreforma do antigo regime francês antes dos eventos de 1789.
Se é verdade que o Brasil de hoje não reúne as condições para uma ampla e pacífica autorreforma, é também, obviamente, muito improvável que a ordem atual caia na forma de uma sangrenta revolução, como na França.
No melhor cenário, avançaremos na reforma do estado de direito a passos lentos, graças à obstinação de pessoas como o ministro Guedes e ao instinto de autopreservação da elite política, a quem não interessa o colapso econômico.
No pior, seguiremos um caminho semelhante ao tomado pela nossa vizinha Argentina, cuja economia, sufocada há décadas pelo populismo e pelos sindicatos, vive uma lenta e triste jornada rumo à pobreza.
A escolha, como sempre, será da sociedade. Ou quase. Mas esse tema fica para um próximo artigo.