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Mais de 60 anos após a 1ª edição de “Os Donos do Poder”, livro de Raymundo Faoro publicado em 1958, os cientistas sociais ainda não foram capazes de formular um diagnóstico mais certeiro das razões do atraso e (usando um termo fora de moda, mas adequado ao contexto) do subdesenvolvimento do Brasil do que aquele contido na obra prima do velho mestre, possivelmente o maior intérprete de nossa formação social e política.
Faoro elabora o conceito de estamento burocrático”: a camada, primeiro de fidalgos e funcionários reinóis, depois de políticos, agentes, concessionários e empregados governamentais, que, desde os tempos de colônia até os dias contemporâneos, salvo breves interstícios, pode ser identificada como a casta que efetivamente exerce o poder no Brasil, na medida em que logrou, ao longo dos séculos, extrair rendas, proteções e privilégios junto ao governo central, em detrimento do restante da sociedade.
A obra identifica a origem do estamento na Revolução de Avis, no século XIV, quando o soberano da recém-criada dinastia em Portugal, consolidando a posse da terra para si e estabelecendo vínculo de suserania diretamente com a população, impunha derrota definitiva à nobreza, quebrando a espinha dorsal do cambaleante feudalismo português.
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O estamento desenvolve-se a partir dessa centralização de poder, com a constituição de uma estrutura administrativa e a progressiva agregação de diversas camadas de servidores, fiscais, magistrados, ouvidores, comissários e concessionários do poder público diversos. Esse processo se adensaria com as empreitadas mercantilistas na África, no Oriente, e na América, de cujas cadeias de rendas o estamento se amamentaria.
No Brasil, embora presente desde os primeiros tempos do governo geral, o poder central e o estamento apertam o garrote sobre a economia colonial especialmente após a restauração da Coroa portuguesa em 1640, acontecimento que coincide com a ascensão da casa de Bragança, a ampliação do poder absoluto do Rei e o ciclo do ouro no Brasil.
Com o declínio econômico das possessões portuguesas no Oriente, a metrópole volta os olhos para o ouro da colônia, aumentando a presença militar, o número de agentes reinóis e a fiscalização do recolhimento de impostos.
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O patriciado administrativo e a presença do Estado na vida política e econômica se ampliam com a vinda da corte de D. João VI para o Brasil em 1808, permanecendo a estrutura estamental de pé durante o período centralizador do Primeiro Reinado, tendo apenas assumido uma origem menos lusófona e mais abrasileirada.
Após um breve interstício de provincialismo federalista durante o período regencial, o estamento e a centralização do poder retornam com força após a maioridade de D Pedro II, a partir dos anos 1840.
A produção de café, principal atividade econômica da época, cujo financiamento ficou a cargo de intermediários em geral ingleses, até uma certa altura, e de bancos estatais, num segundo momento, envolveu frequentes moratórias e auxílios por quebras de safra e outras intempéries, que passavam pela concessão de favores governamentais.
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A atividade econômica seguia florescendo, assim, sempre à sombra do apoio do Estado. Mesmo uma figura que passou à história como exemplo de empresário e da livre iniciativa, como Irineu Evangelista de Souza, o Visconde de Mauá, obteve boa parte de seu sucesso profissional graças às suas boas relações com o governo imperial, que garantiu a compra dos tubos de encanamento de água que Mauá produziu, sob regime de concessão.
Ele obteve, ainda, empréstimos a juros subsidiados e a prazo longo, aprovados na forma de lei, para algumas de suas empreitadas. Finalmente, viu seu estaleiro falir quando a proteção alfandegária à utilização de navios estrangeiros caiu, em norma de 1860.
Mauá, nesse sentido, foi mais um precursor do empresário típico da Fiesp, alimentado por subsídios e protegido por tarifas, do que um self-made man à moda norte-americana, como Andrew Carnegie ou Cornelius Vanderbilt.
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É somente durante a Primeira República (1889-1930) que o Brasil vive seu único período relevante de descentralização administrativa, com consequente rompimento da estrutura estamental e diminuição do poder do governo central.
A prosperidade do café no oeste paulista, com utilização de mão de obra assalariada, substitui a decadência da cultura no Vale do Paraíba, depauperada pela exaustão da terra e pela abolição da escravatura. A estrutura evolui para a política dos governadores, com a proeminência dos interesses das oligarquias dos principais estados da federação na orientação da economia e na composição do governo.
A partir de 1922, inicia-se uma clivagem social e política que levaria ao retorno definitivo do estatismo, em 1930. A Antiga República não deu atenção à necessidade de aumentar a participação efetiva da população no processo eleitoral e de trabalhar para reduzir o analfabetismo, que na década de 1920 girava em torno de 60% da população.
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O tenentismo emerge como um movimento social que ocupa esse espaço reivindicatório, assumindo também, de forma inicialmente difusa, mas progressivamente mais focada, a defesa de um papel mais ativo por parte do governo central na educação, na economia e em outras questões.
De forma reativa, à medida em que as agitações cresciam, os últimos governos da República Velha assumem uma postura mais autoritária, especialmente durante o quadriênio de Artur Bernardes, que governa praticamente sob permanente estado de sítio.
Fato é que, a partir de 1922, a política brasileira seria sempre, até a redemocratização em 1985, dominada por duas tendências de caráter centralizador, estatista e antiliberal, em oposição à estrutura federalista e relativamente individualista que vigorava desde a queda do Império.
Uma delas, associada à manutenção da ordem, e de inspiração, em alguns casos, como durante o Estado Novo, remotamente parafascista; e outra, identificada com os objetivos e os métodos do socialismo, transmutada, a partir da década de 1950, à sua forma populista.
O governo Vargas, a partir de 1930, reconstrói rapidamente a estrutura estamental e inaugura um ciclo de dirigismo estatal que, de forma geral, perdura até os nossos dias.
Para mencionar apenas alguns dos pilares mais importantes da carapaça estamental que seria erguida, esta inicia-se com a criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, já em 1930; a nacionalização do aproveitamento das águas (1934), a criação do Departamento Administrativo do Serviço Público (1938), continuando com a criação das empresas estatais Companhia Siderúrgica Nacional (1941), Vale do Rio Doce (1942), Petrobras (1953), Eletrobras (1961), BNDES (1964) e Telebras (1972).
Toda essa obra dirigista, populada por milhares de funcionários bem-remunerados, e que viria a ser um poderoso instrumento de concessões de benefícios e proteções a setores e agentes econômicos selecionados, além de inibidora da livre iniciativa, foi esculpida tanto por governos mais voltados à manutenção da ordem, como Vargas durante o Estado Novo, e os militares, a partir de 1964, quanto por aqueles de inspiração populista à esquerda, como o governo provisório de Vargas e a maior parte daqueles transcorridos no período 1950-1964.
Após a redemocratização, a polarização política se arrefeceu. Além disso, os governos Collor e Fernando Henrique Cardoso conseguiram dar alguns passos na redução do edifício dirigista, com a privatização de algumas companhias estatais e a interrupção do crescimento da estrutura administrativa do estado.
A partir dos governos do PT, iniciados em 2002, o gigantismo estatal refloresceu a níveis sem precedentes. Os crimes de corrupção, ocultação de patrimônio e lavagem de dinheiro – que levaram à condenação e prisão do ex-presidente Lula – e os crimes fiscais e a recessão de 2015-16, a maior da história do Brasil, que levaram à queda do governo Dilma, são amplamente documentados e não serão aqui discutidos.
A combinação desses fatores com o ambiente global politicamente mais polarizado e a natureza totalitária do governo do PT, manifestada especialmente nos últimos anos do período Dilma, por exemplo, com a edição de decreto – derrubado pela câmara dos deputados – que procurava subtrair parte das atribuições do Poder Legislativo por conselhos populares – levou à eleição de Jair Bolsonaro em 2018.
Ainda que a situação fiscal calamitosa e a obstinação do Ministro da Fazenda tenham permitido alguns avanços na agenda de reformas, e a manutenção, até este momento, do regime fiscal da União, o caráter antiliberal e populista do governo Bolsonaro vem se tornando mais óbvio ao longo do tempo, e provavelmente se intensificaria num eventual segundo mandato, especialmente diante da tendência de fortalecimento das demandas sociais.
Com a reabilitação eleitoral do ex-presidente Lula, a pior das contribuições ao país de uma Corte Suprema que há muito deixou de ser guardiã da ordem constitucional, para se tornar um agente político, o país encaminha-se para uma disputa eleitoral, em 2022, entre dois modelos antiliberais, defensores da intervenção estatal na economia, da concessão de subsídios, proteções alfandegárias, e de programas estatais de gastos e investimentos públicos.
São estratégias que, tendo sido encampadas por quase todos os governos desde 1930, se provaram incapazes de induzir crescimento sustentado da renda nacional, e que, comprovadamente, potencializaram o aparecimento de esquemas de corrupção em larga escala, que deixaram um rastro de recessão e impunidade que fustigou o Brasil nos últimos anos.
100 anos após a revolta do Forte de Copacabana, evento que marcou a formatação política da República ao envoltório ideológico do século XX, mesmo Raymundo Faoro, um permanente cético em relação ao futuro do Brasil, vivo, talvez se chocasse com a atualidade e a precisão do seu diagnóstico.
O estamento burocrático e o dirigismo estatal seguem sobranceiros e parecem fadados a um futuro brilhante no Brasil do século XXI. O velho mestre tinha razão.