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O Brasil é um país cuja renda per capita está estagnada desde 1980. De lá para cá, vivemos de tudo. Hiperinflação, crises de balanços de pagamentos, confisco de ativos, impeachment de dois dos cinco presidentes diretamente eleitos no período, o maior escândalo de corrupção e espoliação de recursos de Estado já registrado no mundo ocidental, a prisão de dois ex-presidentes da República e de três presidentes da Câmara dos Deputados, além da maior recessão observada nos mais de cem anos de contabilização do PIB.
Estaríamos simplesmente amargando as consequências de sucessivas más escolhas nas eleições? Não nos parece. Este artigo desenvolverá argumentos sugerindo que a raiz de nossos recorrentes problemas está na falta de cuidado no desenho da governança de nosso regime político. Para isso, é necessário examinar com algum nível de detalhe as fragilidades intrínsecas às repúblicas, desde sua origem, pelo que peço ao leitor um pouco de paciência.
Um exame superficial da história ocidental desde a antiguidade clássica mostra que as repúblicas democráticas são formas de governo instáveis. À parte a possibilidade mais corriqueira e frequente de degeneração a ditaduras regulares, elas são suscetíveis à transmutação ao que se conhece por “ditadura da maioria”.
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Se a vontade da maioria prevalecer em um número suficiente de questões, as liberdades individuais e as garantias fundamentais, como direitos políticos e o direito à propriedade privada, tendem a se atrofiar. O resultado, nesses aspectos, é muito semelhante ao observado em regimes despóticos “regulares”, isto é, nos quais não há funcionamento formal de uma casa legislativa e o poder se concentra nas mãos de uma só pessoa.
Esta deficiência intrínseca dos regimes democráticos é estudada desde Aristóteles – que, quase 3 mil anos atrás, já apontava a excessiva instabilidade da quase pura democracia ateniense e não escondia sua preferência pelos regimes mais balanceados de Esparta e Cartago.
Os romanos, tendo aprendido com as experiências dos gregos, introduziram diversos melhoramentos (“checks and balances”) que tornaram seu regime republicano mais estável.
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O poder central era dividido entre dois cônsules eleitos pelos cidadãos, com mandato de um ano, sendo permitida a candidatura de um ex-cônsul somente após dez anos do final de seu mandato. A atividade legislativa ficava a cargo do Senado, um elemento oligárquico, que, a partir de uma certa altura, passou a dividir suas atribuições com a Assembleia da plebe, presidida pelos tribunos, que tinha também o poder de legislar e, sob determinadas condições, vetar leis oriundas do Senado.
O fim da República romana, que obviamente não será aqui discutido em detalhes, teve origem no ciclo que envolvia a ampliação do universo de cidadãos aptos a votar, a expansão territorial e o enorme enriquecimento pessoal das lideranças políticas.
As conquistas da República exigiam campanhas militares longas e caras, cuja chefia, por sua vez, tornava-se objeto de grande cobiça. A pilhagem das riquezas dos povos subjugados enriquecia seus líderes, que assim podiam, além de acumular enorme riqueza pessoal, armar suas facções e, literalmente, comprar o voto dos eleitores mais pobres, por meio da distribuição de alimentos ou do patrocínio de espetáculos públicos.
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A extensão progressiva da condição de cidadão romano, primeiro, a italianos e, depois, aos demais povos tributários, garantia a popularidade dos políticos, fechando o ciclo. Tibério Graco, Caio Mário e Júlio César estiveram entre os primeiros populistas da história, tendo sido responsáveis pelo fortalecimento das assembleias populares e pelo aumento do poder dos tribunos ante o patriciado senatorial.
Mesmo com todos os “checks and balances” instituídos, a República romana não resistiu ao populismo, fenômeno político irmão da “ditadura da maioria”, e à expansão territorial exagerada, dando lugar ao Império cerca de 500 anos após sua fundação.
A “não escalabilidade” do regime republicano é uma constatação que salta aos olhos de qualquer estudante de História. As repúblicas das cidades-estado gregas, a romana e, mais recentemente, das cidades italianas das Idades Média e Moderna foram relativamente bem sucedidas, entre outros motivos, por terem (ou, enquanto tiveram, no caso de Roma) dimensões territoriais modestas.
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Embora esteja longe de ser a única explicação, esse padrão histórico contribuiu para a inexistência de repúblicas com dimensões geográficas significativas ao longo dos mil e oitocentos anos que separam o início do Império Romano da promulgação da Constituição dos Estados Unidos da América, em 1787.
Boa parte do trabalho de Alexander Hamilton, James Madison e John Jay ao escrever os textos de “O Federalista” foi direcionado a convencer a população da colônia de Nova York da viabilidade de se estabelecer uma república, a ser formada pela federação das já emancipadas treze colônias – e portanto, dotada de expressiva extensão territorial – a ser guiada, agora, pelos princípios da separação de poderes enunciados por Montesquieu e desenvolvidos adicionalmente por John Locke, que, segundo os autores da carta, contribuiriam para tornar a república mais estável do que suas predecessoras.
Três mecanismos adicionais de estabilidade desenhados pelos artífices da Constituição dos EUA eram explicitamente direcionados a limitar os efeitos de uma eventual degeneração do regime à “ditadura da maioria”, que era temida especialmente por Madison.
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Um deles é a instituição do colégio eleitoral para a eleição presidencial, que limita o peso relativo dos estados mais populosos na escolha do mandatário. Outro, o sistema bicameral, com a eleição de dois senadores por estado – que, originalmente, sequer eram eleitos pelo voto direto, mas pelas assembleias regionais.
Por fim, o instituto do filibuster, mecanismo inspirado no senado romano, onde não havia limite temporal para os debates que antecediam a votação de determinadas leis. Esse é um dispositivo fundamental para insular os direitos das minorias e atenuar o faseamento das políticas públicas com o partido do governo. Hoje, são necessários 60 senadores para interromper os debates nas diversas matérias legais em que o mecanismo de filibuster continua presente.
Mesmo tendo nascido, na escala temporal civilizatória, apenas “ontem”, a experiência de estabilidade do regime político dos Estados Unidos da América já se constitui na mais longa que se tem registro. Desde 1789, as eleições para presidente dos EUA são realizadas pelo colégio eleitoral a cada quatro anos, sem exceções.
Ainda que as salvaguardas previstas pelos fundadores dos EUA tenham sido, até aqui , extremamente eficazes para a preservação de seu regime político, elas não têm sido suficientes para evitar que a sobrevivência da república democrática naquele país venha sendo ameaçada por fenômenos que guardam estreita relação com o ocorrido em Roma dois milênios atrás. A redução das diferenças nos direitos políticos entre residentes – mesmo os ilegais – e cidadãos é, talvez, neste aspecto, a componente que guarda maior similaridade.
Como a tendência (atual) majoritária entre os imigrantes é a orientação de voto pelo partido democrata, os governos dos estados controlados por aquele partido, numa ótica essencialmente curto-prazista, têm dificultado sua extradição e lhes facilitado a conquista de cidadania, ao passo que, no plano federal, o partido trabalha politicamente pela ampliação dos programas de assistência, de modo a manter essas e outras frações da população sob dependência do Estado.
Noutra frente de ataques à estabilidade da república, o partido democrata trabalha há décadas pelo fim do colégio eleitoral. Ele também pleiteia a transformação do distrito de Columbia e de Porto Rico em estados – o que quebraria, talvez por um longo período, o equilíbrio de forças políticas no senado. E, reeditando o movimento de Franklin Roosevelt dos anos 1930, quer aumentar o número de juízes da Suprema Corte (“pack the court”), com o objetivo de diluir sua atual maioria de juízes conservadores.
Essas são todas ações que, por sua vez, dependem do fim definitivo do filibuster no Senado e vêm se tornando possibilidades cada vez mais concretas, que fragilizariam os “checks and balances” desenhados pelos artífices da Constituição dos EUA, tornando o país uma virtual “ditadura da maioria” conduzida por políticos populistas. Esta perspectiva é extensivamente desenvolvida por Victor Davis Hanson em seu extraordinário livro “The Dying Citizen” e também no recente artigo “The birth, benefits and burdens of western citizenship”.
Após esta longa introdução, voltemos agora ao Brasil.
A origem das repúblicas latino-americanas obviamente não foi orgânica, como em Roma, ou pensada e arquitetada por estadistas que haviam estudado profundamente os defeitos das antigas repúblicas e as formas de aperfeiçoá-las, como nos EUA.
Quando o Império do Brasil caiu de maduro, declarou-se a República, pegando-se emprestado um apanhado de ideias das constituições da França e dos EUA para redigir-se a carta de 1891. Aqui, ao contrário dos EUA, jamais houve federalismo verdadeiro. Já existia um país constituído por províncias, nunca tendo sido dada opção a cada uma delas de aderir ou não ao novo (ou ao antigo) regime. A Constituição dos EUA foi referendada por 39 dos 55 delegados na Convenção da Filadélfia – o esforço dos estadistas no convencimento da população, evidenciado, entre outros exemplos, pela elaboração dos já mencionados artigos de “O Federalista”, mostram que o risco de não haver acordo era significativo. De fato, a constituição de um governo central para liderar a federação das colônias emancipadas talvez seja o único caso de um “govermment by consent”, à maneira teorizada por Hobbes e Locke.
Apesar de o Brasil ser um país com dimensões continentais, equivalentes à dos EUA, e, portanto, em que a governança da república devesse ser, em tese, cautelosamente desenhada para que se procurasse atenuar os problemas acarretados pela elevada dimensão territorial – já conhecidos desde o tempo de Roma – isso jamais foi feito. Não foi feito no início da República, e nem nunca, depois, de forma verdadeiramente séria, nos mais de 130 anos desde a mudança do regime.
O voto distrital para deputado – presente nos EUA desde sempre – é um mecanismo que aumenta a ligação entre representantes e representados, sendo fundamental para a convergência de seus interesses, especialmente no caso de repúblicas com vasta extensão territorial. No Brasil, esse mecanismo simplesmente nunca existiu ou sequer foi seriamente considerado.
O instituto do foro privilegiado, que protege a classe política e incentiva o patrimonialismo, existe no Brasil desde a Lei do Governo Geral de Tomé de Sousa e sobreviveu a todas as constituições, incluindo a atual, de 1988. Mais recentemente, descobrimos também que esse mecanismo destrói a independência dos poderes, pois, num sistema em que a elite política tem extenso passivo criminal, ela torna-se refém do Judiciário, ficando anulado, na prática, o mecanismo de controle da suprema corte pelo senado.
Recentemente, uma das consequências da falta de contrapesos ao órgão máximo do judiciário foi a reabilitação eleitoral do ex-presidente Lula , uma figura condenada por diversos juízes e tribunais, em três instâncias diferentes , por mais de um crime, cujo legado provocou a maior recessão de que se tem notícia no Brasil. Mas, e aí? Existe alguém de fato preocupado com isso?
O Brasil, assim como vários outros países latino-americanos, tem condições próximas às ideais para que a república democrática degenere em “ditadura da maioria” toureada por políticos populistas: território extenso, Estado de Direito (rule of law) fraco, riquezas naturais e/ou uma dinâmica econômica privada suficiente para sustentar o rent-seeking da classe política, além de contar com uma grande parcela da população em situação de dependência do Estado para sua sobrevivência – outro importante pilar de sustentação deste regime degenerado.
Nossos vizinhos Venezuela e Argentina já se encontram nesse caminho há tempo suficiente para que a perda de rumo possa se caracterizar como definitiva, deixando a reabilitação e a esperança fora do campo de visão. Já o Chile acaba de iniciar sua jornada nessa direção, que ao que tudo indica, pode ser mais veloz – no sentido de poder chegar mais rapidamente a seu destino – do que a de seus vizinhos.
A economia brasileira foi capaz de crescer a taxas elevadas por décadas, graças à juventude de sua população, baixos estoques de capital físico e importantes vantagens comparativas – condições que, sob princípios mínimos de governança, foram suficientes para garantir contínuo aumento da renda nacional por bastante tempo.
Mas esse tempo acabou há mais de quarenta anos. Se não formos capazes de questionar e propor mudanças no plano mais fundamental de organização do Estado – a constituição e a organização dos poderes – podemos esquecer qualquer possibilidade de avanço consistente.
Hoje, estamos assim: o Poder Legislativo (que, na ausência de voto distrital, quase não tem vínculo com seus eleitores) é devidamente alimentado pelo fundo eleitoral público e pelas emendas de relator, que o permite cuidar dos interesses particulares de seus membros. A instância máxima do Judiciário decide o que bem entende, interfere em atribuições dos demais poderes, anula condenações ao sabor de sua conveniência política e não deve satisfações a nenhum outro poder. E o sufrágio popular para presidente da República, piorado pela permissão de reeleição e exercido por uma população empobrecida e cada vez mais dependente do Estado, torna-se, progressivamente, uma competição de populismo, repleta de promessas vazias, mentiras e estelionatos eleitorais. Os quadriênios intercalam uma sucessão de escândalos de corrupção, deterioração fiscal e criação de programas sociais cada vez mais custosos.
Em meio a essa realidade, em que a governança de uma República que nunca foi pensada vai escorrendo pelos dedos a olhos vistos, economistas e líderes empresariais insistem em seguir elencando as “reformas” que precisam ser feitas e sem as quais o país não “retomará o caminho do crescimento”. É verdade. E todos os 2% da população que acompanham a imprensa escrita já sabem quais elas são. O que é incrível a esta altura é que parte da elite ainda possa acreditar que, com a governança e contrato social atuais, essas reformas um dia acontecerão, de fato.
Sem uma reforma política, tão improvável quanto profunda, a tendência nítida é o agravamento dos sintomas da ingovernabilidade e a eclosão de recessões cada vez mais intensas e duradouras, que tendem a aprisionar o país no populismo eterno, ou eventualmente, criar condições para uma ruptura desorganizada.
A verdade é que, hoje, o Brasil e os brasileiros estão, na falta de uma expressão melhor, entregues à própria sorte.