O desafio de chegar ao dia seguinte

Não podemos, em nome da pandemia, negligenciar nossa responsabilidade fiscal

Paulo Tafner

Importante: os comentários e opiniões contidos neste texto são responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a opinião do InfoMoney ou de seus controladores

(Getty Images)
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Em artigo anterior tratei de pandemias e discuti nossos véus de ignorância.

Não temos remédios 100% eficazes, estamos ainda longe de uma vacina, não sabemos exatamente como definir e implementar políticas de manutenção da renda da população, sobretudo a mais vulnerável.

Apesar do esforço de muitos, ainda não temos boas pistas sobre qual será o impacto da pandemia no PIB anual (as estimativas vão de -0,5% a -8,0%, podendo chegar a -10%), ou no emprego (o número recorde de solicitação de seguro-desemprego nos EUA pode dar alguma pista a respeito).

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Não sabemos ainda qual será a extensão da pandemia. O tempo está passando e a pandemia, se disseminando.

Visitando o site worldometers.info/coronavirus/ podemos encontrar informações detalhadas sobre o processo de disseminação. É realmente impressionante como o vírus se espalhou.

Nos EUA, até o começo de março, havia 75 casos da doença e apenas um óbito. Um mês depois, eram 215 mil contaminados e 5.102 mortes.

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Na Itália, havia apenas três registros em 15 de fevereiro e nenhum óbito. No último dia de março, eram mais de 105 mil infectados e 12.428 mortes.

Cá entre nós, até o primeiro dia de março, havia apenas dois casos. A primeira morte ocorreu somente em 17 de março quando já tínhamos 346 casos registrados.

Findo o mês, tínhamos 5.717 doentes e já contávamos 201 mortes.

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O mesmo se repete em todo lugar. Países tão diferentes e distantes entre si têm o mesmo padrão.

Seja Alemanha, Irã, Suíça, Turquia, Coréia do Sul, Brasil, Israel ou Austrália, o padrão é igual até o momento.

O vírus rapidamente se dissemina, começa a pressionar o sistema de saúde e as mortes passam a aparecer. O mundo já registra mais de 1,1 milhão de casos e quase 60 mil mortes.

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A letalidade medida pela razão entre óbitos e contaminados é relativamente baixa.

Muito provavelmente, a letalidade efetiva será bem menor, posto que muitos contaminados sequer têm sintomas – não serão sequer testados – e outros tantos têm sintomas leves e, também, não serão testados.

As evidências até aqui registradas revelam que a covid-19 não gosta de idosos: enquanto a letalidade para pessoas com até 39 anos é de apenas 0,2%, para aqueles que superam os 80 anos, é de 14,8% (75 vezes maior).

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Todas as informações e as imagens veiculadas de ruas, praças, ginásios e estádios desertos nos assustam. E ainda falta muito.

Vejamos: o problema que temos pela frente é que a taxa de efetiva contaminação da população é desconhecida.

Nos EUA – país com maior número de casos até o momento –, 120 em cada 100 mil habitantes foram até agora contaminados. Na Itália, 229; na Espanha, 305; na Alemanha, 130 e; na França 166.

No Brasil, essa razão é particularmente baixa (apenas 6,6 para cada 100 mil habitantes), o que é um alento, mas um enorme risco para o futuro imediato.

Estamos com um índice muito reduzido de contaminação e nosso sistema de saúde até o momento está conseguindo dar conta do recado.

Mas e se rapidamente atingíssemos a mesma proporção dos EUA (120 em cada 100 mil)? Ou da Itália? Ou Espanha?

Teríamos 258 mil, 490 mil ou 653 mil, respectivamente, contaminados, e a pressão sobre nosso sistema de saúde talvez fosse insuportável.

Os dados ainda são precários, porém alvissareiros. O número de casos com recuperação positiva está crescendo em toda parte, bem como o número de casos testados positivos, porém sem qualquer sintoma ou sintomas muito leves.

Isso nos leva a crer que o número daqueles efetivamente contaminados é maior do que o registrado pelo sistema de saúde. E quanto maior for a disseminação efetiva, mais próximo do fim da pandemia estaremos.

Em síntese, estaremos livres da pandemia quando o vírus estiver erradicado (quando tivermos uma vacina ou tratamento eficaz) ou, provavelmente, quando todos tivermos sido contaminados.

Na área de saúde, o desafio é fazer o controle da disseminação sem pressionar demais o sistema.

Medidas de isolamento total, por enquanto, e parcial, adiante, devem ser mantidas e monitoradas pelas autoridades, de modo a “domar” a disseminação, jogando em nossos hospitais uma quantidade de pacientes que seja absorvível pelo sistema.

Equacionar esse processo com seu impacto na atividade econômica não é tarefa trivial.

Mas há outro desafio, que é o fiscal. Tenho ouvido e lido que a expansão de gastos para enfrentar a pandemia e seu correspondente endividamento serão “lidos” pelo mercado como algo não estrutural.

Portanto, não haveria impacto nas expectativas quanto à capacidade do setor público se recuperar no futuro.

É louvável e possível, mas devemos conter os gastos ao estritamente necessário para enfrentar a fase mais aguda e focalizá-los nos indivíduos e empresas mais necessitados.

O problema é que, como todos sabemos, nossos gastos são, em geral, pouco eficientes e desfocalizados.

Além disso, há um limite a esse endividamento decorrente da pandemia. A esse limite se juntarão os recursos para entes subnacionais – que há muito estão com suas finanças aos frangalhos – que deles necessitarão para enfrentar a pandemia.

Também há oportunismos que se aproveitam da tragédia da pandemia para liberar entes subnacionais de suas obrigações e responsabilidades fiscais. Isso é absolutamente inaceitável.

Não podemos, por conta da pandemia, afrouxar nossa responsabilidade fiscal para além do estritamente necessário e temporário para superarmos a crise de saúde.

Sabemos que essa leniência fiscal levou estados e o país ao flagelo do desemprego e da maior crise econômica de nossa história.

Alguns estados suspenderam o pagamento de sua dívida junto ao governo federal e outros estão recorrendo à Justiça para fazê-lo.

Ao mesmo tempo, parte do Legislativo e dos governadores, aproveitando-se da pandemia, estão propondo o que se pode chamar de verdadeiro “carnaval” fiscal.

Essa conta não tem sido devidamente analisada pelo mercado e vai se juntar ao “endividamento da pandemia” que, por si só, não é pequeno.

Não será, portanto, negligenciável o endividamento do governo federal que poderá rapidamente atingir 100% de nosso PIB (que certamente será contraído em 2020).

Isso exigirá aumento da carga tributária e novo mergulho rumo à recessão, uma vez superada a crise pandêmica.

Fato é que ninguém, nenhum governo, em nenhum lugar do mundo, estava preparado para enfrentar algo dessa dimensão na saúde.

Teremos que aprender enfrentando a própria pandemia. Mas lições há, que já podem ser tiradas desse processo.

Não podemos, em nome da pandemia, negligenciar nossa responsabilidade fiscal. Não podemos dar asas a oportunistas que se utilizam da tragédia para se verem livres para gastar e se endividar, ou jogar nas costas da União essa irresponsabilidade.

Há outras lições que a crise pandêmica pode nos trazer.

Algumas delas serão objeto do próximo artigo. Até lá.

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Paulo Tafner

É economista, doutor em ciência política e diretor-presidente do Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social (Imds). Especialista em previdência, publicou diversos livros, entre eles, "Reforma da previdência: por que o Brasil não pode esperar?", escrito em conjunto com Pedro Nery