Festa estranha com gente esquisita: o custo da interferência do Judiciário

Há grande impacto sobre a (in)sustentabilidade do sistema previdenciário. Neste artigo, trato do critério de pobreza para a concessão de benefícios

Paulo Tafner

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(Shutterstock)
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Retomo nesta coluna debate sobre a interferência da Justiça em questões previdenciárias, seus impactos sobre a (in)sustentabilidade do sistema e sua legitimidade para alterar dispositivos legais aprovados pelo Congresso Nacional.

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Vou tratar do critério de pobreza para a concessão do BPC (benefício de prestação continuada).

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A Constituição de 1988 determinou que o menor valor de benefício previdenciário e assistencial para idosos e deficientes fosse o salário mínimo.

Assim, no Brasil, aqueles que contribuem para a Previdência e aqueles que não contribuem podem receber o mesmo valor de benefício.

O argumento básico para a fixação de benefício de 1 SM é que isso seria o mínimo para manter a dignidade humana e erradicaria a pobreza. Na prática, não é nem uma coisa nem outra, mas isso seria assunto para outra coluna.

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É certo que quem recebe benefício assistencial, assim como muitos dos que recebem benefícios previdenciários de 1 SM, seriam pobres sem esses recursos. A questão é saber se seria necessário 1 SM para retirar esses indivíduos da pobreza.

Diversos estudos mostram que valores inferiores ao salário mínimo teriam o mesmo efeito sobre a pobreza, posto que a deficiência de renda é inferior ao salário mínimo. Gastamos mais do que o necessário para termos o mesmo efeito sobre redução de pobreza.

A Lei Orgânica de Assistência Social (Lei 8.742/93 – LOAS) classifica os amparos assistenciais em duas espécies: portadores de deficiência (55% dos benefícios emitidos ) e idosos (45%). Este último é concedido ao idoso a partir de 65 anos, cuja renda mensal familiar per capita for inferior a 25% do salário mínimo.

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Para ambos os casos, diferentemente do benefício previdenciário, o assistencial recebido por um membro de uma família não é considerado para efeitos do cálculo da renda mensal familiar.

A quantidade de benefícios assistenciais ao idoso cresceu quatro vezes nos últimos 21 anos: de 501 mil benefícios emitidos em 1996 (posição de dezembro) passou para 2,022 milhões em 2017 (taxa média de expansão de quase 7% ao ano).

Também o amparo ao deficiente teve crescimento bem elevado: saltou de 972 mil para 2,527, no período. Em conjunto, cresceu de 1,473 milhão de benefícios para 4,673 milhões de benefícios em 2017.

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A concessão desse tipo de benefício foi tão acelerada que, nesse mesmo período, mais do que dobrou sua abrangência entre a população com 65 anos ou mais, atendendo cerca de 11% desse contingente.

A despesa anual com esse benefício aumentou 26 vezes no período, em termos nominais: de R$ 1,992 bilhões em 1996, saltou para R$ 51,989 bilhões em 2017, equivalendo a uma taxa anual de mais de 16%.

Se considerarmos os gastos reais (INPC), o crescimento real médio anual foi superior a 10%. Parte desse crescimento deveu-se ao aumento do valor real do salário mínimo. Para 2018, o gasto anual chegou a R$ 53,8 bilhões (30% mais do que o Bolsa Família).

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Na maioria dos países, há uma regra não formal para benefícios assistenciais ao idoso: valor menor com a mesma idade do benefício previdenciário ou mesmo valor, porém com idade mais elevada. Há casos em que o valor é menor e a idade é maior.

No Brasil, é o mesmo valor e com a mesma idade. Mas nem sempre foi assim. Até 1997, exigia-se 70 anos. Em 1998, a idade foi reduzida para 67 anos. E, em 2003, consagrou-se a idade de 65 anos, a mesma exigida para aposentadoria por idade. E o valor é exatamente o mesmo: 1 SM.

O curioso é que, em 1974, quando a idade para obter o benefício era superior a 70 anos, a expectativa de sobrevida era de apenas 8,5 anos (78,5 anos era a idade esperada de óbito). Em 1993, quando passou a ser exatamente 70 anos, a sobrevida já era de 10,4 anos (80,4 anos).

Em 2003, quando a idade foi reduzida para 65 anos, a sobrevida era 17,8 anos (82,8 anos). Atualmente, a expectativa de vida aos 65 anos é superior a 18,2 anos (83,2 anos). Em poucas palavras, recebe-se mais cedo e por muito mais tempo.

Essa singularidade brasileira me fez lembrar Renato Russo, da Legião Urbana, cantando a música Eduardo e Mônica quando diz: “Festa estranha, com gente esquisita”.

Mas, superando essa particularidade, há o fato de que, em 2004, apenas 2,6% dos benefícios assistenciais concedidos o eram por decisão judicial. Em 2018 (pasmem!), esse percentual saltou para 18,7%.

Trata-se de um verdadeiro milagre da multiplicação dos pães (e isso, leitores, não é porque estamos no pós-festas de fim de ano). Esse percentual de concessão de benefício assistencial por decisão judicial é mais do dobro das concessões judiciais para benefícios previdenciários.

Perdão, leitores, mas, nesse início de ano, em que recordamos o que fizemos e deixamos de fazer, lembrei-me do saudoso Roberto Campos que dizia que a “melhor coisa do mundo é gastar dinheiro dos outros”. Assim faz o Judiciário, ao conceder segundo seu próprio critério, benefícios assistenciais.

O triste e lamentável disso é que essas decisões penalizam os mais pobres. Mas como e por que isso ocorre?

Desde a lei 8.742/93 (e posteriores modificações), está consagrado pelo legislador que, para efeitos de concessão do benefício assistencial, “considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa com deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a um quarto do salário-mínimo.”. O texto é cristalino. É claro e sucinto.

Não tem sido, porém, esse o “entendimento” de parte do Judiciário. Assim é que, enquanto em uma Subseção Federal Judiciária, até mesmo os gastos pessoais são excluídos da renda familiar (isso mesmo!!!) a ser considerada para deferimento do BPC, em outras, o critério foi ampliado para metade salário mínimo.

Tudo em nome da “justiça social”. E o que é definido na legislação por quem é legalmente competente é esquecido, fica “desbotado na memória”, apesar de estar cristalino no texto da lei!

O STF instado a “opinar” e “deliberar” sobre a questão assim se manifestou: “Consoante Recurso Repetitivo 1.112.557/MG, a limitação do valor da renda per capita não deve ser considerada a única forma de se comprovar que a pessoa não possui outros meios para prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, pois é apenas um elemento objetivo para se aferir a necessidade, ou seja presume-se absolutamente a miserabilidade quando comprovada a renda per capita inferior a um quarto do salário mínimo”.

Com esse entendimento canhestro, o STF passou a admitir a possibilidade de se considerar “a miserabilidade social das famílias”. Uma pérola! E declarou a “inconstitucionalidade parcial”, sem pronúncia de nulidade do art. 20, §3º, da Lei 8.742/1993.

Ou seja, vale o critério de um quarto do salário mínimo de renda per capita, mas outros critérios podem ser utilizados para decisão da pertinência da concessão de benefício. É uma festa para os “benemerentes” e para aqueles que têm “preocupação social”.

O custo da “festa estranha com gente esquisita” patrocinada pelo Judiciário é de R$ 10,06 bilhões a cada ano. Em dez anos, mais de R$ 100 bilhões, quase 15% de toda economia produzida pela Emenda 103/2019.

Enquanto isso, vários magistrados recebem R$ 1 milhão em um único mês. Mas tudo “dentro da lei” e com “muita preocupação social”.

No próximo artigo, tratarei de recente decisão sobre a possibilidade de considerar contribuições anteriores a 1994 para cálculo do benefício.

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Paulo Tafner

É economista, doutor em ciência política e diretor-presidente do Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social (Imds). Especialista em previdência, publicou diversos livros, entre eles, "Reforma da previdência: por que o Brasil não pode esperar?", escrito em conjunto com Pedro Nery