A esmagadora maioria de críticos da reforma da Previdência e a totalidade dos partidos de esquerda – que, como sabemos, votaram contra a reforma – cansaram de acusá-la de “neoliberal”.
A bobagem é tamanha e a ignorância, tão gigantesca que, quando alguém não tem um único argumento contra alguma proposta, a platitude intelectual entende que dar um apelido que nada significa é uma crítica relevante.
Assim tem sido com praticamente todas as propostas de modernização e melhoramento das instituições no Brasil.
Privatizar estatais que atendem prioritariamente seus funcionários é “neoliberal”; modernizar o setor público, com alterações no contrato de trabalho de servidores públicos, é “neoliberal”; conferir autonomia legal ao Banco Central é “neoliberal”; buscar alternativas para o baixíssimo nível de prestação de serviços nas áreas de educação e saúde é “neoliberal”; revalorizar as agências reguladoras e garantir-lhes autonomia técnica é também “neoliberal”.
Alterar a Previdência então, nem se fala. É “neoliberal” e pronto. E, com isso, o debate fica indigente. Esse, costumo dizer, é o “lumpem” argumento. É a escória dos argumentos. Um slogan, um apelido. Na essência, não é nada. É o vácuo de ideias.
Comecemos por imaginar um país fantasioso com um sistema previdenciário com as seguintes características:
(1) Trabalhadores pobres se aposentam em média nove a dez anos depois de trabalhadores médios e ricos;
(2) Praticamente todos recebem mais do que contribuem, mas os trabalhadores mais ricos recebem muito mais de transferência do que trabalhadores pobres. Quanto a isso, vejamos um simples exemplo: um mecânico desse país ganha em média R$ 2 mil. Um servidor público ganha R$ 10 mil. Imagine que se aposentem na mesma idade (o que viola a característica 1, mas vamos em frente…). A transferência liquida para o mecânico será de R$ 224,98 mil, mas. para o servidor público. de R$ 1,275 milhão. Se for um servidor público de elite (Judiciário, MP, Defensoria, Tribunal de Conta ou Legislativo), então a transferência supera os R$ 3,66 milhões, podendo, em alguns casos, superar a casa do R$ 4,5 milhões;
(3) Para dois trabalhadores igualmente pobres, aquele que nunca contribuiu para a Previdência ganhará mais do que se tiver contribuído;
(4) Para algumas categorias de trabalhadores, há regras diferentes. Em geral, as categorias que ganham mais têm regras mais benevolentes: por exemplo, além de se aposentarem mais cedo, ganham mais e, na contagem de tempo, têm “aceleradores”;
(5) Mulheres, apesar de viverem, em média, sete anos mais do que os homens podem se aposentar cinco anos mais cedo (isso antes da reforma “neoliberal” que reduziu a diferença para três anos); e
(6) Alguns trabalhadores podem acumular vários benefícios. Desses, quase 85% estão entre os 10% com remunerações mais elevadas.
Poderia citar mais algumas características, mas seria por demasiado cansativo. Paro por aqui para poupar o leitor. Apenas mais uma informação sobre esse país: seu regime de Previdência funciona em repartição simples, ou seja, aqueles que hoje trabalham sustentam os benefícios de idosos e esperam que, no futuro, quando tiverem 60 anos ou mais, a geração jovem os sustente.
Mas já sabemos que, em futuro breve, não haverá juventude em número suficiente para sustentar os atuais ativos. A demografia mudou, as famílias têm poucos filhos e estamos vivendo mais. Assim, haverá muito idoso e pouco jovem.
Diante de um país/sistema de Previdência com essas características e com essa demografia, pergunto: alguém em sã consciência acha que esse sistema é bom? Esse sistema é justo? Esse sistema protege e defende os mais expostos da sociedade? Reformar esse sistema é algo ruim?
Vejamos. A reforma proposta praticamente não altera em nada a vida de quem recebe Benefício de Prestação Continuada (BPC), aposentadoria rural ou se aposenta por idade.
Afeta aqueles que se aposentam por tempo de contribuição e funcionários públicos. Entre os primeiros, os mais afetados são aqueles que recebem os maiores benefícios, de R$ 3 mil, R$ 4 mil ou mesmo de R$ 5 mil.
Se não são ricos – e, em geral, não são – estão longe de ser pobres. Em geral, se aposentam com idades mais precoces e recebem benefício por longos períodos. São também os que mais acumulam benefícios.
Entre servidores públicos, o impacto da reforma é bem maior. Serão afetados pela redução da transferência líquida, pelo maior prazo de contribuição e pela redução do valor do benefício.
Em termos médios, a transferência líquida para esse grupo será diminuída em R$ 157 mil, mas será progressiva, ou seja, para os marajás esse impacto será bem maior. Para aposentadorias superiores a R$ 20 mil, a redução de transferência será superior a R$ 1 milhão de reais.
Assim, pergunto: reformar esse sistema, fazendo com que trabalhadores se aposentem com a mesma idade, reduzindo as transferências a todos, mas sobretudo aos mais ricos, limitando a acumulação de benefícios (algo que, como já mostrei, beneficia as camadas mais abastadas da sociedade) e fazendo severo corte em privilégios dos servidores públicos é atentar contra princípios fundamentais de igualdade e de justiça? É algo que vai na direção contrária ao do povo trabalhador? Não creio.
Somente o desconhecimento do tema pode levar alguns a serem contra. Fora isso, ou são interesses corporativos, ou simplesmente desonestidade intelectual, moral e de princípios. Alguns poderão dizer que é apenas “luta política”. Mas, nesse caso, a “luta política’ vai contra a grande maioria do povo pobre desse país.
Para esses, a desonestidade é tamanha que, em vez de claramente defender privilégios e iniquidades – o que, aliás, podem legitimamente fazer –, escamoteiam suas verdadeiras bandeiras e bradam apenas: “É uma reforma neoliberal”, querendo dizer com isso que é uma reforma que prejudica os trabalhadores mais pobres.
São ardilosos. Defendem os privilégios e as injustiças, mas se vendem como defensores dos pobres. Mas o slogan é chamativo: reforma “neoliberal”.
Eis a terceira bobagem que prosperou durante certo tempo.