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Comecemos com um exemplo hipotético[1] com feições reais. Imaginem os seguintes personagens: Carlos Braga, casado com Miriam, e Otoni Santos, casado com Solange. Ambos os casais vivem com muitas dificuldades. Tanto Carlos quanto Otoni têm baixa qualificação. Carlos oscila entre a formalidade, o desemprego e a informalidade, mas lutou a vida inteira para contribuir para a Previdência. Otoni vive as mesmas dificuldades, mas não acredita na Previdência. Ele jamais contribuiu para a Previdência Social. Suas mulheres, além de cuidarem da casa e dos filhos, fazem bicos e conseguem eventualmente alguma renda. Jamais contribuíram nem se inscreveram na Previdência Social.
Aos 65 anos, Carlos se aposenta. No mesmo ano e com a mesma idade, Otoni requer o benefício da LOAS (Lei Orgânica da Assistência Social). Ambas as esposas são 3 anos mais novas do que eles. Três anos mais tarde, Solange – esposa de Otoni – vai ao posto do INSS e descobre que pode pedir um LOAS para si, apesar de seu marido receber 1 salário mínimo (R$ 998,00). Feita a solicitação e comprovada a renda familiar da LOAS, dois meses depois ela passa a receber o benefício.
Solange conta para Miriam, esposa de Carlos, e esta vai ao posto do INSS. Ao chegar lá, descobre que não está habilitada a receber o benefício, apesar de viverem com os mesmos R$ 998,00 e terem a mesma renda familiar per capita. A diferença é que o benefício previdenciário – a aposentadoria de Carlos, que é um benefício contributivo – entra na conta da renda per capita, enquanto a LOAS não entra. Ela poderá receber um benefício de pensão apenas quando ele faltar. Se ele falecer aos 81 anos, ela terá então 78 anos.
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Carlos vai ao posto do INSS, argumenta, discute com o gerente da repartição, diz que a mulher de seu compadre recebeu, argumenta que a vida inteira lutou para pagar o INSS; e que Otoni, apesar de seu compadre e boa gente, jamais pagou um centavo à Previdência. Fala em voz alta e pergunta: como é possível que alguém, sem nunca ter contribuído para a Previdência, possa receber o dobro do que ele e Miriam recebem, depois de ter contribuído por anos para o INSS? Nada, no entanto, altera a situação: Miriam não pode receber a LOAS porque Carlos Braga recebe aposentadoria de 1 salário mínimo.
Ambos os casais são igualmente pobres. Ambos lutaram a vida inteira para criar e sustentar a família. Um contribuiu; outro não. Quem contribuiu não pode receber a LOAS. Quem não contribuiu pode. Onde está a justiça social dessa regra?
Chateado, Carlos Braga volta para casa de ônibus lotado, não consegue lugar para sentar, o calor é insuportável e ele não é mais um garoto. O ônibus começa a andar aos solavancos. Ele ouve ao fundo um trecho de uma canção: “Que país é esse?”[2]
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Se considerarmos as esperanças de vida e a geração de um benefício de pensão quando Carlos morrer, o fato é que o casal Otoni/Solange – que nunca contribuíram um centavo para a Previdência Social – receberá o dobro do recebido por Carlos/Miriam.
A injustiça de benefícios de valores iguais
A Constituição determinou que o menor valor de benefício previdenciário e assistencial para idosos e deficientes fosse o salário mínimo. Assim, aqueles que contribuem sobre o piso previdenciário e aqueles que não fazem qualquer contribuição podem receber o mesmo valor de benefício. Chama a atenção, porém, o princípio legal de que contribuições diferentes implicam valores de benefícios diferentes no caso da previdência, mas não no caso da assistência social.
Mas será que aposentados que recebem apenas 1 SM e beneficiários do LOAS são muito diferentes? Tafner (2005) mostrou que não há praticamente distinção sócioeconômica entre os trabalhadores que ganham aposentadoria de 1 SM e beneficiários do BPC. Identificou que indivíduos acima de 50 anos que não contribuem para a previdência vivem no limiar da pobreza, têm baixa educação e reduzida chance no mercado de trabalho. E essas são as mesmas características daqueles que, com renda de trabalho ganham até 1,2 SM, à mesma idade contribuem para a Previdência Social. Em realidade, nesse grupo, 56% deles contribui e 44% não contribui. E essa proporção cresce à medida que ficam mais velhos (a taxa de não contribuição cresce sistematicamente a partir dos 50 anos).
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Não deve surpreender que existam muitos indivíduos pobres, com baixa instrução e sem chances no mercado de trabalho que não contribuem a partir do 50 anos de idade. As regras se tornam injustas na medida em que, dos indivíduos com as mesmas características, pelo menos metade faz contribuição e que, por fazerem esse sacrifício, estão eventualmente limitando a possibilidade de obtenção de um benefício assistencial para seu cônjuge e suas famílias. Para agravar, essas regras induzem à informalidade e à queda na arrecadação da previdência.
A LOAS e a erradicação da pobreza
O argumento básico para a fixação de benefício de 1 SM para os beneficiários da LOAS é que isso seria o valor que erradicaria a pobreza. É certo que quem recebe benefício assistencial – como também muitos dos que recebem benefícios previdenciários de 1 piso – seriam pobres sem esses recursos.
Será, porém, que é necessário 1 SM para retirar esses indivíduos da pobreza? Suponha que, em média, esses indivíduos precisassem apenas de R$ 400 para saírem da pobreza. Isso significa que transferir qualquer real a mais para esses indivíduos a partir dos R$ 400 deixa de ter qualquer efeito sobre os níveis de pobreza. Em outras palavras, os primeiros R$ transferidos são cruciais para atingir segmentos pobres, mas o mesmo não se aplica para os seguintes.
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Transferir recursos assistenciais aos indivíduos pobres é uma missão nobre da sociedade. É justa e necessária. Entretanto, transferir recursos além dos necessários para retirar da pobreza indivíduos idosos, deixando que crianças e jovens permaneçam na extrema miséria, é pouco justificável. Fazer escolhas é papel intrínseco de todo governante e também da sociedade. Esse é um desafio que teremos de enfrentar. E propostas justas e eficientes sob a ótica alocativa devem ser analisadas com atenção e cuidado. Veremos isso ao final do artigo. Antes, porém, vamos conhecer um pouco da LOAS.
A evolução da assistência social
A Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS) classifica os amparos assistenciais em duas espécies: portadores de deficiência (55% dos benefícios emitidos[3]) e idoso (45%). Esse benefício, desde 1996, vai progressivamente substituindo o benefício RM (Renda Mensal Vitalícia) para idoso. O valor do benefício do amparo assistencial é de um salário mínimo para ambas as espécies. O benefício é concedido ao idoso de 65 anos ou mais cuja renda mensal familiar per capita for inferior a ¼ do salário mínimo. É também concedido às famílias com este nível de renda per capita com pessoa portadora de deficiência. Diferentemente do benefício previdenciário, o assistencial recebido por um membro de uma família não é considerado para efeitos do cálculo da renda mensal familiar. Como foi visto anteriormente, isso produz iniquidades.
O volume de benefícios assistenciais ao idoso cresceu 4 vezes nos últimos 21 anos (dados do Anuário Estatístico de 2017): de aproximadamente 501 mil benefícios emitidos em 1996, passou para 2,022 milhões de benefícios em 2017. Isso equivale a uma taxa média de expansão de quase 7% ao ano. O crescimento da concessão desse benefício foi tão acelerado que, nesse mesmo período, mais do que dobrou sua abrangência entre a população com 65 anos ou mais, atendendo cerca de 11% desse contingente.
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Como se sabe, o valor desse benefício é o salário-mínimo. E este teve expressivos aumentos reais desde meados da década passada. Combinando o “efeito quantidade” (expansão do número de benefícios) com o “efeito preço” (aumento real do salário mínimo), o resultado é que os gastos com este benefício, entre 1996 e 2017, aumentaram em termos nominais 13,5 vezes no período: de 56,1 milhões de R$ em 1996 (dezembro) para R$ 1,892 bilhões em 2017, no mesmo mês. O gasto foi multiplicado por mais de 33 vezes, equivalendo a uma taxa anual de mais de 18%. Se considerarmos os gastos reais (INPC), o crescimento real médio anual foi superior a 12%. É uma expansão considerável!
Perfil dos beneficiários e informações adicionais
Os dados da Previdência Social são insuficientes para a devida caracterização do público beneficiário. Por outro lado, a Pnad tem cobertura parcial desse público. Isso porque, muito provavelmente, parte dos respondentes informa receber aposentadoria ou pensão, em vez de informar que recebe benefício assistencial. Apesar da limitação, é possível utilizar essa base de dados para fazer a caracterização do público que recebe o benefício assistencial ao idoso. A maioria deles é formada por mulheres, chefes de família e indivíduos sem instrução.
Fato importante é que as famílias destes idosos não têm crianças morando com eles (mais de 70%) e são formadas principalmente por casais que vivem sem filhos ou com filhos maiores. Essa composição familiar explica em parte por que elevações no valor do salário mínimo têm pouco impacto sobre a pobreza das crianças[4].
Esse benefício assistencial retira muitos idosos da pobreza, mas não crianças. O reconhecimento disso é fundamental, uma vez que, na defesa das chamadas “políticas sociais dedicadas aos pobres” os defensores do “status quo” alegam, sem uma única evidência, que aqueles que discutem essas políticas querem acabar com elas. No discurso político, essa linha de argumentação passa a impressão de que há quem, no debate, defenda extinguir o benefício do LOAS, o que não passa de uma “lenda urbana”. A rigor, o que se questiona não é a existência do benefício em si, mas a eficácia de aumentos contínuos e reais do seu valor, bem como seu desenho institucional.
A LOAS, de fato, tira milhões de pessoas da exclusão, mas aumentar continuamente seu valor real ou manter a concessão à mesma idade dos trabalhadores que contribuíram para a previdência produz apenas aumento de gastos e desincentivo à contribuição.
Após o pagamento do benefício, menos de 10% dos idosos que recebem a LOAS continuam sendo “pobres” e menos de 1% são “extremamente pobres”. Como o número de indivíduos beneficiários é pequeno comparado ao total da população, a LOAS tem reduzido efeito na incidência total de pobreza e extrema pobreza, que estão fortemente concentradas em crianças e jovens. Entretanto, entre os recebedores, essa transferência tem peso importante. Isso revela que o benefício, apesar do pequeno impacto para o conjunto da população, tem enorme impacto nos níveis de pobreza e miséria do publico beneficiário, indicando boa focalização.
Boa focalização, entretanto, não implica que todos os reais (R$) recebidos pelo público beneficiário permaneçam igualmente bem focalizados. Suponha um pequeno segmento social que seja pobre. Transferir recursos para esse segmento é desejável. Suponha, porém, que a deficiência de renda[5] desse grupo seja de apenas R$ 100,00. Logo, para retirá-los da pobreza bastaria transferir esse montante, de modo a retirar todos da pobreza. Um programa de transferência de renda que atinja esse público será bem focalizado, mas todo real excedente a partir dos R$ 100,00 não reduzirá um milímetro a pobreza, dado que todos já teriam saído da pobreza. Esse é o caso em boa parte dos beneficiários do BPC: mais de 45% de seus beneficiários deixariam o limite de pobreza com menos da metade do salário mínimo. Pagamos demais para muitos e de menos para uns poucos. Com o mesmo recurso gasto, poderíamos retirar todos os idosos dos limites da pobreza e ainda sobrariam recursos.
A proposta do governo para o BPC: virtudes e possíveis ajustes
A PEC trata da questão no Art. 41 e define claramente que, “até que entre em vigor nova lei”, à pessoa que comprove estar em condição de miserabilidade será assegurada renda mensal de R$ 400,00 a partir dos 60 anos de idade. No parágrafo 1º fica definido que esse benefício terá seu valor elevado para 1 SM a partir dos 70 anos de idade. Trata-se, portanto, de uma regra transitória, até que lei específica seja promulgada.
Dito isso, dadas as reações daqueles que bradam “defender os pobres”, mas que tratam a pobreza como objeto de análise sociológica (rudimentar), ou que simplesmente usam a pobreza como discurso político vazio, porém de fácil aceitação, há, sem sombra de dúvida, espaço para aprimorar o texto e entregar algo melhor à sociedade.
Como vimos, o BPC, na média, está bem focalizado; retira da pobreza 90% do grupo idoso pobre ou extremamente pobre; está concentrado em indivíduos de baixa escolaridade, predominantemente mulheres, que vivem sozinhas, ou com parceiro(a) e praticamente sem crianças no domicílio. Vimos ainda que a partir dos 50 anos o potencial público futuramente elegível para o benefício vive no desemprego ou informalidade e reduz dramaticamente a contribuição ao sistema. Para esse último grupo, não há alternativa senão esperar os 65 anos para receber o BPC. Poderíamos pensar em aprimorar a focalização para esse grupo? Não apenas poderíamos, como deveríamos. Pois bem, isso em essência, é o que propõe o governo em sua proposta. Antecipar o pagamento, com valores reduzidos, virtualmente eliminará a pobreza no grupo etário 60-65 anos e estará muito bem focalizado. Aumentar a idade em que receberão o valor de 1 SM terá efeito positivo sobre os níveis de contribuição, o que é algo salutar e desejável.
Vejamos alguns dados: aos 65 anos de vida uma mulher espera viver mais 20,1 anos e um homem, mais 16,9 anos. Atingirão, respectivamente, 85,1 anos e 81,9 anos. Na média, a esperança de vida é de 18,7 anos, atingindo, portanto os 83,7 anos (dados IBGE 2017).
Nas regras atuais, um homem receberá ao longo da vida R$ 202 mil, uma mulher R$ 241 mil e, na média, indivíduos idosos receberão R$ 224 mil por intermédio do BPC. É possível redesenhar esse benefício de modo a aliviar a pobreza a partir de uma idade inferior aos atuais 65 anos, posto que se sabe que esses indivíduos estão estruturalmente em situação de vulnerabilidade, com reduzidas chances de obter renda regular com trabalho. Por que esperar os 65 anos e condenar esses indivíduos a viverem na pobreza até essa idade, se sabemos que assim eles viverão?
Diante desse fato e a título de contribuição ao debate, estou trabalhando na formulação de uma proposta alternativa que pode ser abraçada por parlamentares que buscam a melhoria efetiva do bem-estar da população, sobretudo daqueles que vivem na pobreza e no limiar dela e que não são mais capazes de obter renda com seu trabalho.
Basicamente, a proposta seria antecipar o direito ao benefício à idade de 62 anos para ambos os sexos, concedendo valores progressivamente maiores até os 68 anos, quando o beneficiário passaria a receber o equivalente a 1 SM. Entre 62 e 64 anos, o beneficiário receberia R$ 400,00; entre 64 e 66 anos, receberia R$ 500,00 e entre 66 e 68 anos, receberia R$ 600,00. O montante nominal recebido ao longo da vida seria praticamente o mesmo (em todos os casos, ele é ligeiramente maior, 0,3% maior). Mas o mais interessante é que em termos reais – considerando uma taxa de desconto de 6% ao ano – a renda total recebida por esse indivíduo será 2% maior.
Em economia há um princípio – e que deveria ser aplicável a todos aqueles que têm bom senso – que diz que, se uma medida não piora a situação de ninguém – e o que acabamos de mostrar é exatamente isso – e melhora a situação de pelo menos um indivíduo, ela é preferível ao “status quo”. Nesse caso, a proposta formulada não melhora a situação de apenas um indivíduo, mas de todos aqueles potenciais candidatos ao BPC. E tem a virtude de ser neutra sob a ótica fiscal.
Caberá ao governo e suas lideranças entenderem as virtudes da iniciativa apresentada na PEC, enfrentar o debate, desmascarar pretensos defensores dos pobres e fazer aprovar a medida, ainda que com ajustes, como os que aqui apresentei.
[1] Esse exemplo foi extraído (e simplificado) do Livro Demografia a ameaça invisível, produzido em coautoria com Fabio Giambiagi, Cap. 13.
[2] É por isso que as alegações, no calor das disputas políticas, de que haveria grupos ou pessoas “contra os pobres” são em geral muito mais apelativas do que racionais. Vale, a propósito, lembrar a frase do policial Javert a Monsieur Madeleine, na magnífica obra “Os Miseráveis”, de Vítor Hugo: “Que fácil é ser bom. O difícil é ser justo”. Mario Vargas Llosa, já no final século XX, na análise do livro de Vítor Hugo, em “La tentación de lo imposible”, iria destacar o fundo do dilema de alguns dos grandes dramas humanos, em situações nas quais o Bem e o Mal não podem ser rigidamente separados e reconhecidos entre si.
[3] Dados de dezembro de 2017 do Anuário Estatístico da Previdência Social.
[4] Transferências entre membros de famílias que não moram no mesmo domicílio não são detectadas pela Pnad.
[5] Define-se como “deficiência de renda” a distância entre a renda “per capita” desse grupo e uma linha de pobreza ou de extrema pobreza.