A insegurança jurídica trazida pelo Judiciário

É imperioso que líderes políticos e parlamentares dediquem sua atenção ao devido reequilíbrio de poderes, impedindo excessos e evitando riscos institucionais

Paulo Tafner

Importante: os comentários e opiniões contidos neste texto são responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a opinião do InfoMoney ou de seus controladores

(Shutterstock)
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Nos dois artigos anteriores tratei de decisões do Judiciário que, além de implicarem enorme aumento dos gastos previdenciários, representaram verdadeira afronta à democracia e ao equilíbrio entre os Poderes.

Não seria exagero dizer que o Judiciário está fazendo as vezes do Legislativo. Passou a fazer leis sem ter mandato para tanto.

Mas somos uma democracia ímpar: o Judiciário quer ser Executivo e Legislativo. Este último, por sua vez, às vezes dá a impressão de que concorda com essa invasão.

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Há casos de parlamentar que recorreu ao Judiciário para que este suspendesse matéria legislativa encaminhada pelo Executivo local para que não fosse apreciado e deliberado. Melhor faria se renunciasse ao mandato.

No presente artigo, vou tratar de decisão recente do STJ que permite que sejam considerados períodos anteriores a 1994 para apuração do valor do benefício previdenciário. Nossa torcida é que o STF revogue essa equivocada e inoportuna decisão. Vamos aos fatos.

Um sistema previdenciário que seja justo e sustentável deve obedecer a pelo menos dois princípios elementares. Um deles é que o princípio de reposição da renda média de contribuição do trabalhador deve considerar todo o seu histórico laboral. Tempo de contribuição e valor médio de contribuição definem a receita, bem com o benefício a ser recebido.

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Como sabemos, ao longo da vida, nossa renda tem uma “curva” em formato de “U” invertido. Começamos ganhando pouco e ao longo do tempo nosso rendimento melhora. Até um ponto. Depois disso, há uma tendência de queda – por isso, o “U” invertido. Claro que esse formato varia de trabalhador para trabalhador, mas é uma adequada representação.

Outro princípio é que o montante médio de contribuições deve ser pelo menos igual ao montante médio de recebimento de benefícios, de modo a evitar déficits.

Estivemos longe de ambos os princípios, como veremos a seguir, ainda que ao longo dos últimos 40 anos tenhamos conseguido fazer ajustes aqui e acolá. Com o fator previdenciário, conseguimos dar certo equilíbrio entre contribuições e recebimentos. Foi um enorme avanço.

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Como sabemos, a presidente Dilma produziu um retrocesso permitindo que fosse adotado o critério de pontos, conhecido como a “regra dos 85/95”. Com a recente Emenda 103/19, conseguimos resolver esse problema e, também, considerar todo o período contributivo a partir de 1994 (e não os 80% maiores*).

Já são 25 anos a serem levados em consideração e, em mais uma década, teremos praticamente todos os trabalhadores tendo valor de contribuição calculado sobre todo o seu histórico contributivo.

Lamentavelmente, como mostrarei adiante, o Judiciário decidiu escrever um novo artigo na lei e sempre com o nobre intuito de produzir maior justiça social.

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Como já disse aqui antes, se querem fazer justiça, devem se apresentar como candidatos, disputar eleições e, se eleitos, apresentar projetos e fazê-los aprovados. Como juízes, devem apenas aplicar a lei. E nada mais.

Se fizessem isso em jornada igual a de todos os demais trabalhadores com apenas um mês de férias e sem recesso, talvez tivéssemos mais justiça e mais celeridade. Dito isso, vamos à história.

Em 1960 a lei 3807, conhecida como Lei Orgânica da Previdência, definiu que o benefício seria calculado sobre a média dos “salários sobre os quais o segurado haja realizado as últimas (doze) 12 contribuições mensais contadas até o mês anterior ao da morte do segurado, no caso de pensão, ou ao início do benefício, nos demais casos.”

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Foi assim que, durante décadas, todos os profissionais liberais passavam a vida contribuindo sobre um salário mínimo e, nos 12 meses anteriores à sua aposentadoria, elevavam a contribuição para cinco, dez ou mesmo, por um curto período, 20 SM. E, com esse valor, se aposentavam.

Não é difícil perceber que as contribuições representavam uma ínfima parte do que receberiam como aposentados e seus dependentes depois de sua morte, sob a forma de pensão. O ganho de poucos era o prejuízo de muitos.

Três décadas se passaram até que a lei 8.213/91 definiu em seu art. 29 que o período para apuração do cálculo do valor do benefício passaria a ser estendido para as 36 últimas contribuições. Era um grande avanço, mas evidentemente, ainda muito insuficiente.

Lembro-me perfeitamente que muitos profissionais reclamaram dessa mudança afirmando que isso era uma violência, uma quebra de contrato e blá, blá, blá.

É incrível como no Brasil o privilégio ficou tão enraizado que as pessoas não se sentem constrangidas ou envergonhadas quando um pouco de seu privilégio lhe é subtraído. E o mais incrível é que partidos ditos populares, “de esquerda”, lutam desesperadamente pela manutenção de privilégios. Esquecem que alguém sempre paga a conta, em geral os mais pobres.

Mas vamos adiante. Somente em 1999, com a lei 9.876/99 (26/11/1999), passou a vigorar a regra de se tomar as 80% maiores contribuições para o cálculo da média. Passou então a ser considerado todo o período contributivo a partir de julho de 1994. E esse marco tinha razão de ser: a moeda era estável, o que evitava infindáveis discussões acerca de índices de atualização monetária e o INSS passara a ter controle quase que total sobre contribuições.

Desde então, esse tem sido o procedimento para o cálculo da média do valor de contribuição. Sobre esse valor, aplica-se então a regra do fator previdenciário ou alternativamente, pós-Dilma, a regra de pontos 85/95.

A lei definia que, para todos que entrassem no mercado de trabalho a partir de então, o cálculo da média contributiva seria 80% das maiores contribuições desde seu início laboral. Para aqueles que já estivessem no mercado de trabalho, a contagem iniciaria a partir de julho de 1994 ou quando o trabalhador tivesse começado a contribuir, se em data posterior.

Milhões de benefícios foram concedidos desde então, tendo como regra essa definição legal. Foram milhões de aposentadorias por tempo de contribuição, por idade, por invalidez, pensões por morte etc.
Somente com a promulgação da EC 103, de 12/11/2019, essa regra foi mudada, passando a valer a regra da média de 100% de todas as contribuições tomando como data de início julho de 1994. Finalmente, depois de 50 anos, passamos a ter uma regra justa e atuarialmente mais equilibrada.

Eis que em 11 de dezembro de 2019 (menos de um mês após a promulgação da EC 103/2019), surge uma decisão extravagante do STJ que em síntese define: “Aplica-se a regra definitiva prevista no art. 29, I e II da Lei 8.213/1991, na apuração do salário de benefício, quando mais favorável do que a regra de transição contida no art. 3º da Lei 9.876/19666, aos Segurado (sic) que ingressaram no regime Geral de Previdência Social até o dia anterior à publicação da Lei 9.876/1999.”

Isso, leitor, significa que todos quantos se aposentaram com base na legislação vigente podem pedir revisão de benefício, considerando o período anterior a julho de 1994.

Mas quem, de todos os aposentados desde então, pedirá revisão? Atenção leitores: somente aqueles que tiverem “vantagem” na utilização dessa regra.

O STJ não apenas aumentou a despesa previdenciária, como sorrateiramente escreveu um novo inciso no texto da Lei 9.876/99 que estabelece que “para aqueles em que o período de apuração anterior a julho de 1994 definir um valor de benefício superior, poderá ser utilizado esse período para apuração”.

Simples assim. Centenas de milhões de eleitores elegeram 513 deputados que votaram uma lei. Boa ou ruim, é a lei. Pode ser modificada? Claro. O que não pode é a lei ser modificada por um colegiado restrito de juízes do STJ, que não tem um único voto do eleitor e que, portanto, não tem mandato para isso.

O relator da matéria, ministro Napoleão Nunes Maia Filho, em seu voto, afirma que “a regra transitória (a que se aplica àqueles que eram contribuintes à época da Lei 9.876/99) deve ser vista em seu caráter protetivo, como é típico do Direito Previdenciário. O propósito do art. 3º da Lei 9.876/1999 e seus parágrafos foi estabelecer regras de transição que garantissem que os segurados não fossem atingidos de forma abrupta por regras mais rígidas de cálculo dos benefícios”.

Caros leitores, sempre achei estranho que autoridades utilizassem o negrito para expressar uma ideia, uma tese. Em tempos mais recentes, tenho observado que, quanto mais desprovida de senso é a ideia, mais negrito é usado.

Ora, utilizando a lógica do relator, poderíamos admitir que o mesmo princípio deveria ser aplicado às legislações anteriores que foram modificando o critério de apuração.

Chegaríamos então ao uso do critério das 12 últimas contribuições. Um verdadeiro disparate. E mais: o caráter protetivo deve ser estendido a quem paga a conta. Proteção exagerada de uns poucos é desproteção ao bolso dos milhões que recebem salário mínimo.

As contas deste novo inciso na referida lei ainda estão sendo feitas pelo Ministério da Economia. Minhas estimativas indicam que poderá chegar a mais de R$ 30 bilhões acumulados em dez anos. Devo destacar que nenhum pobre será beneficiado com essa decisão, esse novo inciso da lei.

Anos se passam e os exageros de cada Poder apenas se acentuam, apesar de nosso sistema de freios e contrapesos. Nesse processo, vemos o Judiciário assumir papel proeminente que vai além de sua competência constitucional e representa séria insegurança jurídica aos agentes e às instituições.

É imperioso que líderes políticos e parlamentares dediquem sua atenção ao devido reequilíbrio de poderes, impedindo excessos e evitando riscos institucionais.

Lamentavelmente, a Previdência tem sido refém de decisões desprovidas de senso por instâncias do Judiciário, com graves impactos nas contas públicas e no bolso dos mais pobres.

* Senadores ditos “populares” propuseram uma transição. Apenas chamo atenção para o fato de que se fosse aprovada essa medida em nada afetaria os populares. Esses, ganham salário mínimo.

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Paulo Tafner

É economista, doutor em ciência política e diretor-presidente do Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social (Imds). Especialista em previdência, publicou diversos livros, entre eles, "Reforma da previdência: por que o Brasil não pode esperar?", escrito em conjunto com Pedro Nery