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Quando pensamos em Bitcoin, ou na classe das criptomoedas como um todo, umas das primeiras constatações é o quão disruptiva essa tecnologia inovadora é. Um software que reúne uma moeda nativa e um sistema de pagamentos descentralizado é algo inédito na história financeira e tem o potencial de perturbar o status quo.
Aliás, o termo tecnologia disruptiva pode ser considerado um neologismo; é a tradução comumente usada para disruptive technology. Mas não há tal adjetivo na língua portuguesa. Disruptive é a qualidade de algo que causa disruption, palavra cuja tradução é ruptura, perturbação ou interrupção. Nada qualifica melhor o potencial do Bitcoin quando aplicado à indústria de pagamentos internacionais. “Disrupção” é precisamente o que o Bitcoin pode causar a uma série de players que têm muito em jogo nesse ramo de mercado.
Já é sabido que o bitcoin pode ser uma excelente alternativa às remessas internacionais de baixo custo, atualmente providas principalmente por empresas como Western Union e MoneyGram. Mas o potencial de ruptura do Bitcoin não se restringe a esse mercado; nos pagamentos internacionais entre empresas, também chamado de B2B, a tecnologia das moedas digitais apresenta-se não apenas como uma alternativa adicional, mas também como uma solução superior, capaz de baratear e agilizar um serviço essencial à economia global.
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Mas para entendermos de que modo isso pode virar realidade, é preciso antes visualizar como funciona a indústria de pagamentos tradicional.
Hoje em dia, o sistema bancário é responsável pela maior parte dos pagamentos efetuados em uma economia. Realizar uma transferência bancária é relativamente simples do ponto de vista do usuário. Mas há diversos terceiros por trás de uma simples transação entre um cliente e um fornecedor. Normalmente, as partes nem têm conhecimento acerca dos intermediários envolvidos na sua instrução de pagamento, contudo, sabem que é preciso pagar alguma tarifa pelo serviço.
No Brasil, por exemplo, quando fazemos um DOC (documento de ordem de crédito) ou uma TED (transferência eletrônica disponível) por meio do internet banking, o banco é apenas o primeiro intermediário e, talvez, o único visível. Mas quem processa as TEDs e liquida os DOCs não são os bancos, é a CETIP (Central de Custódia e de Liquidação Financeira de Títulos). Além disso, há todo o emaranhado de departamentos do Banco Central do Brasil, órgão encarregado da organização, supervisão e fiscalização bancária no Sistema Financeiro Nacional (SFN). Não há maior intermediário do que o próprio Bacen.
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Por isso, quando você pensa que uma simples transferência não deveria ter custo algum, lembre-se de toda a infraestrutura por trás do sistema bancário responsável por executar e validar os milhões de ordens de pagamentos diários no SFN.
Em outros países, a situação do sistema de pagamentos doméstico não difere muito. Nos EUA, por exemplo, as principais redes processadoras dos créditos e débitos das ordens de pagamento são a CHIPS (Clearing House Interbank Payments System) e a ACH (Automated Clearing House), cujos operadores são empresas privadas e o próprio Federal Reserve.
Se em uma simples transferência de valores entre bancos domésticos dois ou mais terceiros fiduciários são envolvidos, em uma transação internacional o percurso do dinheiro é ainda mais tortuoso.
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Cada país tem seu próprio sistema financeiro, em que as transferências são geralmente denominadas na moeda nacional. Somente bancos licenciados pela autoridade monetária local podem operar em dada jurisdição. Transações internacionais dependem da cooperação entre bancos em diferentes países que acessam o sistema financeiro doméstico em cada ponta da transação.
“Essa cooperação é formalizada por meio de uma série de relações bilaterais entre bancos correspondentes”, esclarece Erin McCune, da Glennbrook, empresa americana focada na indústria de pagamentos globais, em um excelente artigo sobre as transferências internacionais.
Hoje o dinheiro se move ao redor do mundo por meio de uma rede de milhares de bancos correspondentes, em que um único pagamento além das fronteiras pode ricochetear entre até cinco instituições diferentes.
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Embora essas relações entre bancos correspondentes permitam o envio de fundos globalmente, elas são custosas, lentas e um tanto complexas. Custosas porque brotam tarifas e taxas ao longo de todo o trajeto do dinheiro – como pode ser visto no exemplo hipotético abaixo – que encarecem uma simples operação.
Dado o envolvimento de uma sucessão de intermediários, enviar dinheiro ao exterior é inevitavelmente complexo. Além disso, a lentidão dos pagamentos transfronteiriços é notória. Em alguns casos, pode levar dias. Isso se as instruções de pagamentos forem efetuadas corretamente. Mas basta errar um código IBAN ou SWIFT para o seu dinheiro pernoitar no éter financeiro por algumas semanas – este que vos escreve já vivenciou a terrível experiência de não ter a menor noção de onde foram parar suas economias por dias a fio; não é nada agradável.
Por falar em SWIFT, essa entidade é outra intermediária fundamental presente nas transações globais. Quando um banco deseja realizar uma remessa de fundos ao exterior, a ordem de pagamento não é enviada por meio de um simples correio eletrônico. É indispensável haver uma forma segura, padronizada e confiável de enviar informações sobre transações financeiras. A esse propósito serve a SWIFT (Society for Worldwide Interbank Financial Telecommunication), fundada em 1973, a qual provê uma rede de comunicação que permite o intercâmbio de mensagens padronizadas em ambiente seguro entre instituições financeiras ao redor do globo.
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Diante desse intricado conjunto de intermediários encarregados de realizar uma mera transferência de dinheiro, é natural considerar o Bitcoin como forma de acelerar e simplificar as transações internacionais. Não surpreende, assim, o painel promovido pela própria SWIFT em seu evento Business Forum, em Nova York, no começo de março, para debater as ameaças impostas pelos protocolos criptográficos ao modelo de bancos correspondentes.
“Realmente não podemos fechar nossos olhos”, afirmou Cheryl Gurz, diretor executivo no segmento de tecnologias emergentes do Bank of New York Mellon Treasury Services. “Se nós, como bancos correspondentes, não ficarmos de olhos abertos, procurando determinar aonde a tecnologia de criptomoedas irá nos levar, novos entrantes vão tirar nosso espaço”.
Segundo Gurz, os bancos precisam perguntar a si mesmos “o que é a tecnologia que está possibilitando o bitcoin mover-se eficientemente com mais visibilidade e a custos inferiores. Como podemos incorporá-la aos nossos sistemas atuais para torná-los mais eficientes, rápidos, baratos e transparentes?”.
Mais players da indústria de pagamentos ecoam as teses levantadas no painel do evento da SWIFT. Em um recente relatório intitulado “Digital Disruption: UK Banking Report”, publicado pela BBA (British Banking Association) em parceria com a consultoria Accenture, fica clara a crescente percepção e a preocupação dos banqueiros com o potencial de ruptura da tecnologia das criptomoedas. “De fato, cada vez mais as criptomoedas parecem estar se tornando desafiantes onipresentes às moedas mais familiares e estabelecidas”, conclui o relatório. “E à medida que crescem em popularidade, aumentam também os riscos para os bancos.”
Apesar de reconhecer que o volume transacionado ainda é pouco relevante para o sistema financeiro como um todo, os riscos não podem ser ignorados, afirmam os autores, uma vez que “os usuários do Bitcoin podem manejar eles próprios muitos dos seus pagamentos diários, sem a necessidade de interação com bancos, evitando a obrigação de incorrer em tarifas bancárias e privando os bancos de uma receita sobre pagamentos valiosa”.
Qual a recomendação do relatório aos bancos? Investir tempo e energia agora para entender como melhor usar a tecnologia por trás do Bitcoin antes que outros players tomem a dianteira e façam essa decisão por eles.
Aperfeiçoar a tecnologia arcaica da indústria de pagamentos global é imprescindível. Sem dúvida alguma, há outras iniciativas buscando criar soluções mais eficientes e menos custosas, como a Earthport, que pretende substituir os milhares de relações entre bancos correspondentes por uma única rede intermediária.
Porém, até o momento, nenhuma tecnologia se compara ao Bitcoin quanto ao potencial de disrupção na indústria de pagamentos.
Recapitulemos brevemente os diversos envolvidos em uma transferência internacional. No modelo atual, você usa um banco para custodiar seus fundos. E, normalmente, esse mesmo banco funciona como o intermediário responsável por realizar seus pagamentos em dinheiro. Dinheiro esse, por sinal, emitido pelo Banco Central. Com a ordem de pagamento, a sua instituição financeira envia ao banco correspondente uma TED, que é processada e liquidada pela CETIP.
O banco correspondente envia, então, a ordem de pagamento à instituição correspondente na jurisdição desejada – nos Estados Unidos, por exemplo. Para a troca das mensagens padronizadas em ambiente seguro, os bancos utilizam-se da rede SWIFT. Recebida e validada a instrução, o banco correspondente nos Estados Unidos transfere finalmente o montante na moeda local ao banco do receptor do pagamento, por meio da rede ACH.
Quantos terceiros podemos contar nesse arranjo? Quantas partes envolvidas em um simples pagamento, uma mera transferência de dígitos eletrônicos? Quais intermediários o Bitcoin poderia substituir? Possivelmente, todos.
Como? Vejamos. Primeiro, o Bitcoin permite ao usuário ser o seu próprio banco, tanto para custódia quanto para transferência de recursos. Segundo, o Bitcoin tem sua própria moeda, emitida de forma descentralizada e competitiva. Não há necessidade de uma autoridade monetária encarregada da política monetária.
Além disso, o Bitcoin é um protocolo que padroniza a linguagem de comunicação em uma rede própria e distribuída que independe de um servidor central, em que a validação e registro das transações ocorrem de forma segura e transparente, mas sem jamais abdicar da privacidade para seus usuários.
A tecnologia disruptiva do Bitcoin é capaz de fazer com que bancos, casas de liquidação, redes de intercomunicação financeira e bancos centrais sejam supérfluos. Não é apenas a indústria de pagamentos que sofrerá disrupção, mas a indústria financeira como um todo. Obviamente, neste estágio de adoção da tecnologia – em que a volatilidade da moeda ainda é relevante – a potencialidade do Bitcoin não pode ser alavancada por completo. Mas isso é uma questão de tempo e evolução da indústria de criptomoedas.
Mas sejamos honestos: que um software reúna todas essas características com potencial de tornar obsoletos ou redundantes intermediários tão arraigados no sistema financeiro mundial é algo digno de fascínio. Uma verdadeira proeza da mente humana. Uma invenção extraordinária, cujas implicações – embora nem sempre aparentes – não podem ser subestimadas.
Toda inovação disruptiva causa um certo encanto. Testemunhar a tecnologia do Bitcoin em funcionamento já é de arrepiar. Especialmente quando se apreendem as consequências que uma adoção mais massificada pode trazer.
Mas o encanto dos usuários é acompanhado da antipatia dos perturbados (os “disruptidos”), aqueles cujo mercado jamais será o mesmo depois da inovação disruptiva. No caso do Bitcoin, o mercado que está prestes a ser sacudido é nada menos que a indústria financeira global. Depois de décadas ou séculos com mínima inovação – em parte fruto da notória e excessiva intervenção estatal –, um pouquinho de disrupção à indústria financeira será muito bem-vindo. Pelo menos do ponto de vista do cidadão comum.