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por Patrícia Genelhú Soares*
Resenha do livro “Desestatização do Dinheiro”, de Friedrich Hayek
Ganhador do Prêmio Nobel de Economia em 1974, Friedrich Hayek foi um pensador excepcional em diversos campos do conhecimento. Considerado um dos maiores representantes da Escola Austríaca de pensamento econômico, procurou sistematizar o pensamento liberal clássico para o século XX. Autor de grandes obras como Os Erros Fatais do Socialismo e Direito, Legislação e Liberdade, em 1944, Hayek já havia publicado O caminho da servidão como prenúncio de conclusões somente hoje realmente evidentes.
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Em sua obra de 1976, a Desestatização do dinheiro, ele trouxe outra ideia muito à frente de seu tempo: o questionamento da dogmática prerrogativa de que o governo deve ter o monopólio da emissão da moeda.
Com conceitos extremamente atuais e amplamente discutidos, Hayek apontava o grande fracasso histórico e perpétuo do governo em suprir o mercado com moeda saudável, antes mesmo dos 50 anos seguintes mostrarem, através de inúmeras depressões, que seu argumento estava correto.
Em um primeiro momento, de expansão da economia monetária, o governo teve um papel importante ao trazer uma referência de moeda única para comparar preços, promovendo a competição e o mercado. Depois, com a adoção dos metais preciosos como meio de troca e reserva de valor, quando a segurança em relação à autenticidade do dinheiro metálico demandava alta complexidade (como a garantia do teor correto de ouro e prata), o governo serviu como autoridade reconhecida para respaldar o uso da moeda.
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Entretanto, tal a utilidade pública indiscutivelmente se perdeu e Hayek elenca quatro usos do dinheiro que teriam um impacto maior sobre a escolha entre os tipos de moeda com a função básica de meio de troca: seu uso para compras à vista, sua utilização para manutenção de reservas, seu emprego em contratos para pagamentos futuros e sua utilização como unidade de cálculo.
Os governos são incapazes de viver de acordo com regras, mesmo que aceitem a filosofia de fornecer uma estrutura estável, pois a pressão de manipular a moeda para fins políticos é irresistível . Com o poder de aliviar temporariamente o desemprego, mesmo que à custa de um desemprego maior no futuro, a política monetária permite cobrir déficits com emissões.
Frente à possibilidade de conceder benefícios materiais e especiais a determinados grupos, o governo se verá sempre incentivado a comprar o apoio de um número suficiente de indivíduos para mantenha sempre o apoio de uma maioria. A atual democracia promove o crescimento do poder governamental através do monopólio sobre a emissão de moeda. Sem barreiras ao uso dos meios disponíveis ou à expansão dos seus recursos além do que lhe foi permitido à custa de inflação e impostos, nada mais desafiador do que refrear a constante expansão de um aparato burocrático sustentado por um crescimento indefinido dos gastos de um governo que não é controlado por considerações de perdas e lucros.
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Por força do governo, o dinheiro, mais importante regulador do mercado, é excluído dessa própria dimensão mercadológica de regulação. As depressões e o desemprego recorrentes são retratados como problemas inerentes do capitalismo, embora sejam consequências do poder ilimitado sobre o dinheiro, usurpado pelo estado.
Hayek considerava que a abolição do monopólio governamental sobre o dinheiro nos libertaria da mais séria ameaça ao funcionamento da economia mundial e à liberdade pessoal: seria a única forma cabível de completar a ordem de mercado e poderia decidir o destino da civilização livre.
Por fim, estaríamos livres dos defeitos do monopólio, desobrigados a consumir moedas insatisfatórias, não confiáveis e suscetíveis a desvalorizações arbitrárias, e diante de um sistema que permite a descoberta de melhores métodos. Uma moeda estipulada por um decreto arbitrário ou autoritário (fiat money) difere muito de uma que seria aceita voluntariamente. Um emissor independente buscaria preservar o poder aquisitivo da moeda, estabilizando seu valor de acordo com a regulação da quantidade de dinheiro emitida.
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Com a concorrência na emissão, quem fornecesse moedas mais adequadas à necessidade do público geraria a depreciação das moedas nacionais, sendo eliminadas como não confiáveis. Isso seria possível, caso o governo não obstruísse o caminho.
Depois de diversas tentativas fracassadas, o Bitcoin surgiu em 2009 como a primeira proposta de moeda digital a ser bem-sucedida e experimentar grande expansão, com toda a complexidade de um sistema alternativo, descentralizado, independente e codificado conforme grandes esforços de programação entre seus idealizadores desconhecidos.
Com estoque máximo limitado e transações registradas na rede, consolidadas em blocos armazenados cronologicamente formando uma corrente (blockchain), o bitcoin foi seguido por inúmeras outras criptomoedas, compartilhando alguns de seus conceitos e inovando em outros, sendo continuamente testadas pelo mercado.
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Não há leitura mais pertinente que a obra de Hayek de 1976 diante de todo o movimento expressivo atual de mercado, com recordes no valor do bitcoin em relação ao dólar e na capitalização do mercado de criptomoedas.
Testemunhamos a ampla migração de grandes investidores institucionais para o novo sistema, com inúmeras empresas aderindo ao novo meio de pagamento e a consolidação da sólida alternativa entre países mais monetariamente fragilizados como Nigéria, Venezuela, Argentina e Turquia.
Hayek já previa a oposição do que chamava de profissionais estabelecidos, alimentados por sistemas de cartéis encorajados pelo próprio governo em países onde a competição entre bancos é restrita há décadas. Tais declarações controversas têm sido compartilhadas por autoridades governamentais como o Banco Central Europeu , além de várias restrições estarem sendo impostas, como as dos bancos do Reino Unido a investidores , e mesmo nossa Instrução Normativa No 1.888, no caso do Brasil.
Todo o incômodo do governo e do mainstream fragilizados por uma eventual disrupção do monopólio estatal da moeda apenas evidencia o sucesso do bitcoin e tecnologias semelhantes. Se a continuidade de tal sucesso depende exatamente de que o governo não estabeleça obstáculos ao seu uso, uma das grandes fragilidades atuais, sobretudo perante o perfil dos investidores que tem migrado para o sistema, é regulatória. Mesmo com dificuldades extremas para o governo regulamentar o uso de criptomoedas, devemos esperar tentativas cada vez maiores de tentativas de contenção dessa enorme ameaça ao poder do estado.
Hayek previa a derrocada da nossa civilização se não transformássemos nossa estrutura política e econômica, privando o governo do monopólio da emissão de moeda. Nenhum capítulo mais importante, portanto, que a disrupção do sistema financeiro que podemos viver nos próximos anos.
Se Hayek considerava seu exercício em plena década de 1970 como uma elocubração intelectual, talvez estejamos finalmente diante de “uma ideia cujo tempo chegou”, da única forma cabível de completar a ordem de mercado, que pode decidir o destino da civilização livre.
*Patrícia Genelhú é associada do IFL-SP, head de Investimentos Sustentáveis e de Impacto no BTG Pactual e graduada em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
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