Cannabis medicinal: riscos e oportunidades

Quase 40 países já legalizaram a cannabis medicinal, motivados tanto pelo mercado de produtos comercializáveis, como pela pressão da população

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Pé de maconha
Pé de maconha

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Por Natália Vasconcellos

O dia 3 de dezembro de 2019 foi uma terça-feira emblemática no Brasil – o dia em que a Anvisa aprovou por unanimidade a venda de produtos à base de cannabis para uso medicinal no Brasil, com validade de três anos.

Quase 40 países já legalizaram o uso da cannabis para fins medicinais, motivados tanto pelo mercado bilionário de produtos comercializáveis, como pela pressão da população que se sente atraída por seu potencial terapêutico.

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A cannabis, ou “maconha”, é um termo utilizado para derivativos das plantas Cannabis sativa e Cannabis indica, que abrange mais de 60 compostos farmacologicamente ativos já utilizados para fins medicinais há milhares de anos e por diferentes culturas.

O delta-9 tetra-hidrocanabidiol, isolado em 1960 (Mechoulam et al.) é o principal composto psicoativo da droga e também o principal responsável por seu efeito de euforia e dependência.

É visto também na etiologia do déficit neurocognitivo e da síndrome de vasoconstricção cerebral reversível – um tipo raro de acidente vascular cerebral que vitima principalmente pacientes jovens e expostos a substâncias precipitantes como a maconha e a cocaína, podendo ocorrer com apenas um dia de uso.

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Por sua vez, o canabinol e o canabidiol, além de sabidamente não produzirem efeito eufórico, agem sobre diversos receptores e são utilizados em doenças neurológicas. Um exemplo é a epilepsia fármaco-resistente, ou seja, aquela que não responde a outras duas drogas antiepilépticas eficazes, toleradas e em doses otimizadas.

Nesses casos, a adição da cannabis ao arsenal terapêutico pode reduzir em até 50% a quantidade de crises epilépticas, particularmente em síndromes como Lennox-Gastaut, Dravet e Esclerose Tuberosa.

Vale também mencionar estudos nos campos da espasticidade em pacientes com esclerose múltipla, e da terminalidade (casos de pacientes com câncer avançado ou outras doenças que não têm cura).

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Nesse momento crítico da vida, evita-se prolongar a obstinação terapêutica (ou distanásia), utilizando a planta com o objetivo de aliviar a dor e o sofrimento. Essa prática já é disseminada em várias partes do mundo, inclusive no Brasil.

No campo da dor, ainda enfrentamos um grande desafio. Por certo, a medicação gera benefícios terapêuticos tanto a pacientes com dor crônica e incapacitante, como também àqueles com náuseas refratárias causadas pela quimioterapia.

Entretanto, um problema recorrente nos prontos-socorros públicos e privados é a existência de uma ampla população de pacientes viciados em medicamentos opioides (morfina, metadona, oxicodona e outros derivativos). A questão fica ainda mais grave quando esses recusam a internação para tratamento da dor com outros métodos, transitando de hospital em hospital na busca de algum médico que esteja disposto a prescrever a medicação viciante.

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Embora seja uma enorme satisfação para qualquer médico aliviar a dor de seu paciente, uma questão não pode ser aqui ignorada: a existência de um grupo de pacientes que apresenta quadro clínico de origem não apenas física (às vezes, nem física é!), mas sim psíquica.

Nesse sentido, surgem as seguintes indagações:

– Como criar uma legislação que contemple o uso da cannabis para dor?
– Qualquer médico, de qualquer especialidade, pode prescrevê-la?
– E a dependência e os efeitos colaterais?
– Esses pacientes foram avaliados por tempo suficiente?

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Em 2018, Devinski e colaboladores publicaram em uma renomada revista médica um estudo randomizado sobre a droga no campo da epilepsia refratária: com 224 pacientes, demonstrou como os principais eventos adversos a ocorrência de diarreia, fadiga, sonolência e inapetência em aproximadamente 10% dos casos.

No entanto, o estudo durou apenas 14 semanas. A dura realidade é que ainda carecemos de grandes estudos randomizados, controlados, cegos e capazes de avaliar com precisão o percentual de benefício, segurança e tolerabilidade da medicação a longo prazo.

Por tal razão, foi estabelecido por lei o prazo muito questionado de três anos, de modo que alguns estudos desse tipo sejam finalizados, e possamos ingressar na “fase quatro” – período em que o medicamento é lançado no mercado real (e não utópico) e possibilita um feedback para a indústria dos efeitos adversos.

É inegável que essa aprovação representa um grande avanço, em especial, no quesito segurança. Todo paciente que já usava a cannabis, mas que tinha que importá-la a custos exorbitantes sem ter acesso a sua composição real, agora pode adquiri-la nas farmácias locais. Obviamente, o Brasil acertou nos quesitos legalidade e transparência, haja vista o benefício, por exemplo, para pais de crianças com epilepsia refratária ou familiares de pacientes em fase terminal e com dor refratária a opióides.

Entretanto, na condição de médica neurologista, não posso deixar de evidenciar o enorme desconhecimento sobre o uso medicinal da cannabis. É fato que o desconhecido, apesar de gerar curiosidade e ser fonte de conhecimento para alguns, também abre espaço para o charlatanismo de outros, principalmente, em situações de vulnerabilidade, como as em que se encontram todos os portadores de doenças crônicas que até o momento não tem cura.

É certo que a informação se propaga rapidamente, e os sites da Internet ajudam nessa busca. Considerando a existência do charlatanismo e do curandeirismo em pleno século XXI, pergunto: podemos confiar em tudo?

É compreensível acreditar no prodígio e no discurso fácil e resolutivo quando se tem uma doença grave e progressivamente incapacitante. Em especial, quando o indivíduo se encontra na fase da negação – sim, ela existe e a maioria passa por ela.

Recordo-me da esposa de um paciente recém-diagnosticado com Parkinson que tinha visto na TV a proposta de um novo tratamento milagroso com o uso da “maconha”. Obviamente, meus colegas e eu da Escola Paulista fomos unânimes em dizer que não havia fundamento nem estudo que validasse o uso da referida substância para tal fim, mas que tínhamos proposta de um outro tratamento, não de algo que resultasse em cura.

Sim, novos estudos podem surgir, trazendo à tona nos usos para essa planta milenar, que atua em inúmeros receptores tanto no sistema nervoso central, como no periférico.

Entretanto, preocupa-me o caso dessa senhora e tantos outros que, ao invés de aceitar a verdade (muitas vezes dura), optam por opções fantasiosas de cura, com abandono do tratamento tradicional (estudado e debatido nas melhores universidades do mundo), em prol de um resultado duvidoso. Na medicina, infelizmente, até o momento aliviamos muito, mas curamos pouco!

Como já dizia o médico canadense William Osler: “na medicina e no amor, nem nunca nem sempre”. Não existe tratamento perfeito, nem medicamento sem efeito colateral.

Em um mundo tech e high, a valorização do médico de confiança e do médico da família, faz-me acreditar num laço mútuo. Acredito que ainda há espaço para a medicina tradicional, para o médico-cientista, que estuda e se dispõe a explicar ao paciente os reais benefícios, o percentual de sucesso e as possíveis complicações de um tratamento, compartilhando até mesmo suas próprias fonte de informação.

Acredito na capacidade de escolha, na liberdade econômica, política e individual, seja pelo “tratar”, seja pelo “não tratar”, seja pelo “viver o que me resta”, seja pelo “quero lutar até o fim”. Mas, tudo isso, de posse da informação verdadeira, atual e de qualidade.

Infelizmente, no assunto cannabis, a medicina está apenas engatinhando. Temos um longo caminho pela frente.

Natália Vasconcellos é associada do IFL-SP e médica pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Estudou neurociências na Universidade de Glasgow, Escócia e é neurologista pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Atualmente cursa mestrado em neurologia na UNIFESP e especialização em neurointervenção na USP-SP.

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