Tempestade econômica

A economia americana está em recessão "técnica", enquanto a chinesa desacelera para o menor crescimento em três décadas. O crescimento brasileiro é sustentável?

Felippe Hermes

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Vista aérea de uma comunidade com construção da  Evergrande em Wuhan, província de Hubei, China. (Getty Images)
Vista aérea de uma comunidade com construção da Evergrande em Wuhan, província de Hubei, China. (Getty Images)

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No auge dos anos 1980, enquanto a lambada tomava conta do Brasil, o mundo vivia um frenesi na economia.

Os EUA enfrentavam uma escassez de petróleo provocada pela Revolução Iraniana de 1979, que levaria a economia americana para uma inflação de 13,5%, a maior da sua história.

Medidas bruscas para elevar os juros foram tomadas, mergulhando países endividados, como os da América Latina, em uma recessão.

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Nesse turbilhão, apenas uma economia parecia inabalável: a japonesa.

A aposta da maior parte dos economistas na época era de que o Japão tomaria o posto da economia americana como a maior do mundo. Os japoneses se tornaram conhecidos pela eficiência, avanço tecnológico e qualidade dos seus produtos.

Marcas japonesas tomavam conta do mundo, enquanto o próprio Japão sentia a euforia desse crescimento. E, em nenhum outro setor, essa euforia superava a do setor imobiliário.

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O preço dos imóveis no país havia se tornado sob qualquer aspecto “surrealista”. Em 1985, um m² chegava a ser negociado por US$ 139 mil nas regiões nobres de Tóquio.

Há uma lenda que o Palácio Imperial, se avaliado conforme o preço da época, teria um valor de mercado de US$ 2,5 trilhões, considerando o m² da região de Ginza, uma área de escritórios em Tokyo. O valor equivaleria a 10 vezes o PIB brasileiro na época, ou todo o mercado imobiliário da Califórnia, o estado mais rico dos EUA.

São números insanos, fruto do que conhecemos como “bolhas”.

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Mas a história pode ser interessante para entender os efeitos da dependência em torno do setor imobiliário, um dos setores mais sensíveis da economia.

Por se tratar de uma área em que a escassez natural atua junto a limitações artificiais, como restrições de governos para construções, é possível que os números sejam inflados sem grande dificuldade.

E um país hoje tem se aproveitado disso como nenhum outro: a China.

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No gigante asiático, terra é um assunto sério. O país possui escassez de recursos naturais que possam atender sua gigantesca população, equivalente a um quinto da humanidade. Desde a Revolução Comunista, em 1949, a China vem estabelecendo um controle rígido sobre a propriedade da terra.

Por lá, a terra é do governo, o que implica na necessidade de se pagar pelo “direito de uso” (algo bastante similar ao modelo inglês, em que algumas terras ainda são propriedade da nobreza).

Esses “direitos de uso” constituem uma fonte importante de renda para governos locais na China.

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Em 2020, por exemplo, governos das províncias chinesas arrecadaram US$ 1,29 trilhão em vendas de direitos de propriedade. Isso equivale a cerca de 9% do PIB do país. Para se ter uma ideia de escala, o ICMS brasileiro, cobrado sobre a circulação de mercadorias, arrecada algo em torno de 7% do PIB.

Esse valor só é possível pois em nenhum outro lugar do planeta a construção civil possui um impacto tão grande na economia quanto na China: o setor responde por 25,7% do PIB chinês, contra 4,9% do PIB americano e 5,7% do PIB brasileiro.

A questão, claro, possui uma explicação no fato de que a China transferiu ao menos 700 milhões de pessoas do campo para as cidades nas últimas três décadas. O país não apenas precisou construir moradias para essas pessoas, como também elas precisou acompanhar sua ascensão social.

Durante esse período, o salário médio do trabalhador industrial chinês cresceu, superando o do brasileiro e dos habitantes de outros países emergentes. Essa população acabou demandando novos imóveis, o que o governo prontamente garantiu por meio de crédito farto.

Ainda assim, é fato que a construção civil é estimulada pelo governo, seja ele o central ou os locais, por ser um setor capaz de impulsionar o PIB.

Isso tem sido bastante benéfico para o Brasil, que, nas últimas décadas, enviou para lá centenas de bilhões de dólares em minério de ferro para sustentar a construção de novos imóveis, além de alimentos para uma população com renda crescente.

Mas trata-se de uma questão pouco sustentável a longo prazo.

Em primeiro lugar porque a China está envelhecendo rápido. O país proibiu, entre 1979 e 2016, que casais tivessem mais de um filho. Isso conseguiu realizar um controle populacional no país, mas diminuiu drasticamente a taxa de natalidade.

Hoje, a média de idade na China beira os 39 anos, contra 28 anos, em média, no início dos anos 2000.

Com menos crianças, há menos adultos entrando para o mercado de trabalho e demandando imóveis próprios.

Ao mesmo tempo, como o país não possui previdência e seguridade social, idosos dependem de seus filhos ou dos imóveis que possuem para gerar renda e se sustentar.

Dada a oferta crescente de imóveis e a demanda em queda, a taxa de retorno tende a cair, deixando milhões de idosos com uma renda deprimida.

Estima-se que os imóveis em cidades como Xangai rendam hoje por volta de 2% ao ano, um valor significativamente baixo para sustentar uma pessoa.

E os dados sobre o setor imobiliário na China demonstram alguns desequilíbrios.

Em junho deste ano, a venda de imóveis novos na China caiu 40%. Nos últimos 12 meses, a arrecadação dos governos locais com a venda de direitos de uso caiu outros 38%.

São números que acendem um alerta sobre a capacidade de o país sustentar um crescimento vigoroso por muito mais tempo. E, principalmente, um alerta sobre a estabilidade social.

Neste momento, milhares de compradores ameaçam dar um calote, parando de pagar suas hipotecas, pois muitos imóveis seguem inacabados por problemas de crédito por parte das construtoras chinesas.

O resultado dos números preliminares aponta para o menor crescimento do PIB chinês desde o início da série histórica em 1992. A expansão ficou em 0,4%, apontando para 2,5% em 2022.

Outros fatores, como lockdowns em províncias como Xangai, também pesam. Mas, ao que tudo indica, eles não devem durar.

Com o mundo presenciando uma possível recessão nos EUA e crise energética, uma desaceleração da China, especialmente em um setor tão sensível socialmente no país, pode ser um catalisador de problemas maiores.

No meio desse cenário instável, o Brasil deve enfrentar uma eleição polarizada e lidar, na sequência, com seus próprios problemas, tributários, fiscais e sociais.

Independente de quem assumir, é importante ter em mente que o cenário lá fora dificilmente será um “céu de brigadeiro”. Estamos longe de um “boom” de commodities duradouro, apesar de altas momentâneas em função do descontrole nas cadeias de suprimentos.

O próximo presidente terá uma tarefa difícil para conduzir o Brasil, o que, por sua vez, demandará ,mais do que nunca, cautela.

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Felippe Hermes

Felippe Hermes é jornalista e co-fundador do Spotniks.com