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Jacob Safra nasceu em Aleppo, quando a capital da Síria ainda era parte do império Otomano. Muito antes de imigrar para o Brasil, e fundar por aqui o banco que faria de seu filho o homem mais rico do país, Jacob construiu uma sólida reputação como mercador de moedas.
Diz-se que uma de suas maiores jogadas se deu ao arbitrar uma questão que hoje soaria absurda. Jacob comprava moedas de ouro com a face de uma imperatriz, em países árabes, e revendia as moedas em países cristãos. O motivo? Em países árabes as moedas com efígies femininas eram negociadas abaixo do seu valor.
No Brasil, o banco Safra, fundado em 1955, cresceu em meio a um constante descrédito e desvalorização da moeda nacional, tornando-se um porto seguro. Mas antes que você desligue achando que isso é um comercial de banco, deixe-me contar um segredo sobre moedas e inflação.
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Como Mario Henrique Simonsen e Rubens Penha Cysne mostraram, bancos e o governo adquiriram riqueza durante anos ao criar moeda. Pelas contas dos dois, o chamado “imposto inflacionário”, chegou a incríveis 4% do PIB. A lógica aí é simples. Se o seu dinheiro perde valor de um dia para o outro, como no Brasil da hiperinflação, logo, quanto mais novo (ou recém-criado), é o dinheiro, mais ele vale.
A pergunta, cuja resposta você já deve saber, é justamente: quem paga? Como o aumento da pobreza e da desigualdade durante a hiperinflação responde, a conta é paga pelos últimos a utilizarem este dinheiro, os mais pobres e desbancarizados.
Não é coincidência, portanto, que o Brasil seja um país extremamente desigual, e repleto de pessoas em situação de pobreza. Nós nos esforçamos imensamente pra isso. Como lembra Nelson Rodrigues, “subdesenvolvimento não se improvisa, é obra de séculos”.
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Foi apenas em 1994 que pudemos conviver com uma inflação menor, e uma moeda estável. Também não por um acaso, a pobreza desabou no Brasil pós-plano real. Apenas em 1994, ano do plano, a pobreza caiu de 25% para 17% da população.
Nos anos seguintes, a população em geral, e em especial os mais pobres, puderam desfrutar de um melhor padrão de vida graças a essa estabilidade da moeda.
Essa história, porém, conta com um outro fator de extrema importância: o orçamento público. Ou seja, a grana que o governo transfere entre quem paga e quem recebe.
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Mesmo com direitos constitucionais e uma carta magna que dê ao governo o papel de garantir estes direitos, como acesso a saúde, educação, moradia e tudo o mais, o orçamento público ainda é de longe bastante concentrado na metade mais rica do país.
Entre 2003 e 2014, por exemplo, destinamos para as 1000 maiores empresas do país cerca de R$ 1,2 trilhão em empréstimos subsidiados, via BNDES e com aportes de recursos do Tesouro. Enquanto isso, programas sociais levaram R$370 bilhões.
Apenas em 2020, o orçamento federal prevê R$ 331 bilhões entre renúncias e subsídios. Cerca de uma vez e meia o custo do Auxílio Emergencial.
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Tamanha quantidade de renúncias distorce a situação do país ao criar incentivos errados para que empresas produzam não de acordo com a eficiência, mas de acordo com o que garantirá maior quantidade de benefícios fiscais. A conta, é claro, também fica para os mais pobres.
Como ocorreu na reforma da Previdência que, ao criar uma idade mínima, impediu que a classe média se aposente até 11 anos antes dos mais pobres (em média uma pessoa com carteira assinada de classe média se aposentava aos 54 anos, contra 65 de informais que se aposentavam apenas por idade), a reforma tributária também é uma questão importante para redistribuir renda.
Pegue por exemplo a cesta básica. Ao abrir mão de impostos para “beneficiar os mais pobres”, o governo permite que o salmão ou o queijo brie (cujo kg costuma custar metade de um bolsa família), tenham menos impostos. Tudo em nome dos mais pobres, claro. O resultado, como lembra o economista Marcos Lisboa, é que cada R$ 12 em desoneração da cesta básica, tem o mesmo efeito em redução da pobreza que R$ 1 em Bolsa Família.
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Ainda assim, é preciso discutir o gasto atual, sabendo que outras questões devam ser complementares. Como na própria inspiração do Bolsa Família, saído de ideias dos economistas da mesma Universidade de Chicago que Guedes se orgulha de ter frequentado, vale a pena olhar a experiência internacional e vermos como podemos melhorar.
Renda Básica e Utopia
Publicado em 1516, Utopia é um livro escrito por Thomas More, que narra a viagem de um marinheiro português a uma terra distante, chamada Utopia. Por lá, não há propriedade privada, dinheiro, fanatismo religioso e outros “males”, na visão de More (que viria a ser canonizado santo pela igreja).
Em utopia, nasce o conceito de renda básica universal. A ideia é que a sociedade pudesse ser realmente livre (exceto os escravos, mas essa é uma outra questão literária), ao desfrutarem da vida sem grandes preocupações.
Ao redor do mundo, a renda básica de More já foi testada algumas vezes. Na Finlândia por exemplo, um experimento de cerca de 2 anos, feito com 2000 pessoas desempregadas escolhidas aleatoriamente, terminou com as seguintes conclusões: a saúde, a autoestima e o bem-estar dos beneficiários melhorou. Os resultados profissionais, porém, não tiveram qualquer melhor significativa.
Em outros casos, como no Alaska, o governo mantém com sucesso uma política de distribuição dos royalties do petróleo, que garante US$ 2000 a cada habitante.
Nos Estados Unidos, Richard Nixon defendeu a proposta em sua reforma do aparato de seguridade social americana. A ideia foi rejeitada pelo congresso, mas aprovada em menor escala em 5 ocasiões distintas nos 20 anos seguintes.
Em um paper sobre o assunto, o Instituto de Pesquisa de Stanford concluiu que a aprovação de um “imposto de renda negativo”, leva a uma redução de 9% nas horas trabalhadas por homens, e 18% em mulheres que estejam casadas. Segundo a análise, o casal que se qualifica para receber a renda utiliza entre 50 e 60% do valor para cobrir renda perdida por menos trabalho.
Por outro lado na Índia, que aplicou programas similares em dezenas de vilarejos, os resultados apontaram uma melhora de 25% nos índices educacionais.
Educação, claro, segue sendo o principal fator de melhora de qualidade de vida e aumento na renda. Este é de longe o ponto central de qualquer experimento bem sucedido até o momento.
De volta ao Brasil, não é difícil perceber que apoiar nossas crianças, ausentes no orçamento, é um meio muito mais eficaz de combater a pobreza. Por aqui, cerca de 3% dos idosos vivem na pobreza, enquanto 22,6% das crianças vivem na Extrema Pobreza, e 47,8% vivem na pobreza.
Uma olhada rápida na planilha do orçamento federal e você verá que 56% dele é destinado aos idosos e beneficiários da previdência social, enquanto o Bolsa Família, cuja função é atuar em famílias que tenham crianças menores de idade, fica com meros 2% do orçamento.
Um projeto de Renda Brasil, que atue com o intuito de reduzir a pobreza, deveria ter uma olhar especial para crianças, mas aproveitar aquilo que já construímos de eficiente neste cenário.
Como mostrou o IPEA recentemente, 70% dos recursos do Bolsa Família são destinados aos 20% mais pobres, resultando em uma queda de 15% na pobreza e de 25% na Extrema Pobreza.
De longe o programa chama atenção pela simplicidade, tanto quanto pela eficiência. Ao contrário de inúmeros outros, não há necessidade de uma estrutura para oferecer um bem ou serviço. É algo simples, e que aumenta o poder da população sobre os recursos.
Ainda que outras reformas sejam necessárias, a ideia do Renda Brasil, que agrega inúmeros programas em um só, é de longe a mais importante das propostas de Paulo Guedes até aqui. Trata-se de “privatizar” o orçamento público, entregando aos cidadãos o poder de escolha sobre os recursos.
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