Ditadura mais antiga do Ocidente, Cuba clama por liberdade

Afetado pela decadência da Venezuela, o fim de programas como "mais médicos" e a crise do setor de turismo, o governo cubano agora enfrenta uma geração de jovens que buscam liberdade

Felippe Hermes

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Protestos em Cuba - julho de 2021 (Foto: Elentir)
Protestos em Cuba - julho de 2021 (Foto: Elentir)

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Escrito por Gabriel García Márquez, “100 anos de solidão” é considerada a mais relevante obra do autor. Trata-se de um livro de ficção, cuja história serve de metáfora para a história da própria América Latina.

Dentre os pontos centrais da trama está a relação de uma empresa americana de frutas com a população da cidade relatada por Márquez.

Na vida real, a tal empresa atendeu pelo nome de United Fruit Company, mundialmente conhecida por ser a maior produtora de bananas do planeta.

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Pode parecer estranho para uma empresa de frutas, mas o poder da United Fruit foi tão avassalador na região, por dominar ferrovias, portos e centenas de milhares de hectares de terra, que do seu domínio e da corrupção que ela promovia nasceu o termo “República das bananas”.

O caso mais emblemático da força da empresa, porém, ocorreu em Aracataca, cidade natal de García Márquez, quando a United forçou o governo colombiano a reprimir protestos de trabalhadores, causando centenas de vítimas no chamado “massacre das bananas”.

Por ironia do destino, Ángel Castro, pai de Fidel e Raúl Castro, tornou-se um rico produtor de açúcar, com um patrimônio de 11 mil hectares, após trabalhar para a United Fruit e juntar recursos para começar a própria empresa.

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Foi nesta ilha caribenha, uma legítima “República das bananas”, que Fidel, Raúl e outros revolucionários criaram um novo regime político, que inspiraria boa parte do continente.

Na teoria, o novo regime combateria tudo aquilo que empresas como a United representavam: a corrupção desenfreada, a concentração de terras, opressão aos trabalhadores e governantes que se utilizavam do poder apenas para engordar as próprias contas. O problema, claro, viria a ser a prática.

Filho de um legítimo “burguês”, Fidel não possuía inicialmente a intenção de proclamar um governo socialista. De fato, no início da revolução, procurou os Estados Unidos em busca de apoio. Em 1960, chegou a discursar no Central Park, pouco antes de falar na assembleia da ONU.

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Isso ocorreu pois, ao contrário do mito comum, os Estados Unidos já não apoiavam mais Batista, a quem Fidel e os revolucionários depuseram. Em 1958, os EUA haviam imposto um embargo a Batista, proibindo-o de adquirir armas, por exemplo.

Dias depois de sua ida aos EUA entretanto, Fidel tomou uma decisão que mudaria radicalmente o cenário: sem o apoio americano à revolução, decidiu estatizar refinarias de petróleo de propriedade americana em Cuba sem qualquer indenização.

Nesta data, em 19 de outubro de 1960, os Estados Unidos decretam o embargo comercial ao país.

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De longe, este é o mais longo bloqueio comercial conhecido na história, com algumas poucas alterações, como em 1962, quando alimentos e remédios passaram a ser incluídos no embargo, ou 1994, quando estes atos foram revogados e alimentos passaram novamente a serem permitidos.

Sem o apoio americano pretendido inicialmente, Cuba se voltou para outra superpotência da época, a URSS, que ao longo das décadas seguintes se tornaria seu principal aliado e parceiro comercial, mais do que compensando os efeitos do embargo.

O colapso da União Soviética, entretanto, criou um baque na economia cubana.

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Se em 1990, Cuba transacionava cerca de 80% do seu PIB (enquanto o Brasil entre exportações e importações somava 12% do PIB), nos dias atuais, Cuba possui uma corrente de comércio que soma apenas 27% do PIB (contra 28% do Brasil).

Isso, entretanto, não significa que o embargo econômico seja ineficaz, ou menos danoso. Na prática, os EUA criam uma série de complicações para o regime, que em contraste, se utiliza desta situação como arma política.

A ideia de que Cuba é perseguida por uma superpotência inflama apoiadores da revolução ainda hoje e é parte substancial do que mantém o regime de pé.

O apadrinhamento por outros países da região, que veem no regime cubano uma inspiração política, também tem contribuído para o país sobreviver ao fim da guerra fria.

Essa série de mudanças às quais o regime teve de sobreviver está também nas raízes dos atuais protestos.

Para além de gritos de liberdade dos jovens, há um momento único e uma confluência de fatores se abatendo sobre a ilha.

Em primeiro lugar, a queda no preço das commodities como o petróleo e a crise na Venezuela levaram a ajuda ao país a diminuir substancialmente.

Por anos a Venezuela garantiu petróleo subsidiado e doação de recursos para o regime cubano. Neste momento, a economia da Venezuela já encolheu ⅔ desde o seu auge, e nada menos do que 96% dos venezuelanos se encontram em situação de pobreza. Enviar ajuda, portanto, tornou-se inviável diante dos problemas internos.

Também propiciou esse cenário o fim de acordos dos programas de transferências de médicos cubanos para outros países. Apenas por parte do Brasil, o programa “mais médicos” transferiu R$1,6 bilhão por ano ao governo cubano.

Dos salários de R$ 11,5 mil pagos pelo governo brasileiro, o governo cubano recebia por volta de R$ 8,3 mil, uma receita considerável com “exportações de serviços”.

Por fim, a crise do coronavírus criou um cenário catastrófico para o turismo da ilha, uma fonte que responde por 10,6% do PIB cubano e na qual o governo cubano tem apostado para atrair investimento estrangeiro, especialmente de grupos europeus.

Encurralado por crises consecutivas e sem apoio, o governo cubano antecipou para o início deste ano o chamado “Dia 0”, quando promoveu uma reforma monetária criando paridade cambial com o dólar visando atrair investimentos externos.

Em janeiro deste ano escrevi aqui no InfoMoney que a reforma promoveria uma “brutal desvalorização do poder de compra da população”. Também como salientei no artigo, o ajuste fiscal era extremamente rigoroso e seguia um padrão indesejado, como foi em Portugal, com foco excessivo no curto prazo e capaz de gerar choques sociais.

Em meio a uma crise que fez descarrilar sua economia, Cuba apostou em um ajuste notadamente ruim.

Como consequência, a ausência de comida, remédios e outros produtos se tornou ainda mais alarmante no país, levando milhares de cubanos às ruas em protestos.

Um fator relevante, que diferencia os protestos atuais, porém, está ainda em 2013 quando o governo, buscando promover reformas econômicas, iniciou o processo de levar internet à ilha.

De 2013 a 2018, os cubanos viram a chegada da internet, inicialmente custando US$ 4,50 por hora de acesso (⅓ do salário mensal de um cubano), e posteriormente com planos acessíveis de 3G.

A chegada oficial da rede 3G em Cuba, em 2018, permitiu a diversos grupos acessarem informações, que não aquelas previamente filtradas pelo governo, além de trocar ideias por meio de chats privados em aplicativos como Telegram.

Graças a essa rede de internet, que o governo agora está cortando, vídeos de protestos se tornaram virais, tal qual a hashtag “SOS Cuba”.

Este é, portanto, um momento singular, a exemplo do que aconteceu em países árabes, onde uma “primavera”, levou a mudanças políticas radicais.

É possível que vejamos o fim da ditadura mais longeva do ocidente, assim como também poderemos ver um aumento da repressão e recrudescimento do regime que ensaiava “se abrir”.

Fato é que, 62 anos depois da revolução, Cuba ainda inspira a política de boa parte da região.

Se os protestos culminarem por levar a uma mudança de regime, podemos ver a ilha servindo de exemplo novamente, desta vez na luta pela liberdade, um contraste considerável com o completo fracasso dos ideias da revolução.

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Felippe Hermes

Felippe Hermes é jornalista e co-fundador do Spotniks.com