De sexta maior economia do planeta ao décimo calote: as lições da Argentina

Com o maior PIB per capita do mundo em 1896, a Argentina entrou em uma série de golpes, ditaduras e outras confusões institucionais que minaram o futuro do país

Felippe Hermes

Importante: os comentários e opiniões contidos neste texto são responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a opinião do InfoMoney ou de seus controladores

Bandeiras da Argentina (Bloomberg)
Bandeiras da Argentina (Bloomberg)

Publicidade

Foi em 20 de dezembro de 2001 que o presidente argentino Fernando de La Rua renunciou, levando o país a um ciclo de inacreditáveis 5 presidentes em 12 dias.

A pobreza e o desemprego tomavam Buenos Aires e o restante do país, levando pessoas a criar conselhos de bairros e moedas paralelas para sobreviver ao colapso argentino. A classe média, que havia começado a década anterior em 63% da população, agora estava reduzida a 34%. O desemprego chegou a 16%, enquanto o dólar disparava com o fim da conversibilidade peso-dólar.

Para um viajante no tempo saído de 1900, seria difícil acreditar que se tratava do mesmo país. A Argentina do início dos anos XX, uma rara democracia na América Latina, inspirava ditados populares na Europa, como aquele usado para se referir a alguém muito rico, que os franceses diziam ser “rich comme un argentine”.

Continua depois da publicidade

Buenos Aires, que em 1913 inaugurou o primeiro metrô da América Latina (55 anos antes de São Paulo), era a sede da oitava nação mais rica do planeta. Os números eram de fato impressionantes. Um argentino era em média 29% mais rico que um francês, 14% mais rico que um alemão, 3 vezes mais rico que um japonês e 5 vezes mais rico que um brasileiro.

De fato, em 1896, segundo a base do Maddison Project, do economista Angus Maddison, prêmio Nobel falecido em 2010, o país possuía em 1896, o maior PIB per capita do planeta.

A estabilidade política no período rendia frutos ao país, destino de investimentos estrangeiros de todos os tipos. Uma rede ferroviária ainda hoje maior do que a brasileira, foi erguida sobretudo com capital inglês. A opulência no consumo também era vista pelo fato de a capital abrigar a única filial global da icônica loja de departamentos britânica Harrods, fora do Reino Unido.

Continua depois da publicidade

Com terras fartas ao sul, a Argentina dividia com os Estados Unidos a atenção de europeus que decidiam emigrar em busca de uma vida melhor. O resultado é que neste período, nada menos do que 30% da população do país era composta por imigrantes.

Comparada aos dias de hoje, toda essa situação levou economistas e outros estudiosos do tema a criarem uma expressão nada lisonjeira, o “Paradoxo Argentino”. Como resumiu o economista prêmio nobel Simon Kuznets, existem 4 tipos de países no mundo – os desenvolvidos, os subdesenvolvidos, o Japão e a Argentina.

Para além da questão japonesa, um país rico porém estagnado há décadas, a situação argentina intriga, pois nos remete a um caso mais próximo, parte essencial de uma integração econômica que nunca chegou a se concretizar por aqui.

Continua depois da publicidade

Durante décadas o país teve como seu maior parceiro comercial o Brasil, posto que deixamos de exercer em 2019, quando a China tomou o lugar.

Afinal, como a Argentina chegou na situação atual?

Olhando em retrospecto, não é difícil perceber que muito do que causou a derrocada do país já estava presente por debaixo de estatísticas tão positivas.

Continua depois da publicidade

Como mostra um estudo recente publicado por pesquisadores de Harvard intitulado justamente de “O paradoxo argentino”, há duas linhas a se considerar entre a “potência latino-americana” do início do século 20 e a situação atual.

No aspecto econômico, a Argentina era uma potência agrícola, fruto de terras abundantes e produtivas nos pampas, mas assentada em um modelo frágil de exploração.

Ao contrário dos Estados Unidos, que em 1862 promulgaram o chamado “homestead act”, distribuindo terras a qualquer colono que decidisse habitar o inóspito meio-oeste americano, os argentinos optaram por um modelo centralizador, vendendo terras a alguns poucos afortunados.

Continua depois da publicidade

O resultado, claro, é que enquanto o meio-oeste americano tornou-se povoado e desenvolveu uma série de atividades paralelas, os pampas argentinos eram habitados por uma população muito mais pobre do que aquela que se poderia supor quando olhamos para o dado de renda per capita no país.

A famosa “concentração de renda”, foi impulsionada pelo governo, e resultou em uma elite habituada ao consumo de luxo, que gerava um ar de metrópole cosmopolita em Buenos Aires, mas pouco contribuía para melhorar a base econômica do país.

Quando comparadas às empresas listadas na bolsa de Chicago, maior bolsa agrícola do mundo, as empresas de Buenos Aires possuíam até 75% menos capital por trabalhador, demonstrando que sua produção se dava meramente pela expansão da quantidade de terras agregando nelas mais trabalhadores.

Como você já deve ter percebido, o resultado é que na medida em que a tecnologia avançou pelo mundo, e novas terras puderam ser cultivadas (como o Cerrado brasileiro que se tornou palco de uma revolução agrícola nos anos 1970), a vantagem comparativa argentina decaiu.

Entre 1930 e 2005 por exemplo, o preço da lã, produto exportado em larga escala, caiu até 75%. No mesmo período o preço pago pelo trigo, parte relevante das exportações do país ainda hoje, caiu 85% desde 1917.

Para além de uma base pouco produtiva no campo, o país encarava ainda problemas na área de educação. Seu percentual de crianças na escola no início do século era 54% do índice francês e 48% do mesmo índice na Alemanha, países com renda per capita inferior.

Toda essa situação deliberada de manter o interior do país sujeito a grandes proprietários que não viviam por lá, cria problemas sequenciais. Um exemplo clássico vindo dos Estados Unidos pode ajudar a entender a importância que o dinamismo no interior, e portanto o vácuo que o governo argentino criou ao concentrar terras, pode causar a longo prazo.

Considere por exemplo que um jovem de 23 anos, cerca de 130 anos antes de a Amazon existir, criou no meio-oeste americano uma empresa para vender e distribuir bens de consumo para a população longe das metrópoles que vivia em função das linhas de trens que cortavam o país. Richard Sears, fundador da empresa que leva seu nome.

Para além deste, existem outros milhares de exemplos gerados com base nestas escolhas sobre modelo de povoamento. Outro também famoso é Gustavus Swift, inventor do vagão refrigerado, e um dos responsáveis por fazer com que pela primeira vez na história da humanidade o consumo de carne fosse popularizado (apenas nos anos de 1870 o consumo médio de carne pelos americanos subiu 300%).

Tais exemplos jamais seriam possíveis em uma nação onde o governo promove exclusão social e cria “campeões nacionais” de maneira deliberada.

6 golpes de Estado, 5 ditaduras e 6 calotes e muitos resgates pelo FMI

Se existem 3 letras capazes de resumir a história econômica da Argentina no século 20, seriam justamente aquelas que formam as iniciais do Fundo Monetário Internacional.

Criado em 1944, o fundo existe para manter o equilíbrio no balanço de pagamentos dos países membros. Quando criado, em meio a segunda guerra, a Argentina ainda era a 6ª maior economia do planeta, e se beneficiou fortemente da demanda de alimentos vindos de uma Europa em guerra, ou recém saída dela.

Os problemas que levariam a Argentina a promover nada menos do que 6 calotes no pagamento de sua dívida externa, incluindo o atraso de maio deste ano, começaram quando em 1930 o país teve seu primeiro golpe militar no século 20.

Entre 1930 e 1983, foram 6 golpes de Estado, sendo 5 deles resultantes em ditaduras. Presidentes de todas as vertentes se revezaram no poder, substituindo uns aos outros, mas mantendo uma essência: o nacionalismo exacerbado.

Foi em 1946, que o presidente Juan Domingos Perón assumiu, por meio de uma eleição democrática, agregando um novo componente ao nacionalismo, o populismo.

Perón, que ainda hoje é referência para boa parte do campo político argentino (incluindo o atual presidente, um Peronista), deu o tom naquilo que se tornaria a ideia central de todos os governos que seguiram, em maior ou menor grau: compensar os problemas sociais argentinos de então, por meio de um aumento expressivo dos gastos públicos.

Governando com os sindicatos, seu governo institui direitos trabalhistas e um amplo aumento de garantias aos trabalhadores. Na segunda metade da década de 40, a economia argentina crescia em média 8.8% ao ano, enquanto os salários subiam 46%.

Não chega a espantar, portanto, que Perón tenha se tornado um líder quase inconteste na história do país, afinal, como em qualquer lugar, a política argentina é pautada não pelas consequências, mas pela ação.

Que o país tenha entrado em uma espiral inflacionária e que as pensões, aumentadas por Perón, tenham chegado a 29% do total de riquezas produzidas pelo país, são deixados de lado, ante seu viés “popular”.

Partiu de Perón também, a onda de nacionalizações e subsídios à indústria nacional. Com a riqueza acumulada pelas exportações para a Europa, o país investiu e expandiu diversos setores, mantendo porém um problema típico latino-americano, a baixa competitividade.

A ideia de substituir importações por produção local, permeia toda história da América Latina na segunda metade do último século. A consequência prática é via de regra a mesma em todos os países. Criamos indústrias pouco competitivas, forçando a população local a pagar mais caro em produtos nacionais, e impedimos a própria indústria de importar máquinas e equipamentos que melhorariam sua produtividade

A Argentina e o Brasil nos dias de hoje

Que a história argentina tenha inúmeros paralelos com a brasileira não deveria espantar. O curioso, entretanto, foi como conseguimos, a duras penas, superar nossos problemas e criarmos uma base institucional razoavelmente melhor nas últimas décadas.

Sim, eu sei, você provavelmente já essa pensando que isso não faz sentido dada a corrupção quase generalizada que ocorre por aqui, mas o fato é que os hermanos não estão muito diferentes, com a ex-presidente Cristina Kirchner envolta em inúmeros casos ainda não resolvidos.

Mas se hoje consideramos uma piada de mau gosto a ideia de fiscais do Sarney invadindo supermercados para conferir se os preços estavam sendo tabelados, foi por decisões que tomamos na contramão do caminho tomado pela Argentina, que ainda adotada congelamento de preços em 2020 (antes mesmo da crise causada pelo Covid-19).

Há poucas semanas o país vizinho anunciava a nacionalização de uma empresa agrícola, algo impensável no Brasil dos dias atuais, e com paralelo talvez apenas na combalida Venezuela.

O fato é que a duras penas estabelecemos limites ao governo, com a Lei de Responsabilidade Fiscal por exemplo, e controlamos sua sanha inflacionária, impedindo que a emissão de moeda financiasse os gastos públicos, e portanto colocando limites a eles.

Ainda hoje a Argentina permite que seu banco central compre títulos públicos, o que colabora para uma inflação que supera os 50% ao ano. Em outras palavras, não há limites para o gasto público.

Para piorar, por anos a Argentina omitiu ou fraudou dados sobre a própria inflação, jogando a credibilidade do governo pelo ralo.

Como o Plano Real nos mostrou, a inflação é de longe um dos fatores que mais contribuem para a pobreza. Ela retira perversamente recursos dos pobres desbancarizados e entrega aqueles que tenham acesso a meios de proteção.

A falta de confiança na própria moeda também gera problemas. Argentinos aprenderam a conviver com mais de uma dezena de cotações distintas do dólar, incluindo o esdrúxulo “dólar streaming”, que como o nome já diz, refere-se ao dólar usado na cotação de compras de serviços estrangeiros, como a Netflix.

O fato é que ainda hoje a Argentina guarda uma herança cultural riquíssima, Buenos Aires é sem sombra de dúvidas uma cidade que vale cada minuto da visita, mas suas trapalhadas econômicas merecem ficar de alerta.

Não há dúvidas de que o Brasil seja enormemente afetado pelo caos político e econômico no país vizinho, tradicionalmente um parceiro comercial relevante. Nossa suposta rivalidade é inócua e nada produtiva para nenhum dos lados.

Torcer pelo país vizinho, exceto em copas do mundo, obviamente, é algo que deveríamos adotar como tom por aqui, mas principalmente, precisamos defender alguns valores que nos afastam do caminho trilhado por lá. Transparência nos dados públicos, equilíbrio por parte do governo e independência da mídia e do setor privado em relação ao governo.

Se você gostou do artigo ou tem alguma crítica a fazer, pode me encontrar pelo Twitter  e pelo Instagram 

Autor avatar
Felippe Hermes

Felippe Hermes é jornalista e co-fundador do Spotniks.com