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Georges Dairnvaell poderia ter passado despercebido pela história como mais um dos militantes panfletários da Paris do século XIX, não fosse uma descoberta feita em 2015, que o liga a origem de uma das mais conhecidas fake news da história.
Em um misto de anti-semitismo e militância contra os ricos, Dairnvaell escreveu em 1846 um panfleto, com o pseudônimo de “Satan”, no qual atribuía a Nathan Rothschild uma fraude na origem da sua fortuna.
Segundo “Satan”, Rothschild teria recebido com antecedência a informação de que a Inglaterra havia vencido a batalha de Waterloo contra Napoleão, e espalhado o oposto para provocar pânico na bolsa de Londres, fazendo fortuna com isso.
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Muito antes da banalização atual do termo “fake news” com o surgimento das redes sociais, a história registra casos do tipo, intencionais ou não, e via de regra com um componente político.
No Brasil, por exemplo, o comício das “Diretas Já”, realizado em 1984, foi transformado em “festa de comemoração do aniversário de São Paulo” pela edição do Jornal Nacional do dia 25 de janeiro, fato que o fundador Roberto Marinho e diretores da empresa minimizaram por anos.
O fato é que elas estão aí, em toda nossa história, e são bem documentadas, tendo versões para todos os gostos políticos.
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Justamente por isso, a despeito do que você talvez tenha pensado até aqui, este não é um artigo sobre as fake news e seus casos curiosos ao longo da história, e sim o exato oposto, aquele ao qual não estamos treinados e nem identificamos com tanta facilidade: as verdades inconvenientes.
São verdades inconvenientes aquelas bem documentadas, discutidas, mas que muitas vezes preferimos optar por ignorar, exatamente por serem inconvenientes.
Ocorre que, como a mentira de Dairnvaell que abriu caminho para diversas outras teorias da conspiração anti-semitas, nossa opção de ignorar determinadas verdades pode nos levar a um caminho bastante ruim, uma vez que nos impede de reagir aos problemas.
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Pensando nisso, reuni aqui cinco dessas “verdades inconvenientes” da economia que liberais, conservadores ou esquerdistas pretendem ignorar.
1. Você provavelmente não verá o Brasil se tornar um país rico no seu tempo de vida
Não raro, a expressão “o Brasil é um país rico, basta dividir corretamente” aparece em papos informais e algumas vezes até em conversas de políticos e outros participantes do debate público.
De fato, a divisão de riqueza no Brasil é, por qualquer métrica que se olhe, bastante ruim. Somos o 2º país do mundo com maior concentração de renda no 1% mais rico da população, atrás apenas do Qatar, e temos metade dos brasileiros vivendo com apenas R$ 413 por mês.
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A noção de riqueza contida nessa afirmação, porém, é via de regra uma noção errada: a de que possuímos muitas riquezas naturais, ou ainda, de que somos a 7ª maior economia do mundo.
Quando colocada em perspectiva, com relação a riqueza per capita, o Brasil aparece somente em 72º lugar. Caso entrássemos hoje para a OCDE, um grupo de países que cooperam entre si para desenvolver boas práticas de gestão e desenvolvimento, começaríamos em último lugar.
Quanto à ideia de que “temos recursos em abundância”, na prática não é bem assim que a banda toca.
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A geografia brasileira não é tão generosa quanto parece. Nossa maior hidrovia, a do Tietê, começa a 20 km do oceano e corre na direção oposta, indo desembocar na bacia do Prata.
Isso contribui para que todas as hidrovias brasileiras somadas transportem menos do que 5% do total de carga transportado pela hidrovia do Mississipi, nos EUA (lembre-se que este é, de longe, o modal de transporte mais barato existente).
Nossas maiores cidades estão separadas por cadeias de montanhas e zonas menos densas (não há por aqui megalópoles como na costa leste americana, por exemplo), e até os anos 1970, era virtualmente impossível desenvolver agricultura em larga escala no Centro-Oeste. Foram necessárias décadas de desenvolvimento, por parte de cooperações internacionais e investimentos da Embrapa, até que o país de fato se tornasse um celeiro.
É justamente essa transformação recente em celeiro de grãos que apresenta aquilo que deveríamos possuir para nos tornarmos ricos: produtividade. Se o tema lhe interessar, recomendo este vídeo, baseado em um relatório da consultoria Stratford.
Produzir mais com menor quantidade de pessoas e capital é um fator crucial para o enriquecimento de um país, e neste aspecto, falhamos bastante.
Há 40 anos nossa produtividade cresce abaixo de 0,5% ao ano, o que, na prática, significa dizer que a maior parcela do nosso crescimento vem do aumento demográfico.
Como alertado durante a votação da nossa reforma da Previdência, o boom demográfico está acabando.
Não é impossível reverter este cenário. Para isso, basta fazermos aquilo que não fizemos nos últimos 40 anos: focar no aumento da produtividade.
O desafio é fazer isso ao mesmo tempo que a população envelhece, o sistema político se mantém viciado em um jogo de péssimos incentivos e a infraestrutura segue capenga. O mais provável até aqui é que isso não vá rolar.
2. Um trabalhador brasileiro já recebe menos do que um chinês ou paraguaio. E isso tende a piorar
E por falar em produtividade, o seu salário vem dela, e não de uma canetada em Brasília, ao contrário do que determinados políticos querem lhe fazer crer.
Em maior ou menor grau, salários dependem essencialmente da riqueza produzida pelo trabalhador. Pode parecer óbvio, afinal, sem criação de riqueza não há recursos para os salários. Mas, para muitos, o salário ainda depende da vontade política.
Este tipo de confusão é comum, e até aceitável, dado que o Estado brasileiro fixa um salário mínimo acima da renda de boa parte da população. É razoável que se acredite, dado o baixo grau de instrução das pessoas, que se as empresas não o fazem é por “ganância” ou adjetivos do tipo.
Considerar isso como verdadeiro, porém, seria dizer que, na prática, nossos empresários são mais gananciosos do que empresários americanos, a terra do “capitalismo selvagem” para muitos.
Parece e é simplista supor isso.
Quando olhamos para países que tiveram aumentos de produtividade, em especial ao retirar sua população do campo e colocá-la em indústrias e serviços, é nítida a evolução de renda desses mesmos trabalhadores.
Pegue por exemplo a China, ainda hoje símbolo do “trabalho escravo” no mundo. Há meras 3 décadas, um trabalhador brasileiro produzia 5 vezes mais do que um chinês. Há 4 anos, produzíamos apenas 5% a mais.
O resultado? Em 2005, um chinês recebia em média US$ 1,20 por hora de trabalho, e, em 2016, ele recebia US$ 3,60. Enquanto isso, no Brasil, um trabalhador na indústria recebia em 2005 cerca de US$ 2,60 por hora, e, em 2016, ele passou a receber US$ 2,50.
Números não tão expressivos, mas, ainda assim, constantes em termos de crescimento, vêm do Paraguai.
Nosso país vizinho apresentou nas últimas décadas um saldo expressivo da sua produtividade ao transferir trabalhadores do campo para a cidade. O resultado do outro lado da Ponte da Amizade foi um aumento expressivo nos salários. O mínimo por lá chega a ser R$ 352 maior do que no Brasil.
3. A ineficiência do serviço público está diretamente relacionada ao baixo número de funcionários em algumas áreas
Poucos e caros. Sendo bastante objetivo, essa seria a melhor definição para o funcionalismo público no Brasil.
São poucos os juízes disponíveis no Judiciário mais caro do planeta. São poucos os policiais disponíveis no país com maior número de assassinatos do planeta e assim por diante.
Temos cerca de 8,2 juízes para cada 100 mil habitantes, contra 27 da Alemanha. A diferença está no fato de que os alemães gastam 0,13% do PIB com o Judiciário, enquanto o Brasil gasta 1,5%.
Como isso é possível? Com uma média salarial de R$ 43 mil, os juízes brasileiros se tornaram extremamente caros, impedindo que o Estado contrate magistrados em números suficientes. Afinal, estamos falando de algo como 1.600% vezes a renda média de um brasileiro. Na mesma Alemanha, um juiz recebe 3 vezes o PIB per capita, contra 4 vezes no Reino Unido.
Essa pequena diferença, quando somada a nossa burocracia e legislação trabalhista que ampliam a demanda de casos a serem julgados, faz com que um juiz brasileiro trabalhe em mais casos do que deveria e ainda assim tenhamos o 30º judiciário mais lento do mundo, em um ranking com 133 países.
Coloque na conta uma Previdência na qual cada juiz, mesmo sem trabalhar, continuará recebendo seu salário por 25 anos, na média (gerando um custo estimado de R$ 4,77 milhões), e tudo parece fazer mais sentido.
Em relação à segurança pública, os números são similares. Nossos policiais se aposentam com regras especiais, gerando casos de aposentadoria aos 47 anos. Para piorar, em muitos casos eles são promovidos logo antes de se aposentarem, o que gera casos surreais como os do Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro, estados que têm respectivamente 25 e 30 vezes mais coronéis aposentados do que na ativa. Cada um deles leva para casa R$ 25 mil todos os meses.
Sendo razoável, (afinal, sei que você já deve estar pensando “vá você colocar sua vida em risco e dizer que se aposentar aos 47 anos é privilégio”), minha postura aqui é simples e se resume a três pontos:
1) Não é razoável que os policiais mais experientes deixem a corporação tão cedo. Isso reduz nossa capacidade de combate ao crime;
2) Aposentadorias precoces impedem que se dê salários melhores para aqueles que estão no início da carreira, na linha de frente do combate ao crime; e
3) Boa parte do trabalho policial é burocrático. Não é qualquer demérito que policiais mais experientes assumam estas funções.
Se queremos dar salários melhores, contratar mais policiais e garantir maior segurança, podemos começar encarando essas verdades inconvenientes.
4. A corrupção não é a causa de todos males do país
Cerca de um ano antes de o TCU conseguir na Justiça obrigar o BNDES a apontar os beneficiários de empréstimos no Brasil e no exterior, publiquei uma lista com obras financiadas pelo banco em outros países.
Durante anos, essas obras foram divulgadas na imprensa e tudo corria como se não houvesse nada de estranho. Minha questão inicial, ali em setembro de 2014, não tratava de corrupção, mas de moralidade.
Minha pergunta foi simples: é justo que um país com tamanhas deficiências de infraestrutura financie estradas, portos, aeroportos, saneamento, gasodutos etc, em outros países?
Pior: é justo que isso seja feito com dinheiro do FAT, o Fundo de Amparo ao Trabalhador, levando bilhões de prejuízo aos milhões de trabalhadores brasileiros? (R$ 95 em perdas para cada trabalhador todos os anos entre 2010 e 2014).
Tudo isso sempre me chocou, especialmente porque trata-se de um banco que destina 70% de seus empréstimos as 1.000 maiores empresas do país.
A despeito das revelações da Lava Jato sobre empreiteiras, devemos dizer aqui um fato nada conveniente: o BNDES emprestou R$ 1,2 trilhão, dos quais apenas uma fração envolve casos suspeitos ou comprovados.
Muito do que foi feito ali é perfeitamente legal. Quer um exemplo? Subsídios para compra de caminhões via FINAME. Não há até onde se tem notícias hoje, qualquer corrupção direcionada a este caso.
Mesmo a venda de jatinhos da Embraer figura apenas como imoralidade. Financiar um avião para um milionário com dinheiro dos trabalhadores é o absurdo dos absurdos, mas não é corrupção.
Casos como esse, conhecidos como “misallocation” (ou má alocação de capital), são o maior entrave ao Brasil.
Como a Secretaria de Política Econômica mostrou em março deste ano, o Brasil poderia ser 146% mais rico se alocasse capital de maneira eficiente.
Nossa ineficiência, que não é apenas corrupção (mas também a inclui), nos torna muito mais pobres.
Não devemos, portanto, ficar indignados apenas com aquilo que infringe a lei, mas também com a maneira como a lei é usada para favorecer determinados grupos e setores. .
5. O Brasil ainda tem solução
Essa é a mais inconveniente das verdades, de longe. Não há dúvidas que isso incomoda inúmeros grupos e pessoas acostumadas ao jogo atual.
Incomoda liberais que acreditam que o Estado brasileiro é inerentemente falido e jamais poderá mudar. Incomoda conservadores que acreditam que a política é falha e jamais poderá se tornar uma maneira de solucionar problemas, como também incomoda a parte da esquerda que acredita que não há solução consensual possível, apenas por meio de uma revolução.
São os mais variados grupos que tomam consciência da estrutura do Estado e do país e disputam neste jogo a maneira de colocarem sua visão sobre as demais. O que então pode mudá-lo?
A resposta nem de longe é simples. Afinal, trata-se de reconstruir ou fazer nascer, sobre bases bastante ruins, instituições mais inclusivas.
Como Acemoglu e Robinson mostram no clássico “Porque as nações fracassam”, as instituições são a base de qualquer nação bem sucedida.
Isso significa começarmos pelo básico: não importa se você é liberal ou de esquerda. O Estado deve caber dentro de si mesmo. Dos Estados Unidos a Austrália, toda nação bem sucedida possui um consenso de que o Estado deve ter um orçamento equilibrado.
Partindo deste princípio, de que o Estado não deve gastar mais do que arrecada, podemos avançar sobre outro ponto: o Estado não deve proteger os empresários proibindo a população de comprar bens e serviços mais baratos do exterior.
Antes de discutirmos como taxar mais os ricos e menos os pobres, um debate urgente no país, devemos começar pelo que todos podemos concordar: impedir que o Estado brasileiro financie os mais ricos.
Deste ponto em diante, os debates podem ser mais naturais. Podemos falar francamente sobre produtividade sem tratar isso como uma maneira nova de torturar trabalhadores em busca do lucro.
Podemos também falar sobre infraestrutura sem fazer disso um meio de favorecer cartéis de empreiteiras.
O Brasil tem solução, e elas vão começar quando formarmos consensos básicos sem tratar aqueles que discordam de nós como missionários de “Satan”, como fazia Dairnvaell.
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