Real, um plano fora da curva

Além das questões técnicas, havia resistência a um plano estranho, que ousava ser diferente de tudo o que se conhecia no âmbito dos programas de estabilização
Por  Maria Clara R. M. do Prado -
info_outline

Importante: os comentários e opiniões contidos neste texto são responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a opinião do InfoMoney ou de seus controladores

O Plano Real, que agora completa 30 anos, resultou de uma façanha nunca experimentada antes. Nem depois. O mecanismo da URV – Unidade Real de Valor – ajudou a alinhar em patamar baixo os preços da economia e preparou o caminho para a estabilidade. Poucas vezes no mundo uma teoria econômica é testada na prática com sucesso.

Houve altos e baixos na fase de implementação, a partir do segundo semestre de 1994, por praticamente um ano. A política cambial ficou muito tempo na berlinda, mas provou que a valorização foi importante para sustentar a nova moeda na segunda etapa do programa. 

Chegar até ali, porém, não foi fácil. Para além das questões técnicas, havia o obstáculo inexpugnável da resistência a um plano estranho, que ousava ser diferente de tudo o que se conhecia no âmbito dos programas de estabilização. 

O primeiro obstáculo era vencer a ideia da classe política de que só o congelamento seria capaz de baixar a inflação, uma espécie de mantra sedimentado desde o Plano Cruzado. O então presidente Itamar Franco manteve sua preferência pelo tabelamento de preços até às vésperas do Real entrar em circulação. Mesmo os políticos do PSDB, partido de Fernando Henrique Cardoso, que venceria as eleições presidenciais três meses depois de lançado o Real, só acreditavam no congelamento. 

Em novembro de 1993, em meio às discussões sobre o que fazer para dar cabo à hiperinflação sob a liderança de Fernando Henrique, então ministro da Fazenda, o ceticismo tomou conta da equipe econômica. Não se enxergava perspectiva promissora no cenário político com Itamar na presidência e uma incógnita no ar com relação ao sucessor. O único otimista era o próprio FHC. Para levantar os ânimos do time, ele decidiu promover um encontro entre os integrantes da equipe e os caciques do PSDB. A intenção era sondar a receptividade do partido a respeito das alternativas em estudo.  

Saiba mais:

CONTINUA DEPOIS DA PUBLICIDADE

Real: primeiras ideias

Após as apresentações das possibilidades viáveis, entre as quais o congelamento foi de pronto descartado, a sala foi tomada pela contrariedade dos expoentes do PSDB que não conseguiam entender o que os economistas diziam. Para baixar a tensão, Edmar Bacha pediu que não fossem embora e tentou explicar melhor a ideia das duas moedas. A reação do então senador Mario Covas ficou para sempre marcada na mente de todos: “vocês economistas são tão importantes tecnicamente para o partido quanto nós somos para dar a liderança política, e se esse é o único caminho que vocês acham possível seguir, então nós seguiremos com vocês para o precipício”. 

Mas também em outras esferas havia descrença no Real. Ainda em 1993, durante a reunião anual do FMI e do Banco Mundial em Washington, FHC e parte da equipe expuseram ao então subsecretário do Tesouro dos Estados Unidos, Lawrence Summers, os contornos gerais das ideias de estabilização com destaque para a criação de uma nova unidade de conta, que funcionaria como referencial para acabar com a memória inflacionária. Tinha por base o Plano Larida – escrito por André Lara Resende e Pérsio Arida, em 1984, que Summers conhecia. Saíram do encontro com a certeza de que não teriam o aval do governo norte-americano. Esse apoio era importante no processo de renegociação da dívida externa, uma vez que os bônus brasileiros de longo prazo seriam lastreados por títulos do Tesouro americano.  

Summers considerou na reunião que a ideia de duas moedas poderia elevar ainda mais a inflação brasileira e sugeriu a adoção do controle de preços e salários. O FMI também negou apoio ao Brasil, que se viu na contingência de adquirir os papéis americanos no mercado secundário, em operação realizada aos poucos de modo a não impactar os preços do ativo. O FMI, aliás, nunca acreditou no Plano Real porque não conseguiu entender a lógica da URV. Na crise de janeiro de 1999, que redundou na flutuação cambial, chegou a sugerir que o país optasse pela política de conversibilidade nos moldes da Argentina. 

Também houve muita oposição da parte de juristas contrários às regras de conversão dos contratos para a nova moeda, sem falar na gritaria generalizada dos exportadores e empresários contra a política de valorização do real, cujos efeitos foram acentuados a partir de setembro de 1994 por uma drástica redução das alíquotas de importação.  

Alguns empresários reunidos com FHC (já eleito presidente) e os economistas do Real, na segunda quinzena de novembro de 1994, ouviram da equipe a intenção de estimular um déficit na conta corrente do balanço de pagamentos da ordem de 3% do PIB. Saíram do encontro inconformados. Nunca seus interesses haviam sido tão contrariados por um governo. 

Consolidado

Assim, contra muitos, o Plano Real conseguiu se consolidar, fruto de um engajamento cívico que teve FHC como núcleo. Em torno dele, e com o apoio de Itamar Franco, foi possível formar uma equipe única de experts em inflação. Nas ruas, teve o apoio maciço da população antes mesmo de ter sido lançado, graças aos pronunciamentos do ministro Rubens Ricupero (ficou à frente da Fazenda de 05 de abril até 1º de setembro de 1994) a favor da estabilização.   

CONTINUA DEPOIS DA PUBLICIDADE

Teria sido possível hoje? Muito dificilmente, porque as condições políticas são infinitamente piores do que aquelas temidas pela equipe do Real em 1993. Isso torna difícil imaginar os desdobramentos para os próximos 30 anos. A menos que alguma catástrofe de ordem econômica e principalmente politica aconteça, a tendência é que a inflação no Brasil se mantenha sob controle, a despeito dos problemas de ordem fiscal. No imaginário popular, a prática das remarcações diárias de preços é coisa do passado e esse fator, de caráter psicossocial, é crucial para evitar a volta da memória inflacionária.  

Esta publicação faz parte da série 30 anos do Plano Real: Passado, presente e futuro da moeda que mudou o país, especial do InfoMoney com reportagens, entrevistas, vídeos e artigos sobre a trajetória da moeda brasileira de sua criação aos dias de hoje.

Maria Clara R. M. do Prado Jornalista, autora do livro "A real história do Real"

Compartilhe

Mais de Opinião - Especialistas convidados