O Plano Real criou um novo mercado para o Brasil

Brasil, porém, ainda tem muito espaço para crescer no seu mercado de capitais, diz ex-presidente da Bolsa
Por  Edemir Pinto -
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É difícil acreditar. Mas, não faz muito tempo, as liquidações de negócios no mercado financeiro e de capitais no Brasil se faziam através de cheques. Como sabemos, os bancos possuem no Banco Central (BC) uma conta denominada “reserva bancária”, similar a uma conta corrente. Na reserva bancária, é processada toda a movimentação financeira diária dos bancos que é decorrente de operações próprias ou de seus clientes.

Na reserva bancária, diariamente às 7h, eram lançados os resultados das várias câmaras de compensação relativos às transações realizadas em dias anteriores nos diversos mercados. As câmaras, com raras exceções, eram meras processadoras. Às 23h, era lançado o resultado das negociações de títulos públicos federais.

Até o final dos anos 1990, mesmo que um banco não tivesse saldo suficiente na reserva bancária para satisfazer os pagamentos previstos para logo cedo, o BC efetivava a liquidação das obrigações. Era uma espécie de “cheque especial”. O eventual “saldo negativo” era, normalmente, regularizado às 23h com o resultado dos negócios com títulos públicos federais. Com o Plano Real e o fim da hiperinflação, a partir de 1994, muitos bancos ficaram pelo caminho porque não conseguiram fechar esse “saldo negativo”. Na prática, esses bancos não pagaram o “cheque especial”, que foi assumido pelo contribuinte.

O Banco Central definiu que deveria haver uma separação de ambientes para a liquidação de pagamento de baixo e de alto valor. As câmaras de liquidação para grandes valores deveriam ter foco no gerenciamento de riscos, com exigência de várias camadas de garantias e estabelecimento de limites aos participantes, como era o caso da já existente Clearing de Derivativos da então BM&F (Bolsa de Mercadorias & Futuros), mais tarde, BM&FBOVESPA e B3 (Brasil, Bolsa, Balcão).

Depois das turbulências das crises financeiras internacionais nos anos 1990, da hiperinflação e do saneamento do sistema financeiro, o Banco Central deu a largada às mudanças com a Lei 10.214 em 27 de março de 2001. A legislação criou o arcabouço para o novo Sistema de Pagamentos Brasileiro, que passou a ser chamado de “novo SPB”.

Bolsa e o desenvolvimento tecnológico

Após investimentos superiores a R$ 1,5 bilhão, os maiores na história centenária da Bolsa, foi implantada a integração das clearings de mercado nos planos regulatório, operacional, tecnológico e de administração de risco. Junto com a Bolsa de Chicago (CME), a B3 desenvolveu também sua própria plataforma de negociações eletrônicas, o PUMA. Hoje, o Brasil dispõe do estado da arte no que se refere à tecnologia para clearings e negociação.

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A criação do chamado “novo SPB” é uma das mais importantes, e menos conhecidas, reformas estruturais feitas no Brasil após o Plano Real. De fato, o Banco Central, a CVM (Comissão de Valores Mobiliários) e a Bolsa empreenderam uma impressionante agenda de reformas após o Real, o que que tornou o mercado financeiro e de capitais do Brasil uma referência mundial em termos de solidez, segurança e regulação.

No final dos anos 1990, quando essas reformas na infraestrutura estavam em seu início, o mercado de ações estava estagnado no país. A liquidez das principais companhias migrava para a Bolsa de Nova Iorque através do mercado de American Depositary Receipts (ADRs). Em 1997, uma única ação, o papel preferencial da Telebrás, então companhia estatal de telefonia, respondia por 60% de todo o volume do mercado de ações no Brasil.

Saiba mais:

Novo Mercado

Em 1998, a então BOVESPA contratou um estudo liderado pelo economista José Roberto Mendonça de Barros, para sugerir medidas que pudessem reativar o mercado de ações. O trabalho foi publicado em junho de 2000. Ao analisar a estratégia para desenvolver o mercado, em contraposição à letargia daquele momento em que a Bolsa de Valores estava literalmente minguando, como, efetivamente, acabou ocorrendo em alguns vizinhos do Brasil na América Latina, o estudo propôs uma inovação que foi um divisor de águas na história da B3. Baseado no “Neuer Market”, da Bolsa de Frankfurt, focado em ações do setor de tecnologia que, por sinal, não funcionou, o trabalhou recomendou a criação de um “Novo Mercado” para o Brasil.

A ideia era um setor de excelência dentro da Bolsa que oferecesse aos investidores, em essência, papéis de qualidade e proteção aos acionistas minoritários. O Novo Mercado foi institucionalizado em dezembro de 2000, mas foi deslanchar muito depois, em 2004, após a bem-sucedida oferta de ações da Natura.

Plano Real

Como sabemos, a aversão do brasileiro ao risco tem razões históricas e, portanto, arraigadas na nossa cultura. A atenção da Bolsa quanto à gravidade da questão do conhecimento financeiro no país se tornou mais presente após o Plano Real. Assim, ao mesmo tempo em que elevava o padrão de governança corporativa do mercado, e sofisticava a tecnologia, a então BOVESPA colocou em prática um programa de popularização, com o objetivo de aumentar o número de investidores pessoas físicas e ampliar a cultura de investimento no Brasil, dentro no escopo de suas atividades educacionais.

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Em uma época que o tema era para muito poucos, o então presidente do Conselho da BOVESPA, o saudoso Raymundo Magliano, foi para a frente das fábricas “pregar no deserto”, como ele dizia, para apresentar o mercado de capitais para a população. Anunciado em 2001 e implementado no ano seguinte, o programa multiplicou o número de contas individuais, que eram de meros 80 mil em 2000.

A imprensa e os meios de comunicação tiveram um papel muito importante na ampliação do acesso ao mercado. Veículos como o Infomoney foram essenciais. O contrato futuro de juros, por exemplo, até hoje o maior da B3, ganhou desenvoltura graças a uma coluna diária e às reportagens feitas pela jornalista Ângela Bittencourt, então, na Gazeta Mercantil para explicar seu funcionamento.

Espaço para crescer

No entanto, o mercado de capitais continua distante dos brasileiros, alvo de medos e preconceitos, inclusive das autoridades. Portanto, a despeito de uma infraestrutura de classe mundial, o Brasil ainda tem muito espaço para crescer no seu mercado de capitais.

A agenda de reformas essencial para retomar o crescimento do mercado de capitais é de caráter macroeconômico. O restabelecimento da confiança fará com que o mercado volte a crescer. Sem confiança, não há mercado. Certamente, isso não nos exime de evoluir na agenda microeconômica, sendo certo que há muito por fazer especialmente para a criação de uma cultura de investimentos no Brasil.

Para alcançar seu destino de país relevante no cenário global, o Brasil vai precisar do mercado de capitais que, certamente, está apto a realizar esse papel e poderá, enfim, entrar no cotidiano das empresas e exercer plenamente sua vocação.

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Esta publicação faz parte da série 30 anos do Plano Real: Passado, presente e futuro da moeda que mudou o país, especial do InfoMoney com reportagens, entrevistas, vídeos e artigos sobre a trajetória da moeda brasileira de sua criação aos dias de hoje.

Edemir Pinto Edemir Pinto foi diretor presidente da BM&F, da BM&FBOVESPA e da atual B3 (Brasil, Bolsa e Balcão)

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