A crise urbana é também uma crise estética

Faltam design e estética que agradem à maior parte das pessoas nos espaços urbanos. Nem sempre foi assim.

Diogo G. R. Costa

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Ao imaginar um passeio em sua cidade, a primeira coisa que lhe vem à cabeça é ir a um shopping? Ou há outras opções mais interessantes na cidade para um momento de lazer?

Uma forma de observar a atratividade dos ambientes públicos de uma cidade é contar, entre seus locais mais visitados e resenhados, quantos são shopping centers.

Em Nova York e Paris, não há nenhum shopping entre os dez locais mais visitados. Em Buenos Aires, há três. Na Cidade do México e em São Paulo, quatro. No Rio de Janeiro, cinco. Em Brasília, de onde escrevo, oito dos locais mais visitados são shoppings ou lojas de shoppings.

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Nada contra shoppings. São práticos, funcionais e agradáveis para grande parte da população. A questão é relativa. A alta atratividade do shopping se compara à baixa atratividade dos espaços públicos. Por que não conseguimos construir novos espaços urbanos mais agradáveis do que shopping centers?

Faltam design e estética que agradem à maior parte das pessoas nos espaços urbanos. Nem sempre foi assim.

A arquitetura tradicional brasileira continua atraindo olhares e visitas. As antigas cidades de Olinda, Ouro Preto, Paraty, Petrópolis e Tiradentes estão entre as mais fotografadas do Brasil.

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Nas grandes cidades, são também os bairros mais antigos que concentram a arquitetura considerada mais bonita ou agradável, como as partes mais velhas dos centros de São Paulo e do Rio.

Em várias partes do mundo, as cidades podem não estar repletas de shoppings, mas tampouco têm conseguido criar outros ambientes esteticamente interessantes há pelo menos meio século.

As pessoas preferem visitar e viver nos bairros tradicionais das cidades europeias e americanas. E quando observamos os locais que as pessoas visitam em viagens de lazer, em geral são bairros construídos antes da Segunda Guerra.

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Há uma crise estética na vida urbana. O blogueiro americano Scott Alexander provocou uma parte da internet a ter essa discussão: por que nos inspiramos com a beleza histórica, mas aceitamos certa mediocridade moderna?

Não precisava ser assim. O desenvolvimento econômico global deveria ter nos levado a construir ambientes mais belos. O mundo é hoje muito mais rico do que era 200 anos atrás, mas a magnitude dos nossos ambientes está aquém das construções dos séculos 18 e 19.

É claro que o declínio da beleza urbana sofre de um problema de viés de seleção. São os bairros mais bonitos que são preservados. Os feios são reconstruídos.

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Mas olhe ao seu redor e se pergunte quais são os bairros de hoje que serão preservados e, no futuro, encantarão as pessoas da mesma forma que as construções históricas. Há algumas razões que podem ajudar a explicar esse fenômeno.

Parte do declínio tem uma explicação sociológica, inspirada em Paul Fussell. A estética arquitetônica cumpre um papel de diferenciação de classe.

Ao longo da evolução da nossa era democrática, as classes mais altas começaram a evitar a ostentação ornamental da arquitetura tradicional. Passaram a se diferenciar menos por agrado estético e mais por características que fogem à apreciação popular, detalhes apenas percebidos por seus pares.

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Parte do declínio tem também uma explicação tecnológica. A vida urbana se desenha em torno dos principais meios de mobilidade de cada época.

Desde a Segunda Guerra, o principal meio de locomoção passou a ser o carro. E cidades desenhadas para o carro possuem escalas menos humanas. O trânsito diminui a atratividade de qualquer bairro.

Parte do declínio tem ainda uma explicação econômica. A mão de obra especializada em arquitetura mais ornamental ficou relativamente mais cara. É o que economistas chamam de “efeito Baumol”.

Conforme a produtividade aumenta em setores mais tecnológicos, os salários nesses setores também aumentam. Para competir pela mão de obra, os setores menos tecnológicos precisam subir seus salários, ainda que sem ganhos de produtividade. Elevam-se apenas os custos.

É o que parece ocorrer em reformas de arquitetura antiga, como nas igrejas europeias. Reparos e manutenção ficaram mais custosos.

Todas essas explicações têm seu mérito e suas limitações. Há cidades, como Paris, que conseguiram manter seu charme apesar do carro. A distinção de classe pela estética fora da arquitetura pode ter ficado menos ornamental, mas não necessariamente é considerada mais feia pela população.

E, apesar do efeito Baumol na mão de obra, a tecnologia também trouxe ganhos de produtividade em novos métodos construtivos que poderiam embelezar estilos mais populares de arquitetura.

Independentemente das explicações, o fato é que não conseguimos mais construir ambientes urbanos tão humanos e agradáveis como outrora. Mesmo que houvesse vontade, recursos, demanda e tecnologia para cidades mais belas, nossa regulação simplesmente não as permite.

Restrições construtivas tornam ilegal construir as cidades com alguns atributos que as pessoas consideram agradáveis. Construções adensadas são limitadas por recuos e afastamentos e limites ao potencial construtivo.

Assim, por exemplo, em vez de o próprio edifício servir como limite do terreno, o recuo obrigatório torna necessária a construção de um muro. Ao passear pela cidade, é mais interessante observar prédios ou muros?

Os acessos de pedestres por vezes também são limitados por áreas de estacionamento obrigatório. Isso sem falar na própria dificuldade de aprovação do licenciamento urbano, que chega a inviabilizar projetos como um todo, especialmente os mais ousados.

Ainda assim, há esperança. Alguns projetos de construção de novos espaços urbanos permanecem, teimosamente, valorizando uma preocupação estética. O complexo da Cidade Matarazzo em São Paulo é um exemplo que tenta manter a harmonia estética entre o moderno e o tradicional da arquitetura paulista.

Que eles possam nos inspirar a buscar que os novos ambientes, bairros e cidades sejam criados pelo Brasil, valorizando a beleza e o bem estar das pessoas. Inovação e tradição não precisam ser inimigas.

Que os gestores das cidades permitam aos arquitetos, designers e urbanistas inovar e que a experimentação nos leve a valorizar e a criar boas novas tradições estéticas.

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Diogo G. R. Costa

É mestre em ciência política e presidente da Escola Nacional de Administração Pública (Enap)