Quando o torcedor vira dono: uma alternativa para os clubes de futebol

O modelo do "torcedor-investidor" dá poder de voz efetivo ao torcedor dentro do clube, além de garantir um título que pode ser negociado em Bolsa a qualquer tempo

Cesar Grafietti

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O Rangers, da Escócia, levantou € 5 milhões com a venda de cerca de 5% de suas ações para torcedores/investidores  (Reprodução/Twitter)/@RangersFC)
O Rangers, da Escócia, levantou € 5 milhões com a venda de cerca de 5% de suas ações para torcedores/investidores (Reprodução/Twitter)/@RangersFC)

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Quando a ideia da Superliga de clubes europeia se transformou numa das páginas mais surreais da história do futebol, muitas pessoas atribuíram o encerramento do projeto às reações da UEFA e à pressão dos torcedores ingleses. Mas essa é apenas uma parte da resposta.

O ponto central da dissolução do projeto Viúva Porcina – aquela que foi sem nunca ter sido – está na dura reação do governo britânico liderado por Boris Johnson. Aproveitando a reação adversa vinda das ruas, Johnson ameaçou interferir nos clubes a partir de mudanças na lei que rege a estrutura de controle dos clubes de futebol, de forma a obrigar que os torcedores tivessem presença no controle acionário como forma de evitar novas Superligas.

Por isso, os clubes ingleses foram os primeiros a pular do barco, sob sorrisos dos alemães e do PSG. Clubes alemães que tem um modelo de controle acionário que preserva a participação dos torcedores no comando das instituições.

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A ameaça de Boris Johnson acendeu uma luz de oportunidade no futebol inglês e em outros mercados: a possibilidade de torcedores comprarem ações dos clubes pelos quais torcem, podendo assim participar de alguns processos de decisão.

Antes de mais nada, essa possibilidade é bastante complexa de ser colocada em prática. Idealmente, o clube precisa ter capital aberto em Bolsa de Valores e isso significa custos, controles e governança que muitos deles não estão preparados ou interessados em ter. Entretanto, ultrapassada essa barreira, talvez exista uma oportunidade interessante para o futebol.

Sempre que o assunto é clube-empresa minha avaliação é de que ser empresa não transformará a associação mal gerida num negócio exemplar apenas com um passe de mágica. Há todo um processo que passa pelo desenho da estrutura, dos modelos de negócio e gestão, com definição de regras de compliance e governança necessários para um negócio prosperar. Ainda que pareçam mais fáceis de serem implementadas numa empresa que numa associação – assim como é mais fácil numa S/A que numa Limitada de controle familiar – o racional por trás dessa construção serve a qualquer modelo societário.

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Ocorre que apenas nos modelos corporativos o torcedor pode ser efetivamente dono do clube. Nos modelos ditos “democráticos”, os torcedores participam mediante contribuições mensais que dão direito a voto. Ou seja, mantendo as parcelas em dia é possível votar – mas, se estiver em atraso, não.

Se pensarmos num modelo como o que o Manchester United está desenvolvendo, e que já foi aplicado no Rangers da Escócia, os clubes podem vender um percentual de suas ações para torcedores de maneira pulverizada. Com isso, o torcedor paga uma única vez e é efetivamente dono do clube. A depender da quantidade de ações, ele pode ter participações diversas na gestão, diretamente ou através de uma associação de acionistas, com representantes eleitos por eles.

Usando o caso do Rangers como exemplo, o clube escocês levantou € 5 milhões com a venda de cerca de 5% de suas ações para torcedores/investidores que pagaram a partir de € 550 por ação. O valor arrecadado ficou abaixo da expectativa de algo em torno de € 7,5 milhões. Essas ações darão direito a voto nas decisões do clube que ocorrem em reunião de acionistas, além de garantir um assento no Conselho de Administração.

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Alguém pode perguntar: “Mas isso não parece com a história dos fan tokens?”. Pois é, parece. Com algumas diferenças. A primeira é que o torcedor passa a ser efetivamente dono do clube e, se o modelo for bem desenhado, os torcedores podem ter voz ativa em diversos temas e não participar apenas em decisões pouco relevantes. O que não significa gerir o clube, uma vez que não é esse o papel do torcedor. Gerir qualquer empresa é algo complexo, e administrar um clube de futebol é bem mais complicado do que tomar decisões numa mesa de bar.

Entretanto, ele pode participar de assembleias de acionistas, ter poder de veto sobre cláusulas pétreas como nome, cor e símbolos, além de outros temas que uma assembleia de acionistas decide. E não tem nada a ver com conseguir benefícios como ingressos gratuitos e fotos com atletas no centro de treinamento. Para isso, existem os programas de fidelidade, para quem quiser se relacionar com o clube e não com a gestão.

É mais eficiente dar poder de voz efetivo ao torcedor, além de garantir um título que pode ser negociado em Bolsa a qualquer tempo. Inclusive, esse é um dos desafios de um bom programa de abertura de capital: garantir liquidez. Mas esse é outro tema. Ainda assim, as regras de negociações de ações em Bolsa são claras – e se houver obrigação de recompra por parte dos majoritários há ainda mais segurança para o torcedor-investidor. Coisa que os fan tokens não garantem. Afinal, você pode negociá-los, o clube ganha dinheiro com essa negociação, mas sempre ressaltam que “eles não são feitos para isso”. Sei.

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Outro benefício é que o clube se apropria de todo o dinheiro aportado pelos torcedores-investidores. E esses recursos podem ter destino certo, definido em prospecto e controlado pelos novos acionistas. Investidores-torcedores podem ter instrumentos de proteção a minoritários contra gestões temerárias. É um poder real.

Obviamente, esse não é um processo simples. Exige maturidade dos clubes, demanda apoio de especialistas, uma profunda explicação sobre o funcionamento do sistema e, inclusive, uma possibilidade de financiar a aquisição, estrutura que um bom parceiro pode ajudar a montar e que daria chance de participação a torcedores.

Além da Inglaterra, os clubes italianos começam a analisar esta possibilidade. Quem sai na frente é a Inter de Milão. Por conta das dificuldades enfrentadas pela Suning, acionista majoritária do clube, um grupo de 300 torcedores-investidores iniciou um processo chamado Interspac, que negocia a compra de até 30% da equipe.

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Esse processo possibilitou que a Federação Italiana iniciasse um estudo sobre quais os efeitos positivos e negativos que grupos de acionistas, ou mesmo negociações pulverizadas, poderiam trazer ao futebol local. Seja em termos de redução de dívidas, aportes para investimentos e até sobre os riscos de gestão. Mas é um tema que começou a ser tratado de forma mais séria.

E no Brasil?

Acho que ainda estamos longe dessas possibilidades, especialmente considerando que a Lei da SAF tem inúmeras fragilidades e sofreu vetos na aprovação que simplesmente a tornam ineficaz. Mas me parece uma solução interessante para alguns clubes, especialmente os que tem grande torcida, que poderiam ganhar muito com a estratégia. Primeiro porque poucos investidores teriam interesse em ser minoritários junto com a associação. Segundo, porque muitos torcedores têm ojeriza à possibilidade de seu clube ter um dono. Terceiro, porque é uma forma interessante de adicionar governança e transparência.

Se tivermos projetos bem estruturados, que permitam a pulverização e efetiva participação dos minoritários, pode ser uma estratégia interessante para levantar capital. Mas essencialmente se for desenvolvida ao lado de estratégias de ação eficientes em programas de fidelidade, os atuais sócios-torcedores.

Ainda falta maturidade e segurança aos agentes – clubes, mercado financeiro e torcedores – para que isso ganhe corpo. Mas é hora de começar a trabalhar, desenvolvendo possibilidades e criando oportunidades para tirar o futebol brasileiro das sombras.

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Cesar Grafietti

Economista, especialista em Banking e Gestão & Finanças do Esporte. 27 anos de mercado financeiro analisando o dia-a-dia da economia real. Twitter: @cesargrafietti