Liga de Clubes: por que ainda seguimos na contramão do processo

No futebol brasileiro, iniciamos a construção da casa contratando os serviços de banda larga mesmo antes de fazermos a terraplanagem do terreno

Cesar Grafietti

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(Jasper Juinen/Getty Images)
(Jasper Juinen/Getty Images)

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Nesta semana, tivermos algumas evoluções relacionadas à formação da liga de clubes brasileiros de futebol. Os processos que estavam em andamento aparentemente foram freados, surgindo um novo grupo interessado.

A história é sempre a mesma: pessoas de fora dos clubes de futebol encontraram um eldorado perdido no tempo e no espaço e querem um pedaço desse negócio. Para isso, oferecem um bom dinheiro adiantado em troca de participação nas receitas futuras por um período longo.

Mudam as peças, permanecem as ideias. Dada a fragilidade financeira de muitos clubes, ou mesmo o interesse em colocar algum dinheiro no bolso para reforçar seus elencos, os interessados em montar ligas de clubes no Brasil acenam com dinheiro agora, como antecipação de receitas comerciais futuras, que vão de novos contratos de transmissão ao naming rights da competição, passando por uma série de novas propriedades – se você leu NFT e fan token em algum lugar, não se espante, pois é isca fácil para fisgar deslumbrados – que transformarão o futebol brasileiro na nova Premier League.

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Seguimos construindo a casa começando pelo telhado. Não, melhor que isso: iniciamos a construção contratando os serviços de banda larga mesmo antes de fazermos a terraplanagem.

Assim como as SAFs deveriam começar pela reestruturação das associações, de forma a reorganizar a casa e trazer mais valor ao negócio, uma liga de clubes precisa começar pela base, e a base é a intenção genuína de formar um grupo que vai gerir coletivamente o negócio futebol.

Se não for assim, o produto terá cara e jeito daquelas camisas chamadas de “réplicas” e vendidas nas portas dos estádios, e que também ferem (e muito) o bolso dos clubes brasileiros.

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Depois de quererem se unir, é preciso construir a forma, os conceitos, as regras, a governança, aparando as inúmeras e persistentes arestas que certamente existirão.

Se alguém pensa em fazer uma liga de clubes em seis meses, tenho uma notícia: não vai dar. Ou então as paredes tendem a subir tortas.

É natural que clubes de portes diferentes, penetrações regionais distintas, torcidas maiores e menores, mais e menos receitas e culturas diversas tenham visões variadas de mundo e de estruturação de um negócio em conjunto.

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Um mediador serve para tentar colocar todos no mesmo trilho ou, seguindo nossa metáfora, um engenheiro para derrubar a parede torta e refazê-la.

Depois de um longo inverno, muitas discussões e reuniões abandonadas, nascerá algo sustentável. E falamos apenas na estrutura legal, organizacional, de relacionamento com as entidades legais do futebol, que são as federações e a confederação.

Porque, a partir daí, trataremos da parte operacional do negócio, que é o calendário, o caderno de licenciamento rígido, o modelo de fair play financeiro. Tudo isso pode ser feito de forma combinada e organizada com as entidades legais.

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Há muitas coisas em evolução e que precisam apenas de um empurrão para chegarem no ponto correto. Empurrão que muitas vezes não acontece por falta de interesse dos clubes.

Se quiserem formar uma liga, os clubes precisarão enfrentar esses problemas. Mas eles estão longe da negociação de direitos de transmissão e do dinheiro adiantado em função disso. Isso é consequência de uma liga organizada, e não o início do processo.

Alguém tratou da arbitragem? Do VAR? Da Justiça Desportiva? Ou é melhor deixar para depois, porque o que importa é o dinheiro no bolso?
Para chegar no dinheiro, é fundamental que antes a liga opere da maneira que melhor entender, corrigindo a rota e ganhando corpo.

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Como você vende um ativo que nem existe? Ele está barato ou caro? Quais as obrigações dos investidores e as proteções dos clubes? Como você faz um valuation de algo que não existe?

É preciso existir e mostrar seu tamanho. Assim, você negocia e busca um pedaço do ganho de quem comprou. Mas sempre com alguma referência.

Outro tema importante é que a união precisa ser plena. Ou seja, não basta ser apenas da Série A e da B. Quando os clubes da Série C começarem a subir e chegarem na primeira divisão, farão uso inteligentemente da capenga Lei do Mandante.

Imagine quatro clubes que cheguem à Série B e não concordam com os valores que a liga oferece. E imagine que eles cheguem à Série A. A Lei do Mandante, sem obrigação de verter os direitos para uma negociação coletiva, pode acabar numa liga de 20 clubes com 15 ou 16 num contrato e quatro ou cinco em outro.

Não é à toa que os grupos que se interessam pela formação da liga têm em comum a ideia de oferecer dinheiro. É o que move os clubes. E seguirão sempre pelo mesmo caminho.

Conviveremos com alguns riscos, como o da transmissão complicada do Campeonato Carioca, que vai desde a qualidade ruim ao narrador engraçado que fala de tudo menos do jogo – já disseram e eu repito: se precisa fazer tanto esforço para gostar de futebol, procure outra coisa para fazer – e chegamos ao modelo do Campeonato Paulista, que dificulta o acesso do torcedor às transmissões, mas gerando o mesmo bom dinheiro que as camisas dos clubes transformadas em abadá. Todos pagam pouco, ficam com pouco, e tornam a camisa feia – necessário fazer, mas ficam feias – mas no final o dinheiro é bom.

Enquanto isso, o torcedor se desinteressa dos jogos ou apela para a transmissão “réplica”, igual à camisa da porta do estádio. Afinal, está tudo concentrado lá.

Aliás, ao menos nessa história dos novos direitos de transmissão dos campeonatos estaduais temos um exemplo positivo dos efeitos de uma liga: ainda que a lei do mandate esteja em vigor, a Federação Paulista foi capaz de organizar a competição como uma liga, coordenando a negociação coletiva dos direitos, garantindo uniformidade de produção, enquanto as demais deixaram seu produto solto, diminuindo muito o valor final. Uma liga deveria funcionar como o Paulistão. Mas é só um item, o final, e não a base.

Enfim, ainda ouviremos muito falar em liga de clubes no Brasil. Ela é fundamental para o desenvolvimento do futebol brasileiro. E é bom que estejam falando. Mas será ainda melhor se os clubes tomarem as rédeas, planejando hoje para colher no futuro, reduzindo muito o risco de entregar por pouco o que valerá muito.

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Cesar Grafietti

Economista, especialista em Banking e Gestão & Finanças do Esporte. 27 anos de mercado financeiro analisando o dia-a-dia da economia real. Twitter: @cesargrafietti