Governança Corporativa é o caminho para um futebol sustentável

Num mundo cada vez mais guiado pelas práticas ESG, é condição necessária conhecer e reconhecer donos, origem e propósito do dinheiro

Cesar Grafietti

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Sempre que falamos em evolução da gestão no esporte, trazemos o tema da governança. Para quem é da vida corporativa, independentemente de ser uma grande empresa, uma associação, uma ONG ou uma entidade pública, a ideia da governança é algo muito simples, objetivo e óbvio.

Mas, como já comentei no artigo passado, quando vamos para o mundo do futebol, o óbvio é algo que não existe.

Governança corporativa é, tentando simplificar, o conjunto de regras que rege uma instituição. Tem componentes internos, como as políticas de atuação, procedimentos, normas, diretrizes estratégicas e de desempenho, mas também externos, nas relações com acionistas, conselho de administração, fornecedores, clientes, enfim, toda a gama de stakeholders.

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Portanto, são regras e normas que devem ser seguidas por qualquer pessoa que ocupe uma determinada função.

Quando criava essas regras na vida profissional, dizia sempre à equipe que “precisamos definir como fazer, para que qualquer pessoa que sente nas nossas cadeiras no futuro saiba como agir e não saia tomando decisões da sua cabeça”.

Ou seja, governança é a forma de garantir homogeneidade nas gestões.

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Pensando no nosso adorável mundo do futebol, a ideia de governança costuma ser pouco aplicada. Não posso dizer que falte a todos os clubes, mas certamente há uma quantidade razoável deles que não tem nenhum modelo de políticas de atuação claramente definidas.

É a velha conversa surrada da “experiência” e do “cheiro de grama”, lembrando sempre que “o futebol é diferente”.

Um parêntese: quando ouvir ou ler essas expressões, lembre-se de que a pessoa que diz isso se aproveita do futebol, por isso quer deixar tudo como está. Sanguessugas da paixão alheia.

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Voltando, vamos então falar sobre governança para dentro e para fora de um clube de futebol. A aplicação dentro das estruturas, especialmente associações, garante justamente que, a cada eleição, não teremos mudanças profundas na forma de gerir o clube.

Ao mesmo tempo, é um risco nos casos de clubes empresas que trocam de donos. Se é verdade que costumam cuidar melhor do seu dinheiro, os acionistas também podem fazer o quem bem entenderem com ele, aplicando gestões personalistas.

Por isso, inclusive, gosto muito dos modelos com mais de um acionista, de capital aberto, ou no perfil 50%+1, que para ser eficiente precisa necessariamente de governança à prova-de-bala.

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Para exemplificar o que é e como seria uma boa aplicação de práticas de governança, vamos separar a análise em dois blocos: medidas internas e medidas externas.

Como medidas internas, falaremos sobre o que o clube poderia fazer para melhorar sua estrutura de gestão.

A primeira coisa a fazer é definir o funcionamento da estrutura organizacional. Qual é o organograma, quais são os departamentos (esportivo, financeiro, marketing, jurídico, comercial, administrativo) e como eles se relacionam.

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Além disso, quais são as áreas embaixo de cada “caixa”. Por exemplo, onde fica a Inovação? As áreas de tecnologia ficam abaixo de cada caixa ou sob gestão específica? Comercial fica dentro de financeiro, de marketing ou é independente?

RH é dentro de esportivo, de comercial ou é independente? Enfim, são decisões que garantem que a operação do clube seja a mais eficiente possível.

Depois, é fundamental termos políticas de relacionamento e obrigações entre as diversas áreas. Não é possível que a área esportiva não tenha um profissional tecnicamente qualificado para pensar o jogo dentro da cultura do clube, ser responsável pela indicação de treinadores profissionais, de base e feminino, ou mesmo coordenar a gestão do elenco – quem contratar? quem dispensar?. Tudo isso suportado por equipes técnicas e base de dados.

Mas não só. A governança deveria permitir pensar numa estrutura onde todas as decisões são colegiadas e analisadas a partir da demanda esportiva. Ou seja, inter-relacionamento entre áreas.

Quanto gastar e com quem gastar é discussão que nasce no esportivo, passa pelo financeiro e tem respaldo do CEO. Ah! É preciso que haja um CEO que bata o bumbo para a estruturar rodar.

Mas a governança cria as regras de contorno desses processos. Por exemplo: i) atletas só podem ser contratados até a idade máxima de 25 anos; ii) o clube precisa definir um limite de atletas acima dessa idade; iii) não pode ter mais que “x” atletas por posição, limitados a um certo número por conjunto (zaga, meio, ataque). Tem que forçar o clube a controlar os custos e usar a base; iv) tem que reavaliar constantemente o elenco e a base, a partir de medidas objetivas (scouting) de forma a saber quem vender, quando vender, e efetivamente quem contratar.

Tudo isso limitado por valores máximos de gastos com remuneração e aquisição de direitos econômicos, controlados a partir de um orçamento feito de forma correta e sem invenções.

Regras e normas, mas que dependem de pessoas interessadas em fazer a coisa certa. Porque não se engane: a oposição sempre será crítica, mas jamais será tão drástica a ponto de abrir a possibilidade de ser questionada quando virar situação. É o mal do modelo político-associativo.

Mas também há medidas externas, para fora do clube.

É preciso definir qual o relacionamento com o conselho de administração, que aliás deveria ser criado e ter regras de preenchimento e função definidas.

O papel do conselho é justamente atribuir diretrizes e controlar a execução, e cada conselheiro deveria ser capaz de ter uma atribuição específica, como monitorar a parte esportiva, acompanhar as finanças e regular as ações de marketing.

Os clubes também precisam cuidar das ações junto ao mundo exterior, cujo principal interessado é o torcedor. Apresentar relatórios de desempenho trimestrais junto a balancetes completos e com notas explicativas, bem como apresentar fatos relevantes sobre ocorrências que impactem a operação do clube.

Tudo isso gerido por um profissional de RT, ou Relação com Torcedores. Mas que também pode ser um RS, ou Relação com a Sociedade.
Lembramos sempre que associações sem fins lucrativos, apesar de terem donos, devem esclarecimentos e explicações à sociedade, pois possuem muitos benefícios do Estado.

Outro parêntese: é no mínimo estranho termos uma instituição que lida com milhões de reais e opera com contratos profissionais não ser taxada como qualquer empresa. Futebol é uma atividade profissional, e assim deveria ser tratada fiscalmente.

Nas relações externas, há outro aspecto que precisa de governança clara, não apenas dos clubes mas também de órgãos externos: a negociação de seus controles acionários.

O esporte associativo movimenta bilhões de euros anualmente pelo mundo, mas no Brasil os poderes políticos e aspirações pessoais ainda querem ver a indústria amadora, pois lucram com isso.

Citando apenas duas negociações recentes, temos a troca de controle do New York Mets (da MLB) por € 2,1 bilhões, a venda de 10% da empresa que negocia direitos de TV da Serie A italiana de futebol por € 1,9 bi, valorizando a liga em € 19 bi.

No Brasil, preferimos depender de Profut, Refis, gestores amadores e o tal “cheiro da grama” para seguirmos defendendo alguns feudos.
Independentemente disso, e ciente de que nem tudo são flores, as negociações envolvendo clubes esportivos não são simples.

Aliás, falo de clubes esportivos e não apenas de futebol, porque vejo como potencial de sucesso negociações envolvendo clubes de basquete e vôlei no Brasil, visto que são atividades de sucesso de público, com boa organização, mas talvez careçam de gestões mais robustas e business oriented para se desenvolverem mais.

Sempre que você tem negociações que envolvem o relacionamento além do comercial entre torcedores e clubes, ultrapassando a ideia de consumidor, é fundamental que haja regras claras de governança para que não tenhamos uma série de problemas.

Na parte do vendedor, é fundamental termos processos claros de due dilligence e “know you client”, que garantam que o comprador tem dinheiro limpo, tem fundos para honrar a aquisição e a execução do business plan e que as causas que defendem sejam justas.

Num mundo cada vez mais guiado pelas práticas ESG (Environmental, Social e Governance), é condição necessária conhecer e reconhecer donos, origem e propósito do dinheiro.

Os clubes que quiserem se transformar em empresas e serem negociados precisam definir regras de recompra (como colocação esportiva, perdas financeiras) e presença com golden share para garantir condições mínimas de existência (cores, símbolos, localidade).

Citar os empoeirados exemplos de Bahia e Vitória ainda no século passado, ou a mal sucedida operação envolvendo o Figueirense, sem entender os contextos em que foram criados, é apenas uma forma de fugir do tema central: analisar o que deu errado e propor alternativas que permitam resultados positivos no futuro. A partir de entender o que houve é possível evitar a repetição de erros.

Para completar a estrutura, é fundamental termos um agente regulador externo que define as regras claras para aceitar a mudança de controle acionário de um clube. Não pode ser na base do “vamos analisar”, mas sim deixando claro “o que vamos analisar”.

Infelizmente, nos projetos de lei de clube-empresa no Congresso, não vi esta possibilidade. E não há regulamento se não houver um regulador. A ausência dele é porteira aberta para uma série de aberrações.

No final, independentemente do objetivo, e especialmente para os clubes que quiserem se manter associações, a adoção de práticas modernas e eficientes de governança é o único caminho para termos gestões que sejam equilibradas. É ela que vai garantir que uma associação seja perene e sustentável, esportiva e financeiramente falando.

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Cesar Grafietti

Economista, especialista em Banking e Gestão & Finanças do Esporte. 27 anos de mercado financeiro analisando o dia-a-dia da economia real. Twitter: @cesargrafietti