Os sem-teto: Alan, Jean e a elite do funcionalismo público

O descumprimento do teto salarial do setor público mina o teto de gastos e ameaça os recursos para a educação e a saúde

Aod Cunha

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Duas reportagens do jornalista Tiago Boff (Zero Hora) no RS recentemente chamaram a atenção sobre como é difícil a mobilidade social no Brasil. Nas matérias, Alan e Jean, dois meninos de 11 e 16 anos, estudam sem teto no meio da lavoura e em cima de um morro para ter um futuro melhor do que o de seus pais.

Noutra matéria, também recente, a Folha de São Paulo (13/07/2020), com base nos dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), mostrou que entre setembro de 2017 e abril de 2020 foram feitos 13.595 pagamentos acima de R$ 100 mil mensais por mês para juízes no Brasil. Lembrando que o teto salarial do setor público no Brasil é de R$ 39,3 mil por mês, equivalente à remuneração de um Ministro do Supremo Tribunal Federal.

A relação entre tetos e temas aparentemente tão distintos é o que se quer abordar aqui. Hoje, muitos acusam a regra do teto de gastos de retirar dinheiro da educação e da saúde. Poucos conseguem entender onde realmente estão as maiores resistências ao teto de gastos. Uma das maiores vem do não cumprimento do teto salarial no serviço público.

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Alan e Jean: a educação pública como mobilidade social no Brasil

Alan Somavilla, 11 anos, mora no interior rural do município de Estrela Velha, região central no Rio Grande do Sul, e cursa o sexto ano na Escola Estadual de Ensino Fundamental (EEEF) Itaúba.

Seus pais, os agricultores Odilésio Somavilla e Dejanira Somavilla, improvisaram uma lona de plástico para o filho no meio da lavoura, ao perceberem que era um local onde Alan conseguiria captar um sinal de internet para poder estudar em meio à pandemia.

Alan, de 11 anos, estuda no meio da lavoura durante a pandemia (foto: Giovana Dalcin)

Dona Dejanira, 35, explicou o esforço pelo futuro do filho:

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“ – O sinal lá é bom, e assim ele não pega frio nem chuva. A lavoura é um trabalho muito duro, e a gente quer que ele siga adiante. Eu não tive estudo, e hoje me faz falta –“ (Gaúcha ZH, 24/08/2020)

Foi a própria diretora da escola, ex-aluna da mesma, Giovana Carvalho Dalcin, 46, que tirou a foto da sala de aula improvisada e procurou a imprensa, sensibilizada com a situação do aluno e com o esforço dos pais.

Nesse mesmo período, a aproximadamente 200 km de distância ao nordeste de onde vive Alan, Jean Carlo Araldi, 16, enfrenta outra batalha. Estudante do segundo ano do ensino médio da Escola Estadual de Ensino Médio Ricardo Francisco Gasparin, morando na área rural de União da Serra, sobe o morro no inverno gaúcho para estudar a céu aberto, com estojo, caderno e um celular pré pago na mão.

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A mãe de Jean estudou até a 4ª série. O pai , Oscar Fernando dos Santos, caseiro, não aprendeu a ler. Os pais investiram 20% da renda mensal por 1 ano na compra de um receptor de internet para o filho poder estudar.

Jean estuda a céu aberto (Foto: Oscar Fernando dos Santos)

Jean reconhece o esforço dos pais e planeja o futuro:

“ – Se estudar bastante talvez eu possa conseguir um bom trabalho, planejar um bom futuro para mim. E ajudar meu pai e minha mãe, que estão sempre comigo, indo inclusive lá em cima às vezes, para não me deixar sozinho-“ (Zero Hora, 27/08/2020)

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Casos como o de Jean e de Alan mostram como não é fácil a mobilidade social num País onde 80% das crianças estudam em escolas públicas em condições que variam entre a falta de estrutura das escolas, má remuneração dos professores, baixa escolaridade dos pais e moradia precária.

Em meio a tudo isso, achamos verdadeiros heróis, como a professora Giovana e os pais dos meninos.

Teto remuneratório, teto de gastos e gastos sociais do setor público

O teto salarial no setor público foi criado junto com aprovação da reforma da previdência em 2003. De lá para cá uma série de novos benefícios e auxílios foram criados de maneira a burlar o atual limite do teto, fixado em R$ 39,3 mil.

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Hoje há um significativo número de carreiras, nos diferentes poderes, que recebem acima do teto.
Apenas no Poder Judiciário, segundo o CNJ, no mesmo levantamento já citado aqui, mais da metade dos salários de 26.177 juízes analisados estavam acima do teto constitucional. No período analisado, 95% dos magistrados receberam pelo menos uma remuneração acima do teto salarial.

Seguidamente escuta-se o argumento de que a economia com um maior rigor na observância do teto remuneratório é pequena frente ao universo amplo dos programas sociais e mesmo em relação ao total dos gastos com o funcionalismo, em que a grande massa de salários está muito abaixo do teto salarial, como é o caso dos professores de escolas públicas.

É importante destacar que não foram os gastos com educação, saúde ou mesmo previdência que colocaram em risco a execução do teto até o ano passado. Sequer os R$ 50 bilhões por mês com o auxílio emergencial a mais de 50 milhões de brasileiros colocou em risco o teto de gastos em 2020, dado que a Lei permite gastos extraordinários com catástrofes ou epidemias.

No entanto, já em 2019, antes da pandemia, 7 dos 8 tribunais federais, onde há uma grande concentração de salários acima do teto salarial, não conseguiram respeitar os seus limites do teto de gastos. Como 2019 era o último ano em que a Lei previa ser possível compensar o excesso de gasto de um poder pela folga de outro, o Poder Executivo da União (onde se encontram os gastos com educação e saúde) compensou o rompimento do teto de gastos do Poder Judiciário.

Quando se aponta o não cumprimento do teto salarial em diferentes categorias, não só no Judiciário, há quem argumente que o excesso de remunerações não é o principal problema em termos de valores totais do crescimento do gasto com pessoal.

Esse raciocínio em parte se baseia no fato de que a maioria dos servidores e da massa salarial no setor público está abaixo do teto. Ainda que isso seja verdadeiro, o raciocínio desconsidera a dinâmica das pressões salariais no funcionalismo.

Como faz um governador ou secretário da Fazenda de um estado para negar aumento salarial para uma professora de uma escola pública, como as do Alan e do Jean, ganhando em média não mais do que R$ 2.500,00  quando assiste todos os dias a inúmeros casos de remunerações de R$ 100 ou R$ 200 mil dentro do mesmo setor público?

Evidentemente, ninguém espera que diferentes carreiras do setor público não tenham remunerações distintas. Mas com este nível de diferença? O teto salarial foi justamente criado para colocar um limite nessas diferenças, além de um limite máximo a ser pago.

Sem um teto salarial de verdade, não só se gasta mais do que se deveria com a elite do funcionalismo público, mas não há como controlar o crescimento de toda a massa salarial do serviço público, de ativos e de inativos. E é este crescimento descontrolado que retira boa parte da capacidade de gestão de políticas públicas e programas sociais no Brasil, principalmente em estados e municípios.

A reforma administrativa precisa regrar o teto salarial

O anúncio do envio da reforma administrativa logo após o envio do Orçamento da União para 2021 traz a esperança de correção de um universo amplo de distorções remuneratórias e funcionais no serviço público brasileiro.

Uma boa reforma administrativa não deve ser vista apenas como uma frente de melhoria da gestão fiscal. Deve, principalmente, melhorar a estrutura de incentivos para a prestação de melhores serviços públicos.

Nesse sentido, apesar de o governo ter anunciado que a reforma atingirá apenas os novos servidores, espera-se que o Congresso Nacional lidere uma discussão de inclusão de regras também para os atuais servidores, mesmo que moduladas por algum regime de transição.

No caso do teto salarial, não vejo razão para não aplicá-lo de maneira imediata para todos os servidores, no âmbito da reforma, ou em lei separada, junto com um conjunto mais amplo de medidas da reforma.

Leia também: Reforma administrativa cria 5 novos tipos de vínculo e restringe estabilidade de futuros servidores; veja os destaques

A aplicação do teto salarial, mesmo que enfrente a resistência de uma parte da elite do funcionalismo público, ainda manterá essa muito bem paga. Além disso, trará uma economia imediata de recursos, dará tratamento mais justo entre as diferentes categorias de servidores, diminuirá a pressão pelo crescimento da massa salarial no setor público consolidado e aliviará as mais poderosas pressões pelo fim do teto de gastos. Tudo isso sem tirar a capacidade de gestão dos programas sociais já existentes antes da pandemia.

No Brasil de Alan e Jean, que precisam estudar sem o teto de casa, e da escola pública da professora Giovana, não parece pedir demais que haja um teto salarial de verdade para a elite melhor remunerada do funcionalismo público.

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Aod Cunha

Economista. É conselheiro de administração de empresas como Grupo Vibra, Agibank, Atiaia Energia (Grupo Cornélio Brennand), Seguros Unimed, Grupo Edson Queiroz e ATITUS e membro independente de comitês de investimentos. Foi sócio do Banco BTG Pactual e managing director do JP Morgan. Entre 2007 e 2009 foi secretário da fazenda do estado do Rio Grande do Sul e presidente do conselho de administração do Banrisul. É professor do curso de pós graduação em Finanças, Investimentos e Banking da PUCRS. Especialista em economia da CNN.