Rifando o jantar

A proposta de financiar transferências de renda desviando recursos de precatórios e da educação revela os limites já muito claros do compromisso do governo com o equilíbrio fiscal. Querem rifar o jantar para pagar o almoço

Alexandre Schwartsman

Importante: os comentários e opiniões contidos neste texto são responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a opinião do InfoMoney ou de seus controladores

(Jefferson Rudy/Agência Senado)
(Jefferson Rudy/Agência Senado)

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Como colunista de economia, sou imensamente agradecido por viver no Brasil. Não foram poucas as vezes que a inspiração não andava lá essas coisas e, de repente, aparece do nada uma bobagem de grandes proporções bem quando eu (certamente não o país) mais precisava dela.

Falo, no caso, da proposta – provavelmente, o proverbial “balão de ensaio” – de “financiar” o novo programa de transferência de renda por meio do não pagamento de precatórios e do desvio de parte dos recursos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), uma tentativa para lá de canhestra no sentido de violar o teto de gastos, digna do saudoso (#sqn) Arno Augustin, o Rei das Pedaladas.

Começo do começo. A popularidade do presidente subiu com o pagamento do coronavoucher, que nos custa a bagatela de R$ 50 bilhões/mês, já deduzida a migração de quem recebia o Bolsa-Família para o auxílio-emergencial.

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Tal volume é simplesmente insustentável: se mantido por 12 meses, implicaria desembolso de R$ 600 bilhões, um tanto inferior à maior despesa do governo federal, benefícios previdenciários do INSS (R$ 700 bilhões nos últimos 12 meses).

Para fins de comparação, o gasto primário do governo federal no ano passado atingiu R$ 1,44 trilhão. Ou seja, a manutenção desse programa implicaria elevação permanente de mais de 40% nas despesas federais, ou pouco mais de 8% do PIB.

Cria-se, assim, um claro conflito. De olho em 2022, o presidente bem que gostaria de manter o programa. Mas, como o insustentável raras vezes se sustenta, tem que se contentar com algo menor, mas que ainda possa ser visto como sua marca na área social. Daí a ideia da Renda Cidadã, essencialmente um Bolsa-Família turbinado.

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Enquanto o gasto associado ao Bolsa-Família está orçado em R$ 35 bilhões no ano que vem, o Renda Cidadã, nas palavras do relator do orçamento, senador Marcio Bittar, custaria algo como R$ 30 bilhões a mais, ou seja, R$ 65 bilhões (0,9% do PIB).

O problema é fazer caber R$ 30 bilhões a mais no orçamento, cujo limite, dado pelo teto de gasto, é de R$ 1,52 trilhão. Isso representa cerca de 2% do dispêndio total. Idealmente, bastaria remanejar outras despesas. Mas, como se sabe, o orçamento brasileiro é extraordinariamente rígido.

Segundo a lei orçamentária encaminhada há cerca de um mês, os benefícios previdenciários somariam R$ 704 bilhões, a folha de pagamentos da União R$ 337 bilhões, enquanto as demais despesas obrigatórias (com e sem controle do fluxo de desembolsos pelo Tesouro) chegariam a R$ 366 bilhões.

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Em outras palavras, o conjunto das despesas obrigatórias representa R$ 1,41 trilhão (93% da despesa total). Sobram apenas R$ 109 bilhões para as despesas ditas “discricionárias”, incluindo todos os investimentos federais, muito próximo ao limite mínimo para o funcionamento do governo e insuficiente para repor sequer a depreciação do capital público.

Em outras palavras, não há como fazer caber um aumento de R$ 30 bilhões mantidas as regras atuais, ou melhor, não há como fazê-lo num mundo sem mágicas contábeis. Mas, felizmente, trata-se de assunto para o qual não faltam prestidigitadores.

Há dentre os gastos da União parcela reservada para o pagamento de precatórios, equivalente a R$ 55 bilhões. Precatórios representam uma dívida do poder público para com os cidadãos, derivada de uma condenação em processo judicial.

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A proposta do relator é limitar o pagamento de precatórios a 2% da receita corrente líquida do governo, o que desviaria perto de R$ 25 bilhões para o Renda Cidadã.

Como bem lembrou meu amigo Carlos Kawall, ex-secretário do Tesouro, não se trata apenas de pedalada, mas puro e simples calote. Se me permitem a comparação, equivale a não pagar a pensão alimentícia dos filhos para gastar com o novo amor.

Já o Fundeb não é limitado pelo teto de gastos. A própria Emenda Constitucional nº 95, que criou esta restrição, deixou esses recursos de fora, já que serviriam para financiar a educação básica.

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Ademais, há também cerca de um mês, a Emenda Constitucional nº 108 elevou o valor das transferências do Governo Federal para o Fundeb de 10% para 23% do total entre 2021 e 2026 (em 2021, por exemplo, será de 12%).

Assim, as transferências da União, que atingiram R$ 15,6 bilhões em 2019, devem subir para perto de R$ 20 bilhões no ano que vem.

Segundo o relator, contudo, em vez de transferir esses recursos para estados e municípios financiarem gastos em educação, parte deles seria desviada para o novo programa.

É, de fato, curioso: houve originalmente aumento das despesas que não contam para o teto de gastos, originalmente vinculado à educação. Agora, se propõe que tais despesas sejam orientadas para outro fim.

Este episódio desde logo nos traz uma lição importante, sempre ignorada pelos que defendem um teto mais “flexível”, retirando dele despesas (investimentos, gastos sociais etc.) supostamente nobres: qualquer exceção a qualquer regra fiscal, não importa quão minúsculo seja seu tamanho original, será sempre devidamente aproveitada para passar uma boiada onde antes mal se espremia um bezerro.

Foi exatamente o que ocorreu com as “pedaladas” de Dilma-Mantega-Augustin, em particular os adiantamentos de bancos oficiais para o Bolsa-Família, previdência e seguro-desemprego, e não há motivo para imaginar nada diferente toda vez que exceções forem criadas.

Isto dito, caso a proposta prospere, fica nítida a cada dia a falta de comprometimento do governo com o equilíbrio das contas públicas.

Independentemente de emendas constitucionais que possam dar amparo legal às novas pedaladas, gastos adicionais seguirão se transformando em endividamento adicional, adiando ainda mais o processo de estabilização da dívida, que, vamos falar a verdade, requer dose de credulidade além de qualquer medida a esta altura do campeonato.

Ao contrário, o que vemos é crescimento ininterrupto da dívida, processo que cedo ou tarde – em geral mais cedo do que mais tarde – termina em sangue, suor e, principalmente, lágrimas.

Enquanto isso, as taxas de juros requeridas para rolar a dívida crescem, apesar das garantias de keynesianos de quermesse que as taxas de juros nada têm a ver com os desequilíbrios fiscais.

E o ministro da Economia jura que quer implantar um programa social-liberal…

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Alexandre Schwartsman

Alexandre Schwartsman foi diretor de assuntos internacionais do Banco Central e economista-chefe dos bancos ABN Amro e Santander. Hoje, comanda a consultoria econômica Schwartsman & Associados. Formou-se em administração pela Fundação Getulio Vargas, fez mestrado em economia na Universidade de São Paulo e doutorado em economia na Universidade da Califórnia em Berkeley.