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Pegando carona no movimento que justificadamente se formou na esteira do assassinato de George Floyd, em Minneapolis, a última investida contra o controle de gastos públicos no Brasil tenta associar tal política ao racismo.
Afirma-se que as medidas de contenção das despesas, expressas em particular no teto constitucional, limitam os gastos sociais; logo, afetam os mais pobres.
Como nada menos do que 10,1 milhões dentre os 13,5 milhões de pobres no país em 2018 são pretos ou pardos (ou seja, 75% da população pobre, bem mais do que a participação de pretos e pardos na população em geral, 55,8%), segue-se que a limitação de gastos sociais oriunda do teto afeta mais este grupo. Portanto, o teto de gastos é racista, QED.
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O silogismo é impecável; já a hipótese central – a saber, a limitação dos gastos sociais – não se sustenta à luz da evidência existente.
A tabela abaixo apresenta o conjunto das despesas do governo central, calculado segundo metodologia do Manual de Estatísticas de Finanças Públicas do FMI, mas por uma ótica distinta daquela que normalmente apresento neste espaço (voltarei a ela mais à frente), destacando no caso a despesa por função de governo, e não pela natureza do gasto.
Os dados são apresentados para os anos de 2010 (início da série), 2016 (ano de adoção do teto de gastos) e 2019 (o mais recente), a preços constantes de 2019, usando o deflator implícito do PIB.
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Houve, como se nota, redução visível da despesa total entre 2016 e 2019, expressa em queda de R$ 24 bilhões no período.
Tal diminuição, porém, resulta essencialmente da forte contração de gastos com juros brutos (nesta terminologia apresentados como “transações da dívida pública”), de R$ 677 bilhões em 2016 para R$ 518 bilhões em 2019, corte de quase R$ 160 bilhões no período.
Já os gastos primários aumentaram R$ 135 bilhões entre 2016 e 2019. Metade disso foi direcionado à rubrica de “proteção social”, que engloba desde previdência à assistência social. Em 2019 esta rubrica representou 39,3% dos gastos do governo central; em 2016 equivalia a 36,2% do total.
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Outros gastos tipicamente descritos como “sociais” aumentaram no período, como “saúde” (aumento de R$ 10 bilhões), “habitação e serviços comunitários” (R$ 2 bilhões a mais), ou ficaram virtualmente estáveis, como no caso de “educação” (queda de R$ 80 milhões).
Vale dizer, não há qualquer evidência de que o teto de gastos tenha implicado redução das despesas sociais no país; ao contrário, os dados registram aumento considerável desde a adoção do mecanismo.
Já a tabela abaixo mostra as despesas do governo central por natureza, como “remuneração de empregados”, “uso de bens e serviços” etc., já apresentadas ao leitor em colunas anteriores (lembrando que “aquisição de ativos não financeiros” é um nome complicado para o investimento público).
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Há, é claro, forte sobreposição mesmo sob óticas distintas: o aumento de R$ 74 bilhões em benefícios sociais, por exemplo, é quase todo destinado à proteção social. Já outros casos revelam dinâmicas interessantes, com apelo social bem mais baixo.
Por exemplo, do aumento de R$ 25 bilhões em remuneração de empregados, R$ 10,7 bilhões foram destinados à educação, enquanto o total das despesas em educação ficou – como vimos – praticamente estável, indicando que provavelmente os prestadores de serviços se beneficiaram mais do que seus usuários.
Já no que se refere à saúde, a remuneração de empregados respondeu por 40% do aumento do gasto, enquanto proporções ainda maiores são observadas no caso de defesa e ordem pública.
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Como deve ficar claro a partir dessas observações, o teto de gastos não impediu a expansão das despesas de proteção social, muito pelo contrário.
Não evitou, todavia, que grupos mais bem localizados junto aos centros de poder conseguissem aumentar a extração de renda do restante da sociedade, em particular o funcionalismo.
De fato, segundo dados da PNAD, o rendimento médio real dos estatutários nos últimos 12 meses é próximo a R$ 4,3 mil/mês, mais de duas vezes maior que o de todas as demais categorias, pouco superior a R$ 2 mil/mês.
Curiosamente, porém, a resistência a reformas que reduzam os gastos com o funcionalismo sempre foi forte nos grupos autodenominados progressistas, como no caso da previdenciária e, mais recentemente, a administrativa.
Segundo trabalho de Tatiana Silva e Josenilton Marques da Silva, negros compunham apenas 40% do funcionalismo federal em 2012.
Houvesse, portanto, preocupação real com políticas que prejudicam a população negra, os “progressistas” deveriam estar na linha de frente pela reforma, mas ainda não tive a chance de vê-los lá.
Em resumo, além do impacto da instabilidade macroeconômica sobre os mais pobres, tema já explorado por outros analistas, o exame dos dados disponíveis não indica que o teto de gastos tenha impedido o avanço dos gastos sociais.
Ao mesmo tempo, propostas de reformas para conter gastos obrigatórios, principalmente no que se refere ao funcionalismo, reduziriam também a desigualdade racial no país.
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