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A natureza do processo inflacionário mudou de uns meses para cá. Até meados do ano era possível traçar a aceleração da inflação a dois choques, ambos de grande magnitude, mas relativamente contidos.
Um se originou do forte aumento dos preços administrados, relacionados ao conjunto de bens e serviços sobre os quais há considerável interferência do setor público, como tarifas de energia elétrica, combustíveis, remédios, planos de saúde e assemelhados. Embora em 2020 tenham registrado elevação modesta (2,6%), nos primeiros nove meses do ano já acumulam aumento de quase 13%.
Houve também elevação considerável dos preços de commodities em dólar, agravada localmente pela desvalorização da moeda, que se manifestou principalmente nos preços de alimentos a partir do final do ano passado.
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Sem querer minimizar problemas que afetam praticamente 40% do IPCA, a natureza desses choques sugeria que seu efeito direto sobre o índice de preços se dissiparia mais cedo ou mais tarde. Não há motivos para crer que preços de commodities seguiriam subindo ao ritmo de 60-70% ao ano em dólar, nem que o ritmo de aumento de tarifas continuaria tão intenso, mesmo que o nível de preços permanecesse alto.
O problema, porém, se agravou, dado que os demais preços da economia, até então relativamente bem comportados, começaram a reagir de maneira preocupante.
Durante os primeiros meses do ano, 60-65% dos 377 bens e serviços componentes do IPCA registraram elevação de preços, nível um tanto desconfortável, a bem da verdade, mas ainda administrável dado o peso dos itens acima referidos; nos últimos quatro meses, contudo, já ajustado à sazonalidade, temos observado em média mais de 70% dos itens do IPCA com aumento de preços no mês, nível similar ao registrado em 2015-16, quando a inflação rodou próxima a 10% ao ano. Vale dizer, o processo inflacionário se tornou bem mais disseminado, sugerindo que não lidamos mais com choques localizados em commodities e tarifas.
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O outro lado da moeda transparece nas leituras mais altas de medidas de inflação menos afetadas pelos choques pontuais, os chamados “núcleos” de inflação. Tais métricas buscam atenuar o efeito de preços mais voláteis, permitindo uma leitura mais clara das pressões inflacionárias.
Em alguns casos define-se a priori um conjunto de bens e serviços entendidos como mais voláteis, que são então excluídos da medida de inflação (no caso dos EUA, alimentos e energia); em outros casos, excluem-se da leitura as maiores variações para cima e para baixo; em outros ainda, se recalculam os pesos de cada produto no IPCA, reduzindo a ponderação dos mais voláteis e elevando a daqueles que costumam flutuar menos. A ideia é manter o foco nos preços reajustados de maneira menos frequente, que capturariam melhor a tendência subjacente da inflação.
Ocorre que também os núcleos de inflação, a exemplo do indicador de difusão, mudaram de patamar. Até meados do ano, registravam variação média no trimestre ao redor de 0,45-0,50% por mês, correspondente a 5,5-6,0% ao ano; no trimestre terminado em setembro sua variação correspondeu a mais de 8,5% ao ano.
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O mesmo se observa no que diz respeito à inflação de serviços, inferior a 4% ao ano até fim do segundo trimestre, acelerando para 6,5-7,0% ao ano no terceiro, no caso notando que os preços de serviços são muito menos sensíveis a alterações no dólar e commodities do que alimentos ou produtos industriais.
De fato, segundo o BC, uma elevação de 10% no dólar tende a se materializar em aumento de quase 1,5% nos preços de alimentos e menos de 0,4% nos serviços. Já no caso de commodities, uma elevação de 10% puxa a inflação de alimentos cerca de 1,6% para cima, mas praticamente não tem efeitos sobre os serviços.
No conjunto da obra, portanto, os números mais recentes de inflação revelam um processo mais disseminado, com impacto agora maior sobre os preços menos voláteis, assim como os serviços, ou seja, muito mais entranhada. Sob tais condições é comum que formadores de preços elevem o peso dado à inflação passada, circunstância que dificulta o trabalho do BC.
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Em retrospecto, o BC errou ao tomar a aceleração da inflação no final de 2020 como um fenômeno temporário, o que o levou a demorar para iniciar o ciclo de elevação de juros e, uma vez iniciado, sinalizar que não precisaria de um aperto monetário. Diga-se, aliás, que cometi o mesmo equívoco na minha leitura da inflação naquele momento e não teria adotado nada muito diferente do que o BC fez.
Estamos, portanto, bastante atrasados no que diz respeito à política monetária. Provavelmente um passo maior teria sido necessário na semana passada, alternativa que o BC chegou a considerar, mas acabou por descartar.
Para entregar a inflação na meta em 2022, a taxa Selic terá que subir a pelo menos 9,5% ao ano. Não, é óbvio, para combater os aumentos de preços de commodities ou administrados, mas para conter os efeitos secundários destes choques, que – como notado – já se manifestam de maneira muito clara. Ao final das contas, a aceleração do ritmo de aperto deverá se provar necessária.