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Tomamos o encanamento da casa como um fato da vida. Ligo a torneira, sai água e nada nos parece mais natural do que isso. Só nos lembramos do encanamento quando aparece algum problema e a vida, de repente, se torna muito mais difícil. No que diz respeito ao “encanamento” do sistema financeiro, a atitude é similar: sequer pensamos no assunto até que algo de muito grave aconteça, como agora na Rússia por conta das sanções econômicas.
Uma das sanções mais severas impostas ao país é o banimento de parte de seus bancos do “encanamento” de pagamentos internacional, Society for Worldwide Interbank Financial Telecommunication, SWIFT, para os íntimos.
No Brasil, os pagamentos são processados pelo Sistema de Pagamentos Brasileiro (SPB), cuja expressão mais recente é o PIX, mecanismo que permite a transferência de recursos a custos muito baixos, tão baixos que a vendedora de coco, que dias atrás aliviou minha sede e a da minha esposa, não só aceitou o pagamento, como o prefere a cartões de crédito ou débito.
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Pelo SPB, sem maiores complicações, instruí meu banco a retirar o valor equivalente ao de duas garrafinhas de água de coco da minha conta e transferi-lo para a conta da vendedora, algo tão “natural” quanto abrir a torneira de casa.
O SWIFT faz (quase) o mesmo, mas no caso de pagamentos internacionais: o importador do país A instrui seu banco a remeter certo valor em moeda estrangeira (dólares, euros etc.) para a conta de um exportador no país B.
O banco retira os recursos da conta do importador em troca da moeda estrangeira e transfere os recursos para a conta bancária do exportador, conforme instruções dadas pelo SWIFT, liquidando a fatura.
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A analogia com o SPB não é perfeita, dentre outros motivos, porque o SWIFT não é exatamente um sistema de pagamento, mas de mensagens, nem um monopólio estatal.
De qualquer forma, um banco ser excluído do SWIFT é (quase) como um banco ser excluído do SPB: seus clientes se veriam impossibilitados de realizar pagamentos internacionais, portanto, de importar o necessário, bem como recebê-los e, portanto, vender seus produtos.
No caso em questão, ainda precisamos saber a quais bancos a restrição se aplica, sem contar que há outros sistemas que também processam mensagens de pagamentos e que poderiam se tornar uma forma de contornar esta sanção.
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O SWIFT, porém, congrega mais de 11 mil instituições, enquanto plataformas concorrentes são muito menores: a criada pela própria Rússia em 2014 (SPFS), por exemplo, congrega cerca de 400 instituições e funciona apenas no país.
Assim, embora não tão drástica como a hipotética remoção de um banco brasileiro do SPB, a exclusão do SWIFT cria problemas consideráveis para o comércio exterior russo, assim como movimentos de capitais, reduzindo o influxo de moeda estrangeira.
Adicionalmente, as sanções também afetaram as reservas russas em moeda forte. O BC russo detém o equivalente a US$ 630 bilhões em outras moedas que deveriam servir como colchão de proteção para o rublo.
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Perto de 30% delas estão denominadas em euros, 25% em dólar, 20% em ouro, 13% em yuanes, 7% em libras e os 5% restante em outras moedas, principalmente Direitos Especiais de Saques, DES, do FMI.
Trata-se, como se vê, de uma carteira bastante diversificada do ponto de vista de moedas, parte dela em títulos (mas não do Tesouro americano), parte delas em depósitos junto a bancos e instituições financeiras oficiais.
As sanções, todavia, limitam fortemente a capacidade de utilização dos recursos em títulos e depósitos, o que reduz muito o poder de fogo do BC para comprar rublos e limitar a desvalorização da moeda. Ainda é possível usar o ouro, que, contudo, se encontra em território russo, esbarrando nas próprias restrições de pagamento referidas acima.
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Não é por outro motivo que o rublo perdeu muito do seu valor. Neste exato instante em que escrevo, um dólar custa ao redor de 100 rublos, contra 83 rublos na sexta passada, cerca de 20% mais caro.
Assim, para defender sua moeda e limitar o efeito inflacionário da maxidesvalorização, o BC russo mais do que dobrou a taxa de juros de curto prazo, de 9,5% para 20% ao ano. Não é difícil imaginar as consequências negativas para a economia russa em termos de inflação e atividade em tal cenário.
Em nosso caso, muito embora o efeito direto da contração da economia russa seja muito pequeno, os efeitos indiretos são bem mais sérios.
A começar pela provável redução da oferta de petróleo nos mercados internacionais, cujo resultado mais claro é o salto nas cotações, expresso pelo barril de Brent na casa de US$ 100 e altas correspondentes nos preços de derivados.
O mesmo se aplica, ainda que em menor grau, aos preços de grãos, como o trigo, dado que Rússia e Ucrânia representam cerca de 30% das exportações globais.
Ao mesmo tempo, a incerteza ao redor do conflito, inclusive sobre suas consequências econômicas, promoveu novo movimento de fuga dos mercados emergentes em busca de porto seguro nos países desenvolvidos.
O Brasil não escapou do padrão, revertendo a tendência de fortalecimento do real que prevalecia desde o início do ano.
Embora a moeda ainda esteja mais forte do que no final de 2021, a combinação de preços internacionais de commodities mais altos e dólar mais caro devem levar a novas elevações de preços domésticos.
Ainda que a inflação de 2022 deva ser mais baixa que a do ano passado, neste exato momento a projeção de 5,5-6,0% para o ano parece otimista. Devemos começar a pensar em valor acima de 6%, a persistirem as pressões lá fora.
Nesse cenário, a Selic ficará mais alta por mais tempo para tentar algum grau de convergência da inflação para a meta em 2023, também com impacto negativo sobre a atividade ainda este ano.
Quando o encanamento quebra, a civilização sai pela janela.