A cloroquina monetária

A sugestão de André Lara Resende de financiar gastos com emissão de moeda deriva da peculiar mistura de obviedades e conclusões que não emanam delas. Aqui explicamos o porquê

Alexandre Schwartsman

Importante: os comentários e opiniões contidos neste texto são responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a opinião do InfoMoney ou de seus controladores

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O artigo de André Lara Resende na Folha de S. Paulo deste domingo é um belo exemplar de uma combinação peculiar: a mistura fina de obviedades com conclusões que não derivam delas.

Há um tom sofisticado quando afirma que “a moeda contemporânea, como também a dívida pública, é apenas um registro contábil eletrônico”, ecoando a tese de Yuval Noah Harari em Sapiens, para quem a capacidade de abstração foi a pedra fundamental para o desenvolvimento humano como o conhecemos.

Inteligente, sem dúvida, ainda que irrelevante para sua tese, a saber, que o governo brasileiro pode partir sem medo para o financiamento monetário de seus déficits, sem o menor risco de inflação à frente.

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A começar pela confusão em torno das operações compromissadas. Como se sabe (ou deveríamos saber), tais operações são vendas (ou compras) de títulos públicos (registros contábeis no Selic – Sistema Especial de Liquidação e Custódia) com compromisso de recompra (ou revenda), usadas pelo Banco Central para garantir que a taxa a que os bancos trocam reservas bancárias no Selic (a taxa Selic!) fique próxima àquela definida como meta pelo Copom a cada reunião.

Se há excesso de reservas bancárias, a taxa Selic tende a ficar abaixo da meta; se há falta, acima dela. No caso brasileiro, há muitos anos, as reservas bancárias são excessivas, o que requer do BC a venda (com compromisso de recompra) de títulos.

Bancos tornam-se detentores (temporários) de papéis do Tesouro; em contrapartida, há redução de reservas bancárias, o principal componente da base monetária.

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Lara Resende, porém, afirma que as compromissadas “nada mais são do que emissão de reservas, base monetária, para o sistema bancário”, precisamente o oposto da realidade. Para um artigo que se propõe a superar equívocos, nada como começar com um deles.

Aproveitando o gancho, propõe que, em vez de controlar a liquidez e, portanto, taxas de juros por meio das compromissadas, passe a um sistema de “reservas remuneradas”. Isto é, como alternativa à venda de títulos do Tesouro, o BC permita que bancos depositem no Banco Central, com remuneração pela taxa Selic, seu excesso de reservas bancárias.

Isto faria, segundo ele, desaparecer 30 pontos da relação dívida sobre PIB do Brasil, que cairia de 75% para 45% do PIB – ou seja, uma queda de 40% na dívida pública do país.

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Para entender a mágica, é preciso dar um passo atrás.

No Brasil, ao contrário do que ocorre em outros países, o Banco Central é como que “consolidado” dentro do governo geral. Como o Tesouro é seu único acionista, os títulos emitidos pelo Tesouro para o BC não são contabilizados na dívida bruta, já que o Tesouro deve para si mesmo.

Por outro lado, os títulos usados nas compromissadas, que estão fora do balanço do BC (portanto fora do balanço “consolidado” do governo geral), são contabilizados na dívida.

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Se, argumenta Lara Resende, o BC passasse a usar depósitos remunerados no lugar de compromissadas, estas sumiriam das estatísticas e, voilá, a dívida deixaria de ser um problema, exceto pelo fato de continuar a sê-lo.

De uma forma (compromissada), ou de outra (depósitos remunerados), o BC seguiria pagando juros aos detentores de títulos ou depósitos.

Para quem argumenta tão eloquentemente sobre a similaridade intrínseca a ativos que nada mais são que registros eletrônicos contábeis, Lara Resende parece não ver que essas modalidades são rigorosamente a mesma coisa.

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Chamá-las por nomes diferentes não muda esta simples verdade, nem faz 40% da dívida bruta se desfazer no ar.

Nos demais países, como os bancos centrais tipicamente não são consolidados com o Tesouro, não se faz esta distinção: a dívida já contabiliza títulos em poder dos bancos centrais e também não é necessário incluir depósitos remunerados.

Caso seguíssemos o critério da maioria dos países (que, diga-se, era o que fazíamos até 2007), nossa dívida já estaria próxima a 90% do PIB, como ilustrado abaixo.

Todavia, como sempre ressalto, mais importante do que o nível da dívida é sua trajetória – e nesse sentido o gráfico é claro: independentemente da metodologia adotada, o crescimento da dívida relativamente ao PIB tem sido extraordinariamente rápido e será ainda mais veloz no futuro próximo. Nenhuma mágica contábil há de mudar este fato.

O que nos leva a outro argumento de Lara Resende, qual seja, que a dívida do governo brasileiro não é um problema. Para não haver dúvidas cito:

“Quando a dívida é interna e denominada em moeda nacional, como é o caso da dívida brasileira hoje, o problema não existe. O serviço da dívida interna denominada na moeda nacional não exige transferência de recursos para o exterior. O Estado deve para os seus próprios cidadãos. É uma dívida de brasileiros com brasileiros, ou de ‘Zé com Zé’, para usar um velho jargão do mercado financeiro. O Estado pode sempre refinanciar a dívida e emitir, se necessário, para cobrir o seu serviço.”

Se a dívida não fosse um problema, apenas uma operação “Zé com Zé”, o corolário disso seria que um eventual calote não deveria gerar qualquer impacto real sobre a economia: “Zé”, que devia para “Zé”, simplesmente não se pagaria – o ganho de um “Zé” é a perda de um “Zé” e o efeito líquido seria zero.

Bom, aproveitando a efeméride (30 anos) e o recente pedido de desculpas do ex-presidente Fernando Collor, basta lembrar do efeito da calote promovido pelo Plano Collor em 1990: uma das três maiores recessões da história recente do país (ainda sem contar a atual).

O PIB caiu, de pico para vale, 8,6% (um pouco mais do que na recessão 2014-16, 8,2%), ao longo de 11 trimestres (o mesmo que em 2014-16) e precisou de sete trimestres para recuperar o nível pré-crise (mais rápido que em 2014-16).

Se alguém acredita que a dívida não é um problema, porque devemos para nós mesmos, deve também arrumar um jeito de explicar por que seu não pagamento teve efeitos tão severos num passado não tão distante.

A dívida é uma máquina do tempo: permite anteciparmos consumo de amanhã para hoje, mas alguém terá que pagar pelo consumo de amanhã.

Nossos “eus” futuros, nossos filhos, netos, etc., terão em algum grau que consumir menos no futuro para compensar o tanto que foi consumido agora.

Ah, mas podemos pagar a dívida com moeda, que, conforme notado no início, é também uma ficção contábil, não muito distinta da dívida. A prova disso seria a experiência mundial com QE (afrouxamento quantitativo), quando BCs em vários países compraram títulos públicos, ampliando em muito a base monetária sem efeitos inflacionários.

O que Lara Resende não conta, porém, é que BCs só se engajaram no QE quando não foi mais possível reduzir a taxa de juros de curto prazo.

De fato, como moeda tem rendimento zero, ao menos numa primeira aproximação não seria possível trazer a remuneração dos títulos de curto prazo abaixo de zero. Sabemos agora que isso não é exatamente verdade por força de regulações e custos de se manter moeda corrente, mas, ainda assim, se não exatamente zero, sabemos haver limitações para reduzir a taxa de juros abaixo de algum patamar não muito distante dele.

O mecanismo de expansão quantitativa permite aos BCs atuar sobre outras taxas de juros além daquela de curto prazo. Trata-se de extensão da forma de atuação descrita acima, mas além do mercado de reservas bancárias.

Um estudo do time econômico da Goldman Sachs em 2010 (“QE2: How Much is Needed?”) sugere que cada US$ 1 trilhão de expansão quantitativa corresponda a um corte de 1% da taxa básica de juros.

BCs calibram sua resposta de política monetária para manter a inflação na meta: caso esteja acima, elevam a taxa de juros; se abaixo, a reduzem.

Nenhum economista que conheça esta dinâmica diria, de olhos arregalados, “o BC reduziu a taxa de juros e a inflação caiu!”, mas sim “o BC reduziu a taxa de juros porque espera que a inflação vá ficar abaixo da meta”.

Por essa mesma ótica, a expansão quantitativa não causa inflação porque se trata de resposta à baixa inflação, similar a colocar o pé mais fundo no acelerador para manter a velocidade quando o carro sobe a ladeira.

No caso do Brasil, não chegamos lá, ao menos não ainda.

Como argumentei semana passada, parece haver espaço adicional para a redução de juro (além do que o BC sugere, mas não voltarei a essa questão), que, todavia, permanece acima de zero.

Recorrer, portanto, à expansão quantitativa agora implicaria permitir que a Selic ficasse abaixo do nível consistente com a inflação na meta em seu horizonte relevante, ou seja, seria sim inflacionário.

Alquimistas buscavam a pedra filosofal, substância capaz de transformar metais ordinários em ouro ou prata, que se tornou assim um símbolo de soluções mágicas para problemas difíceis.

Vivemos hoje busca semelhante por uma “bala de prata” contra a pandemia, que muitos, de Nicolás Maduro a Jair Bolsonaro, passando por Donald Trump (e outros de calibre similar), acreditam ser a cloroquina.

Lara Resende se coloca nessa nobre companhia, na sua busca alquímica pela cloroquina monetária (agradecimentos especiais a Rodrigo Azevedo pela sugestão da analogia e do título do artigo).

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Alexandre Schwartsman

Alexandre Schwartsman foi diretor de assuntos internacionais do Banco Central e economista-chefe dos bancos ABN Amro e Santander. Hoje, comanda a consultoria econômica Schwartsman & Associados. Formou-se em administração pela Fundação Getulio Vargas, fez mestrado em economia na Universidade de São Paulo e doutorado em economia na Universidade da Califórnia em Berkeley.