Publicidade
O governo federal voltou atrás da sua posição de não ver ameaça à soberania nacional na Ação Civil Pública (ACP) movida contra a Boeing (BOEI34), devido às centenas de contratações de engenheiros extremamente qualificados que a empresa tem feito no Brasil, e agora pediu para fazer parte do processo judicial.
“Não há dúvidas de que a expertise brasileira nos setores de defesa/aeroespacial e aeronáutico, conquistada após uma trajetória de muito trabalho e estreito suporte estatal, possui caráter estratégico para a soberania nacional”, afirma a Advocacia-Geral da União (AGU) no novo posicionamento anexado no processo.
Ele tem como base parecer técnico do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC). A pasta fala em “amplo arcabouço constitucional e legal corroborando o entendimento de que a livre iniciativa não é absoluta” e “cooptação voraz de mão de obra brasileira de elevada qualificação”, que “por si só teria relevante potencial danoso para a economia brasileira e parece estar assentado não sobre uma concorrência saudável e legal da empresa estadunidense” (veja mais abaixo).
A AGU pede no novo posicionamento que a ação seja analisada na Justiça Federal, como querem as associações que processaram a Boeing — a Associação Brasileira das Indústrias de Materiais de Defesa e Segurança (Abimde) e a Associação das Indústrias Aeroespaciais do Brasil (AIAB).
As associações tentam impor uma série de restrições à gigante americana, como estabelecer um limite à contratação de engenheiros, alegando que a postura da Boeing ameaça a soberania nacional. O processo foi movido em novembro pela Abimde e pela AIAB.
A Boeing afirma no processo que a ACP “mimetiza” os principais argumentos de uma notificação extrajudicial que a Embraer fez à empresa em abril do ano passado e destaca que a empresa brasileira é associada às duas entidades. “A disputa possui como origem uma disputa privada entre Embraer e Boeing Brasil”, afirma a gigante americana.
Continua depois da publicidade
O InfoMoney tem mostrado desde março que, anos após a Boeing desistir de comprar 80% da divisão comercial da Embraer por US$ 4,2 bilhões, a empresa americana tem avançado sobre os talentos da brasileira — e de outras companhias com sede no Brasil –, contratando “a elite da engenharia aeroespacial brasileira”, nas palavras de Roberto Gallo, presidente da Abimde.
O foco tem sido engenheiros de nível sênior, principalmente das áreas de estratégia e aviônica, que têm anos de experiência, chefiam importantes áreas de desenvolvimento de aeronaves e acesso a informações privilegiadas de projetos com segredos industriais, como os caças Gripen.
Além das mais de 200 contratações que já fez no Brasil desde o ano passado — das quais mais de uma centena foram da Embraer (EMBR3) —, a Boeing ainda está com mais 50 vagas em aberto no momento em São José dos Campos, cidade de mais de 700 mil habitantes a cerca de 90 km de São Paulo que é o berço da multinacional brasileira e do setor aeroespacial e de defesa do país.
Continua depois da publicidade
A empresa americana afirma que as contratações no Brasil fazem parte de uma estratégia global, não local, e que o país é apenas um dos seus focos de crescimento — assim como a Polônia, por exemplo. Enquanto a Boeing tem mais de 150 mil funcionários em todo o mundo, contratou 26 mil pessoas em 2022 e pretende contratar mais 10 mil neste ano, a Embraer, por exemplo, tem “apenas” 18 mil funcionários — menos do que a Boeing contratou só no ano passado.
As associações que processam a gigante americana alegam que a indústria aeroespecial e de defesa do Brasil não consegue fazer frente a esse “poder de fogo”. “O faturamento da Boeing é de R$ 500 bilhões. Isso é quase um terço de todo o PIB industrial brasileiro”, afirma o presidente da Abimde, que classifica a conduta da empresa como “agressiva” e “absolutamente atípica e deletéria”. “Do ponto de vista de poder econômico, ela [a Boeing] pode fazer qualquer coisa”.
Caso o pedido da Abimde e da AIAB seja atendido, a Boeing seria limitada a contratar apenas 21 engenheiros da Embraer por ano — pois a empresa brasileira tem cerca de 3,5 mil funcionários na área atualmente — e praticamente nenhum profissional das empresas menores do polo de São José dos Campos — pois ficaria limitada a contratar profissionais apenas das empresas com mais de 167 engenheiros.
Continua depois da publicidade
Mudança de posição
Em sua primeira manifestação na Ação Civil Pública, o governo federal havia afirmado que não via ameaça à soberania nacional nas contratações da Boeing e “ausência de interesse que justifique a intervenção da União na presente demanda”.
A posição inicial da AGU tinha como base um parecer do Ministério da Defesa (MD), que dizia ser “notória a ação de captura de talentos profissionais brasileiros pelo grupo Boeing”. A pasta, no entanto, ponderou que os argumentos apresentados na ACP “ainda não são suficientes para demonstrar o interesse processual da União no escopo da soberania nacional”.
O MD disse ainda que, como “não há dispositivos legais em vigor […] que possam ser empregados de imediato para cessar as ações negativas da Boeing”, são necessários “estudos para o aperfeiçoamento de dispositivos legais e infralegais” – sejam em leis, decretos ou políticas públicas – “que venham a mitigar ações dessa natureza, praticadas pelo grupo Boeing ou outro qualquer”.
Continua depois da publicidade
Agora, o governo federal mudou de posição após parecer técnico do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC). “A União revê o seu entendimento anterior, concluindo pelo seu interesse no feito em apreço”, escreve a AGU na nova manifestação.
Segundo o MDIC, “não há dúvidas de que a expertise brasileira nos setores de defesa/aeroespacial e aeronáutico, conquistada após uma trajetória de muito trabalho e estreito suporte estatal, possui caráter estratégico para a soberania nacional”. “Assim como para a inserção internacional do país, com consequente geração de emprego e renda no país em decorrência dos investimentos nacionais realizados ao longo de décadas”.
O ministério afirma também que a contratação “de profissionais qualificados de empresas concorrentes, de forma predatória e fundada em um possível abuso de poder econômico, seria uma ação igualmente grave e potencialmente violadora da ordem jurídica brasileira, por importar em uma provável concorrência desleal ou abusiva”. O parecer diz ainda que tal postura poderia “implicar em prejuízo ao desenvolvimento nacional, o qual é um dos objetivos primordiais da Constituição de 1988”.
“Diante do exposto, entende-se que não há como descartar a priori o interesse da União na temática de fundo posta na Ação Civil Pública, que envolve setores importantes da indústria brasileira de defesa/aeroespacial e aeronáutica”, afirma o ministério. “Existe relevância técnica que justifica o acompanhamento pela União no feito, especialmente pelo fato de que a atividade econômica exercida pelas sociedades empresárias em questão é essencial para o país e envolve imperativo de Segurança Nacional”.
Continua depois da publicidade
Vai e vem judicial
A AGU ponderou, em sua segunda manifestação no processo, que a primeira não viu ameaça à soberania nacional por ter sido “subsidiada por análises realizadas apenas no âmbito do Ministério da Defesa”, e destacou que, devido ao seu primeiro posicionamento, a 3ª Vara Federal de São José dos Campos (SP) reconheceu “incompetência absoluta” para julgar o caso e o enviou à Justiça Estadual.
Mas as associações recorreram ao Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3), que suspendeu o envio da ação à Justiça “comum”. A Corte também determinou que o governo federal e a gigante americana fossem intimados a se manifestar no processo e deu ciência da ação ao Ministério Público Federal (MPF).
Foi após a determinação do TRF-3 que o governo federal mudou de opinião. A AGU destacou em sua nova manifestação a decisão do tribunal, “que enfatizou a amplitude dos fundamentos deduzidos no recurso”. “O MDIC, em complemento aos elementos anteriormente trazidos pelo Ministério da Defesa, entendeu estar presente o interesse jurídico da União”.
A AGU destaca “a necessidade de maior aprofundamento da discussão”, com destaque para os artigos 173 e 218 da Constituição Federal. Enquanto o inciso 4º do artigo 173 trata de “reprimir o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados e à eliminação da concorrência”, o artigo 218 aborda o papel do Estado em “promover e incentivar o desenvolvimento científico, a pesquisa, a capacitação científica e tecnológica e a inovação”.
“Há um amplo arcabouço constitucional e legal corroborando o entendimento de que a livre iniciativa, pressuposto constuitucional fundante da nossa ordem econômica, não é absoluta, devendo coexistir com outros princípios igualmente relevantes elencados no artigo 170 da Constituição, com destaque para a soberania nacional, a função social da propriedade, a livre concorrência e a defesa do consumidor”, afirma o MDIC em seu parecer.
Diante do parecer do MDIC, a AGU conclui em seu novo posicionamento que “requer, pois, o seu ingresso na qualidade de assistente simples da parte autora, o que atrai, por certo, a competência da Justiça Federal para processar e julgar a causa”. O documento é assinado pelos advogados da União Marcos Fujinami Hamada, procurador-regional da União da 3ª Região, e Renata Ricarte de Almeida Pupo.
Setor restrito até a grandes potências
Já o parecer do MDIC é assinado pelo departamento de desenvolvimento da indústria de alta complexidade tecnológica. A área técnica afirma que “os setores de defesa/aeroespacial e o aeronáutico (este último ainda com maior intensidade), são globalmente os setores econômicos dos mais restritos”, com “enormes óbices à entrada de novos players“.
O documento destaca que o setor de defesa inclusive admite “uma série de exceções a regras de livre comércio, justamente em razão de seu reconhecido caráter essencial e estratégico para a proteção das soberanias nacionais”, e que o setor aeronáutico civil “é ainda mais restrito em todo o mundo, com pouquíssimos Estados atuando de forma relevante”.
O MDIC ressalta que mesmo grandes potências industriais, como China, Japão, Coreia e Rússia, até hoje não conseguiram “projetos relevantes de aeronaves civis no mercado global”, “apesar de sua maturidade industrial e econômica e a despeito de diversas tentativas, com forte suporte estatal”.
O parecer afirma também que há “cooptação voraz de mão de obra brasileira de elevada qualificação”, “o qual por si só teria relevante potencial danoso para a economia brasileira e parece estar assentado não sobre uma concorrência saudável e legal da empresa estadunidense”. Diz ainda que o objetivo da Boeing “poderia ser, na verdade, o de absorver e transferir tecnologia para a matriz sem as apropriadas contrapartidas”, “o que seria, portanto, uma violação às normas de proteção à propriedade intelectual nacional, desenvolvida e custeada com grande esforço pela Base Industrial de Defesa brasileira, com suporte do Estado brasileiro”.
“Para além da questão da soberania nacional (que sem dúvida é tema central na ação em tela, além de matéria de grande relevância para o país), tem particular importância para este ministério a alegação da utilização indevida de informações de caráter sigiloso das empresas que compõem a Base Industrial de Defesa (BID) brasileira”, afirma o ministério no parecer. “Informações essas que seriam decorrentes de um acordo que supostamente foi frustrado unilateralmente pela Boeing já em fase avançada. A matéria aqui posta diz respeito à defesa comercial, sob o prisma do interesse público”.
Acordo bilionário frustrado
A “disputa por cérebros” entre a Boeing e a Embraer no interior de São Paulo ocorre anos após a gigante americana desistir de comprar a divisão comercial da brasileira, em um negócio de US$ 5,2 bilhões. As duas empresas formariam uma joint venture, e a Boeing pagaria US$ 4,2 bilhões à Embraer por 80% da nova empresa (os outros 20% continuariam com a multinacional brasileira).
O negócio foi divulgado pela primeira vez em 2017 e evoluiu para um acordo formal em 2019, mas em abril de 2020, depois de mais de dois anos de negociação e adaptações (a Embraer chegou a segregar toda a sua divisão comercial do restante da companhia), a Boeing anunciou a desistência do negócio.
Na ocasião, o mundo vivia a incerteza do início da pandemia de Covid-19 e a Boeing enfrentava uma série de graves problemas com o 737-Max. Dois aviões do modelo caíram em um intervalo de cinco meses, matando 346 pessoas, o que fez com que governos proibissem o 737-Max de voar e companhias aéreas de todo mundo fossem obrigadas a permanecer com suas aeronaves em solo.
Ao anunciar a desistência, a Boeing afirmou que a Embraer não tinha cumprido o contrato. A empresa brasileira negou e disse que a Boeing rescindiu “indevidamente” o acordo, “fabricando falsas alegações”, e que a americana vinha adotando “um padrão sistemático de atraso e violações repetidas ao MTA (acordo), pela falta de vontade em concluir a transação, pela sua condição financeira, por conta dos problemas com o 737-Max e por outros problemas comerciais e de reputação”.
As duas empresas estão em um processo de arbitragem que já se arrasta por quase três anos, para definir quem está com a razão (e se uma companhia deve indenizar a outra pelo fim do acordo).
Em seus balanços financeiros, a Embraer diz que “não há garantias com relação ao tempo ou resultado dos procedimentos arbitrais ou qualquer reparação que possa receber ou perda que possa sofrer como resultado ou com relação a tais procedimentos arbitrais”. Já a Boeing afirma que “a disputa está atualmente em arbitragem”, que não pode “estimar razoavelmente uma faixa de perda, se houver”, e que espera que o processo seja concluído “no final de 2023 ou início de 2024”.
You must be logged in to post a comment.