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Uma região degradada da cidade está perto de passar por uma grande transformação social. E o catalisador deste movimento é uma empresa privada, o Grupo Votorantim, que vai doar mais de um terço (36%) de um terreno próprio de 100 mil metros quadrados para construir moradia para 853 famílias que vivem em comunidades no arredores do terreno e para áreas de convivência e aparelhos públicos, como parques e postos de atendimento à população.
Esta área fica a alguns quilômetros da Avenida Faria Lima, centro financeiro de São Paulo, a uma quadra do Parque Villa-Lobos, e praticamente colada à Ceagesp, central de abastecimento de São Paulo na Marginal do rio Pinheiros que há décadas coleciona planos de mudança para uma área menos nobre da capital. A transferência da Ceagesp um dia vai mudar e valorizar radicalmente a Vila Leopoldina, mas a transformação que está em curso com a iniciativa liderada pelo Grupo Votorantim já tem alto impacto.
O bairro é conhecido por acomodar inúmeros galpões – uma herança da era industrial de São Paulo. Nas últimas décadas, parte dessas construções ganhou novos propósitos: viraram escritórios modernos, atraindo de empresas de tecnologia a produtoras de cinema e fotografia.
Mas a urbanização não atingiu a todos da mesma forma e deixou um rastro de contrastes socioeconômicos. O metro quadrado de apartamentos vendidos no bairro (que custa algo entre R$ 8,5 mil a R$ 11 mil) aumentou 18% entre 2021 e 2022, de acordo com levantamento da Loft. Por outro lado, o local abriga centenas de famílias que se aglomeram em duas comunidades antigas, a Favela da Linha, construída sobre a antiga linha ferroviária, e a Favela do Nove, que se estende até o antigo portão 9 da Ceagesp e começou a ser ocupada na década de 1970. No mesmo perímetro, fica, ainda, o conjunto habitacional Cingapura Madeirite, da década de 1990, onde residem cerca de 400 famílias e que passa, também, por um processo de ocupação irregular.
A solução para a desigualdade no bairro deve partir da iniciativa privada por meio de um projeto inovador que prevê investimentos, na área social, da ordem de R$ 200 milhões, aprovado recentemente pela Câmara Municipal de São Paulo e sancionado pelo prefeito Ricardo Nunes: o Projeto de Intervenção Urbana (PIU) Vila Leopoldina. As famílias residentes nas duas comunidades foram cadastradas e vão ganhar novos apartamentos, a preços subsidiados – ainda não está definido como será esse pagamento. As residentes no Cingapura Madeirite também serão beneficiadas pela recuperação do complexo. “É um ato muito importante, que demonstra, inclusive, o quanto a iniciativa privada tem interesse em investir na cidade de São Paulo”, afirmou Nunes, no dia da aprovação.
O PIU foi criado no Plano Diretor de São Paulo de 2014 e é um tipo de procedimento de intervenção que permite que agentes da sociedade proponham para áreas específicas da cidade normas diferentes das previstas no plano diretor. “Em uma cidade gigante como São Paulo, o PIU abre a janela para propostas de interesse público diferentes”, diz Philip Yang, fundador do Instituto Urbem, um centro de ação que promove projetos de impacto urbano e parceiro da Votorantim na proposta do PIU Vila Leopoldina.
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Uma das vantagens desse tipo de projeto é que, por meio dele, é possível aumentar o coeficiente de aproveitamento de um terreno. “Se o terreno tem 100 mil metros quadrados, originalmente só seria possível construir 100 mil metros quadrados, sem precisar pagar nada a mais. Com essa negociação [do PIU], o potencial construtivo é multiplicado por quatro”, resume Yang. Em contrapartida, o desenvolvedor da área paga a chamada outorga onerosa do direito de construir, e parte dos recursos oriundos da venda desse potencial construtivo tem que necessariamente ser alocada pela prefeitura em programas de interesse público pré-definidos.
A proposta do PIU Vila Leopoldina engloba um perímetro de pouco mais de 300 mil metros quadrados entre áreas públicas e privadas e cerca de um terço deste espaço –100 mil metros quadrados – pertence ao Grupo Votorantim. Hoje, o terreno é gerido pela Altre, braço de investimentos imobiliários do grupo centenário e já encontrou usos – mesmo que provisórios.
Dois dos galpões que faziam parte de uma operação da concreteira da Votorantim Cimentos e da antiga metalúrgica Atlas foram “retrofitados” para receber empresas ligadas à indústria da criatividade. Um destes galpões, a Arca, gerido por um terceiro, hospeda eventos diversos como SP Arte e São Paulo Fashion Week. No outro, que foi reformado e adaptado, funciona o STATE, um centro de inovação independente que recebe diversas empresas, como o braço de inovação da Braskem, uma agência de publicidade e parte da operação do Nubank.
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Também faz parte do terreno da Votorantim o complexo empresarial Atlas Office Park, que está com 90% de ocupação e sedia a própria Altre, além de empresas como PicPay, Saint Marche e Drogaria São Paulo. Inaugurado em 2016, este foi o primeiro investimento do grupo empresarial na região e aquele que levantou o interesse da empresa para o potencial de desenvolvimento da área. “Mais que isso: quando o zoneamento da região deixou de ser industrial e passou a misto e a prefeitura indicou essa área como uma a ser adensada, entendemos que fazia sentido pensar em formas de desenvolvê-la. E dado que somos proprietários e desenvolvedores desses espaços, fazia sentido, até do ponto de vista econômico, atrelar isso a uma solução para resolver os problemas públicos que existem no entorno”, afirma Claudio Lima, diretor de relações institucionais da Altre.
Entre as diversas inovações do projeto, Lima cita duas: 1) este é o primeiro PIU “provocado” por um grupo de particulares; 2) este modelo prevê que o projeto de desenvolvimento social esteja contemplado na primeira etapa do projeto. “O consumo de todo o potencial construtivo do local deve acontecer ao longo de mais de 20 anos. Mas os equipamentos públicos, a recuperação dos viários que hoje estão ocupados e a construção das habitações para os moradores deve acontecer em um prazo de três anos, com a aprovação do projeto”, afirma Lima. O projeto prevê a retirada das famílias das comunidades apenas quando a moradia definitiva estiver pronta, em um modelo chamado de “chave contra chave”.
“Esta também é uma solução inovadora porque integra essa população dentro do perímetro em que elas já vivem”, afirma Yang.
Os próximos tijolos
Sancionado pelo prefeito Ricardo Nunes, em junho, o PIU Vila Leopoldina ainda precisa passar por um leilão para comercializar o potencial construtivo da área e definir parâmetros, como o tamanho das habitações populares. “O vencedor não pagará o leilão em dinheiro, mas vai se comprometer a realizar uma série de obras de interesse público. Entre elas, há a provisão das 853 unidades habitacionais que é a solução integral para a Favela da Linha, a Favela do Nove e as invasões do Cingapura Madeirite”, afirma Lima. Em contrapartida, o vencedor também fica com o potencial construtivo para desenvolver dentro do PIU.
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Para o projeto sair, uma das anuências feitas pelo Grupo Votorantim foi a de se comprometer a doar cerca de 36% do terreno para áreas públicas. Ainda assim, a Altre terá cerca de 70 mil metros quadrados de área líquida para empreendimentos – e pretende, dependendo dos termos do edital para o leilão, participar do certame, o que lhe permitiria explorar seu terreno com potencial construtivo maior – ela pode, também, comprar esse potencial construtivo de quem ganhou o leilão, num mercado secundário, ou, ainda, associar-se ao ganhador.
Para isso, apesar de já andar com as próprias pernas, a Altre precisará discutir como realizar o investimento. “É natural que a gente discuta com nosso acionista a forma de realizar esse projeto, seja por capital de terceiros, parcerias, ou capital da própria Votorantim. Mas esse debate ainda é muito preliminar”, afirma Lima.
“Trabalhamos para que este empreendimento seja exemplar do ponto de vista da geração de valor urbano, mas que seja um exemplo de convívio, mostrar como diferentes classes de renda são capazes de conviver no mesmo espaço. A ideia é que o local tenha equipamento público, varejo, lajes corporativas, como um bairro planejado” afirma Yang. O sucesso do projeto, para os envolvidos, tem o potencial de despertar outras empresas com terrenos ociosos a apresentar soluções do tipo. “Esse modelo de parceria público-privada pode ganhar força e ser potencializado”, afirma Lima.
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Se o PIU não fosse aprovado, a Altre realizaria o desenvolvimento da área de uma forma tradicional, sem equacionar o tema das comunidades. “É um problema público que não é tão diferente de outras regiões, mas sempre achamos que fazia sentido tentar articular algo e tentar construir modelos que pudessem funcionar para ter esse desenvolvimento e deixar um legado e criar um impacto”, afirma Lima.
Para Paula Santoro, arquiteta urbanista e pesquisadora do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, embora seja um projeto inovador, a lei que regulamentou o desenvolvimento do PIU tem uma série de problemas. “Há dois grandes desafios: 1) a resolução das questões habitacionais que não está especificada no projeto de lei que foi aprovado e vai depender de um edital; e 2) o projeto ainda não tem uma forma, então não é possível mensurar os impactos disso”, afirma. “É um projeto interessante para monitorar e ver o que será feito”, resume.
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