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A Rota 99, na Lapa, Zona Oeste de São Paulo, é uma das remanescentes da febre que tomou o pequeno comércio na década de 1990. Prateleiras cheias de brinquedos, utensílios domésticos, papelaria e, frequentemente, um anúncio na entrada – “Tudo a R$ 1,99” – dividiram a tradicional rua de comércio popular 12 de outubro com joalherias e lojas de calçados. De anéis a sapatos, todo aquele comércio foi viabilizado pela nova moeda brasileira, o real.
Lojas como a Rota 99, fundada em 1997, são emblemáticas das causas e efeitos da moeda que comemora 30 anos em 2024. O Plano Real, instituído em 1994, levou à substituição do cruzeiro real (CR$), estabilizou a hiperinflação, o câmbio, e potencializou as importações. Tudo isso estimulou um tipo de comércio dedicado a atender as classes C e D, que ganhavam poder de compra.
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Não é como se lojas de produtos de baixo valor não existissem antes do real. Na cidade de São Paulo, regiões como a Rua 25 de Março já vinham se transformando, desde as décadas de 1980 e 1990, em importantes centros comerciais para produtos importados de baixo custo, em especial vindos do Paraguai e da China.
“Até a era do presidente Fernando Collor de Mello, o Brasil era um país extremamente fechado, com diversas ressalvas à importação e proteção em quase todos os setores industriais”, explica o economista e professor da FGV, Roberto Kanter. “Ele abre o Brasil para as importações. Depois tenta controlar a moeda, mas não consegue, no fatídico plano da [então ministra da economia] Zélia Cardoso, gerando um trauma enorme [pelo confisco dos valores depositados em poupança].”
Acontece que a mera existência de um empreendimento comprometido com um mix de produtos a um preço fixo – ou, ao menos, boa parte deles – era inimaginável no período que antecedeu o Plano Real. Um comerciante que decidisse fundar uma “loja de CR$ 1.999 ” em junho de 1993 teria um relevante gasto mensal com a troca dos letreiros em sua fachada: reajustando o nome do seu comércio pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), em junho de 1994 ele já seria dono de uma “loja de CR$ 30.500”.
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A queda imediata na taxa de inflação, de 916% em 1994 para 22% em 1995, permitiu que os proprietários de pequenos negócios mantivessem seus preços estáveis por períodos mais longos. Segundo Kanter, a soma da abertura comercial iniciada na era Collor à paridade do real ao dólar americano – o que também estabiliza a taxa de câmbio e reduz o risco na importação – nos primeiros anos do Plano Real abriu caminho para uma “febre” de compra de produtos fabricados fora do País.
A Issam, uma distribuidora de produtos de baixo valor com mais de 40 anos, conta que antes dessas mudanças a maior parte dos produtos que distribuía aos lojistas era fabricada nacionalmente. “Nossos dois primeiros containers [antes desse período] tinham apenas sombrinhas e guarda-chuvas”, diz uma funcionária com décadas de casa que preferiu não ser identificada. “Depois, ficou mais fácil comprar direto da China”, diz.
A febre
Em 1996, quando a inflação ao ano atingia 9,56% e o real equivalia a praticamente US$ 1, começavam a pipocar nos classificados de grandes jornais anúncios sobre “o negócio que virou fenômeno de lucros nas principais cidades brasileiras na venda de brinquedos, artigos escolares, utilidades domésticas, ferramentas, porcelanas e presentes em geral, nacionais e importados”. As lojas “tudo por R$ 1,99” foram uma versão tropical das 99 cents stores (lojas de 99 centavos) dos Estados Unidos.
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“Lojas que já vendiam aquele tipo de produto mudaram de nome para R$ 1,99, e algumas novas surgiram”, diz o assessor econômico da FecomercioSP, Fábio Pina. Uma reportagem da Folha de São Paulo no Natal de 1998 mostrava um aumento de 30% na quantidade de empreendimentos desse tipo na cidade de Campinas, no interior de São Paulo, dentro de quatro meses. Comerciantes varejistas, como donos de supermercados, migraram de negócio em busca do público das classes C e D, que encontrava no R$ 1,99 uma opção para comprar o máximo possível a baixo custo.
Mudança no consumo
Esse fenômeno marcava uma mudança na forma como o brasileiro passaria a lidar com suas compras. Até ali, era difícil manter um comércio de conveniência, onde o consumidor faria pequenas compras no dia a dia. No varejo, o padrão era gastar todo o salário assim que ele batia na conta antes de desvalorizar.
“Durante o período inflacionário, surgiram os hipermercados, como o pioneiro Carrefour. Você recebia o salário e precisava gastar tudo, então era necessário ir a um lugar em que tudo estivesse disponível”, diz o economista da Associação Comercial de São Paulo, Ulisses Ruiz de Gamboa. “Nos hipermercados funciona assim: de papelaria a loja de roupas.”
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Pouco a pouco, no entanto, as lojas de R$ 1,99 foram se transformando. Embora estabilizada, a inflação corrente no período dificultava manter os produtos ao chamativo custo de uma nota de R$ 2. Além disso, redes como Casa & Vídeo e até Americanas também absorviam alguma parte do que era vendido naqueles comércios.
Mas a real mudança pela qual o consumidor brasileiro passava não se registrava nas lojas de R$ 1,99. Ganhos no poder de compra, no entanto, levaram à inclusão dos brasileiros mais pobres no consumo de bens como eletrodomésticos e eletroeletrônicos, fenômeno que seguiu curso até os governos Lula e sofisticou o consumo brasileiro. “O consumidor classe C passou a se interessar muito mais em comprar televisão de tela plana, geladeira frost free, do que produtos de R$ 1,99”, diz Kanter.
Em parte, a transformação do mercado financeiro promovida pela nova moeda estimulou esse comportamento. Sem inflação e com câmbio estável, o acesso a crédito por pessoas físicas aumentou. Uma pesquisa elaborada pelo Ipea em 2001, após os primeiros anos do Plano, indicou que o crédito para esse segmento saltou de 2% para 8% do total em 1998. Em 1999, atingiu 15%.
As lojas de R$ 1,99 hoje
Três décadas após o Plano Real, lojas com produtos a R$ 1,99 já são inviáveis. Pela inflação, elas teriam se tornado lojas de R$ 16 – uma propaganda bem menos chamativa. No entanto, as lojas de variedades que sobreviveram viram profundas transformações tomarem o varejo.
Embora muitas tenham desaparecido com o tempo, lojas de variedade como a Rota 99, mencionada no início da reportagem, encontram espaço para prosperar. Hoje, a rede possui oito unidades. Duas delas, praticamente vizinhas na Rua 12 de Outubro, assistiram a uma concorrente do outro lado da rua recentemente se tornar uma ótica. “Naquela época abriram muitas, mas com aquele tanto, obviamente muitas desapareceriam”, diz a gerente Adriana Deus, na loja desde 1998.
Ela explica que a facilidade para se comprar diretamente da China – algo de que os próprios lojistas se beneficiaram nas décadas passadas – agora chegou na palma da mão de consumidores, em plataformas de varejo online, o que mudou a forma como o comércio de variedades de rua tem se comportado. Neste dia das crianças, por exemplo, a unidade prevê um público menor em busca de brinquedos.
“Depois da pandemia, o que temos vendido muito são itens de decoração para casa. Em função do confinamento, parece que essa demanda aumentou”, diz Deus. De olho nisso, a Rota 99 tem dedicado mais espaço em algumas de suas unidades a esse tipo de produto. Na Lapa, duas delas já são tomadas por esse tipo de produto. “É como vamos nos adaptando.”
* Esta publicação faz parte da série 30 anos do Plano Real: Passado, presente e futuro da moeda que mudou o país, especial do InfoMoney com reportagens, entrevistas, vídeos e artigos sobre a trajetória da moeda brasileira de sua criação aos dias de hoje.