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Mesmo depois de a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) determinar no sábado (25) a suspensão da oferta de pagamento pela coleta de íris no Brasil, a empresa Tools for Humanity continua oferecendo compensação financeira para quem se cadastrar no projeto.
O órgão de proteção de dados brasileiro também determinou à empresa que indique em seu site a identificação do encarregado pelo tratamento de dados pessoais, conforme comunicado.
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A Tools for Humanity – que tem como idealizador Sam Altman, cofundador da OpenAI, criadora do ChatGPT – iniciou as operações no Brasil em novembro de 2024 por meio do projeto World. Ao oferecer pagamento em troca da coleta de dados biométricos para criação da chamada World ID, a empresa alega que a identificação global permitiria a comprovação de que o titular é um ser humano único vivo e promoveria maior segurança digital.
Antes de ser barrado pelo governo, o aplicativo World foi baixado por cerca de 1 milhão de pessoas e quase meio milhão de brasileiros já fizeram a leitura da íris. Concentrando o foco nas periferias de São Paulo, uma das cidades escolhidas entre os 18 países onde o projeto atua, muitos dizem que ter o olho fotografado era um jeito de ganhar um “dinheiro extra”, cerca de R$ 600 em criptomoedas.
Mesmo assim a maioria das pessoas que estiveram nos pontos de coleta não sabiam explicar direito do que se tratava o programa World e nem se havia riscos, de acordo com reportagem do G1.
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O que diz a empresa
Em nota enviada ao InfoMoney, a Tools for Humanity afirma estar em conformidade com todas as leis e regulamentações aplicáveis ao tratamento de dados pessoais nos mercados em que atua. Diz ainda que tem empenhado todos os esforços “para esclarecer a população sobre os benefícios que a nova tecnologia trará para a humanidade.”
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A empresa alega ainda que segue operando legalmente amparada por recurso junto à ANPD, que garante efeito suspensivo. Desse modo, enquanto ele está em análise, o serviço permanece inalterado, incluindo a disponibilidade do incentivo do Worldcoin token.
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“A World está confiante de que poderá trabalhar em conjunto com as autoridades para garantir que todos os brasileiros possam continuar participando plenamente da rede que está criando as ferramentas para garantir maior segurança nas interações online diante da era da inteligência artificial, preservando a privacidade individual. A World compartilha com a ANPD de um objetivo comum: privacidade e proteção de dados. Estamos confiantes de que chegaremos a um entendimento sobre este serviço tão importante.”
Assim como no Brasil, a companhia também enfrenta resistência, investigações e suspensões em mercados como Hong Kong, Alemanha e Espanha, por conta da impossibilidade de se comprovar o que será feito com os dados que coleta. A afirmação de que não armazena os dados não têm convencido os reguladores dos outros países.
O que dizem os especialistas
O advogado Alexander Coelho, sócio do Godke Advogados e especialista em Direito Digital e Proteção de Dados, diz que vale refletir sobre os riscos da comercialização de dados biométricos e práticas controversas, bem como o papel da Lei Geral de Proteção de Dados. “A LGPD estabelece que dados biométricos são dados pessoais sensíveis, o que implica regras rigorosas para seu tratamento”, afirma.
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Entre os principais riscos estão:
1) Consentimento viciado: Ao oferecer incentivos financeiros em troca de dados biométricos, questiona-se se o consentimento do titular pode realmente ser considerado livre e informado, especialmente em populações vulneráveis. A LGPD exige que o consentimento seja livre de coação ou indução, algo que, nesse contexto, pode ser difícil de assegurar;
2) Segurança e vazamentos: Dados biométricos, por sua natureza única e irreplicável, representam um risco altíssimo em caso de vazamento ou uso indevido. Diferentemente de uma senha, eles não podem ser alterados, o que pode gerar prejuízos irreversíveis para o titular.
3) Finalidade e proporcionalidade: A LGPD exige que o tratamento de dados seja realizado com propósito específico e proporcional. Oferecer pagamento por dados biométricos pode gerar um uso desproporcional e indiscriminado, especialmente em casos em que os titulares desconhecem o real objetivo ou o destino dessas informações.
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O governo “de olho” nas práticas
A proibição imposta pela ANPD à Tools for Humanity demonstra que o governo está atento a práticas que colocam em risco os direitos dos titulares de dados, segundo Alexandre Coelho.
“Este episódio reforça a necessidade de uma governança robusta e uma fiscalização ativa para evitar abusos. Porque a privacidade não é moeda de troca. É fundamental garantir que inovações tecnológicas respeitem os princípios da LGPD, protegendo os dados dos brasileiros e impondo limites claros às empresas”, diz o especialista.
Para a advogada Larissa Pigão, especializada em Direito Digital e LGPD, mestranda em Ciências Jurídicas, o fato de a íris ser um dado biométrico sensível, único e imutável indica que os riscos são muito grandes.
“Diferente de senhas ou outros dados que podem ser alterados, a íris, uma vez exposta ou utilizada de forma inadequada, não pode ser substituída, o que a torna vulnerável a abusos”, afirma.
Uma vez roubada a identidade, esses dados biométricos comprometidos podem ser utilizados para acessar sistemas, realizar fraudes e até falsificar identidades. Ao proibir o pagamento, a ANPD considerou que a recompensa financeira poderia levar os titulares a cederem seus dados sem plena consciência das implicações, o que pode violar princípios da LGPD, como a transparência, a necessidade e a adequação no tratamento de dados pessoais, segundo a advogada.
Além disso, o uso de criptomoedas como forma de pagamento agrava os riscos, pois dificulta o rastreamento financeiro e pode favorecer práticas ilícitas, como lavagem de dinheiro ou comércio irregular de dados.
Para a advogada Natália Vital, do Goulart Penteado Advogados, essa compensação financeira acaba atraindo a população mais vulnerável e faz com que essas pessoas não avaliem os riscos por trás desta iniciativa.
“Ao vender esses dados, o titular pode contribuir para práticas de vigilância em massa, bem como a categorização discriminatória, pois os referidos dados podem ser adquiridos por empresas ou governos que buscam implementar um sistema de monitoramento extensivo, utilizando os dados biométricos para, por exemplo, controlar comportamentos, restringir movimentos e criar um ambiente em que as pessoas estão constantemente sob observação, além de categorizar pessoas com base em características físicas, dados comportamentais ou associações sociais”, explica ela.
A questão é tão sensível que a World está no centro de um debate global após a Alemanha determinar a exclusão de dados de íris coletados na União Europeia. Segundo a European Data Protection Board (EDPB), 70% dos europeus consideram a coleta de dados biométricos invasiva, destacando preocupações sobre como essas informações são usadas e armazenadas.
Para o especialista em inteligência artificial e fundador da Academia Lendár[IA], Alan Nicolas, a decisão da BayLDA, autoridade de proteção de dados da Baviera, é um exemplo de como a coleta de dados biométricos está saindo do campo da ficção científica para impactar diretamente a vida das pessoas.
“A utilização de dados biométricos já não é uma questão do futuro. É uma realidade que influencia desde a autenticação em sites até o combate a perfis falsos e deepfakes. As pessoas precisam entender que, ao cederem esses dados, elas estão colocando em jogo sua privacidade e segurança pessoal. Por isso, a regulação deve ser mais clara para proteger os indivíduos”, afirma ele,