Saramago e o voto que anulou as eleições

Por trás dos enredos, Saramago descarrega seus ceticismos e críticas ao Estado, à religião, e à política construindo sociedades onde o caos predomina e o absurdo é cotidiano

Felipe Berenguer

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“Prezados concidadãos, disse (o primeiro-ministro), o resultado das eleições que hoje se realizaram na capital do país foi o seguinte, partido da direita, oito por cento, partido do meio, oito por cento, partido da esquerda, um por cento, abstenções, zero, votos nulos, zero, votos em branco, oitenta e três por cento.” – Ensaio Sobre a Lucidez.

O texto acima é inconfundível para quem já pousou seus olhos em qualquer livro do genial José Saramago, único escritor dos países lusófonos a ganhar um Prêmio Nobel de Literatura.

O autor surpreende não somente pela escrita desenvolvida em grandes parágrafos e o uso abundante de vírgulas e pontos finais. Seus livros são verdadeiros convites para narrativas fantásticas: em que pessoas não morrem mais porque a Morte – cansada de ser odiada – resolve suspender suas atividades; em que duas pessoas idênticas vivem e convivem na mesma cidade; em que se obtêm 70% dos votos brancos nas eleições de certo país e, na segunda tentativa de votação, o número aumenta para surreais 83%.

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Por trás dos enredos, Saramago descarrega seus ceticismos e críticas ao Estado, à religião, e à política construindo sociedades onde o caos predomina e o absurdo é cotidiano. É o caso de “Ensaio sobre a cegueira” e “Ensaio sobre a Lucidez”.

Neste segundo livro, por meio dos 83% de votos brancos, Saramago questiona a democracia como sistema perfeito ao – em nome dela – retratar uma reação autoritária do governo, inconformado com a votação. O autor tem posições bastante radicais. Respeito a crítica, mas não compartilho do pessimismo de Saramago.

A democracia, de fato, não é perfeita. Mas é o melhor que temos até hoje. Os exagerados 83% dos votos no livro transmitem a mensagem de que os eleitores já não mais distinguem esquerda, direita ou centro. Denunciam a falta de opções e colocam a legitimidade do governo em xeque, no entanto, o fazendo nas urnas.

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Aí é que se prova a força da democracia. Os desacreditados (salvo raras exceções) ainda usam dos mecanismos aceitos pelo sistema para contestá-lo. Aqui é que me contraponho à visão de Saramago, que entende que o sistema político vigente somente serve ao poderio econômico e não o povo.

Regimes democráticos dispõem de mecanismos legais para que a vontade do povo seja contemplada – obviamente nem sempre isso ocorrerá, mas aceitar a vontade dos outros é um exercício necessário.

Prova disso é que nas eleições brasileiras deste ano teremos a maior porcentagem de nulos e brancos desde 1998. No ápice da insatisfação com a classe política do país, passaremos longe do número cravado na ficção de Saramago. Nesta última semana, a pesquisa Datafolha estimou que 12% dos entrevistados votarão em branco ou nulo. Já o Ibope apontou que os nulos/brancos chegam a 14%.

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Em 2006, os votos não válidos para Presidência ficaram levemente acima de 8%. Nas eleições seguintes, em 2010, o número subiu para pouco mais de 9%. No último pleito presidencial, o número quase chegou a 10%.

Em outros tempos, com outras leis e voto em papel, o voto branco se diferenciava do nulo. O voto branco consistia no papel colocado na urna sem nada escrito e significava conformismo por parte do eleitor, já que ia para o candidato mais votado. Por outro lado, o nulo era considerado um voto de protesto: o eleitor escrevia um número inexistente (ex: 00) e o voto era computado como não-válido.

A Lei das Eleições foi modificada em 1997 e o uso das urnas eletrônicas começou a ser implementado, assim como outras modificações legais. Dessa forma, na prática, o voto em branco e o voto nulo hoje significam a mesma coisa.

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Poucos sabem, mas é impossível – ao contrário do que ocorre no livro – que uma eleição no Brasil seja cancelada por causa de suposta votação cuja maioria (50% + 1 voto) vote nulo ou branco.

Até hoje, desavisados caem na falácia do “voto nulo contra tudo que está aí” e mal sabem que, em realidade, sua grande revolta é em vão. Os votos nulos e brancos não são válidos e, portanto, são descartados da contagem.

Explico: em uma eleição com candidatos A e B e 100 votantes, se 20 votarem em nulo ou branco, o resultado das eleições se dará sobre os 80 votos válidos. Nesse cenário, em termos absolutos, os candidatos A e B precisam de menos votos para atingir a maioria – 40 votos já compõem 50%.

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Em “Ensaio sobre a lucidez”, Saramago leva para outro patamar a narrativa do absurdo, inaugurada por Kafka em “A metamorfose”, e proporciona enredos ricos e inusitados, como este da eleição em que o voto branco ganhou.

Deixo a recomendação do livro como uma ótima ficção. Afinal, a realidade brasileira jamais retrataria fenômeno assim.

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