Devagar e então de repente

Ernest Hemingway, em O sol também se levanta, conta de um empresário que explica como faliu: "Two ways. Gradually; then suddenly" (de duas formas: devagar e então de repente, em tradução livre). Algo parecido pode acontecer no Brasil

Alexandre Schwartsman

Importante: os comentários e opiniões contidos neste texto são responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a opinião do InfoMoney ou de seus controladores

Samuel Pessôa, para variar, escreveu uma bela coluna no domingo. Parte do pressuposto, para lá de razoável, que o atual governo, apesar do evidente corpo mole do presidente, conseguirá aprovar alguma reforma da previdência, porém bastante desidratada e mais tarde do que se espera.

Conclui que, a despeito disto, não haverá ruptura, e nos oferece quatro razões para tanto: reservas internacionais elevadas (que evitam uma crise de balanço de pagamentos); o teto de gastos públicos; algum efeito da reforma “desidratada”; e, por fim, a inflação baixa, que permite manter o juro também baixo, reduzindo o custo da dívida. Assim, as principais consequências da falta de apetite pelas reformas seriam crescimento lento e, em algum momento, uma transição para algo semelhante à Argentina hoje, com inflação alta complementando a expansão medíocre.

Minha análise tem muito em comum com a do Samuel, mas confesso que, ao ler a coluna, me vieram à mente dois relatos, em alguma medida aparentados.

Ernest Hemingway, em O sol também se levanta, conta de um empresário que explica como faliu: “Two ways. Gradually; then suddenly” (de duas formas: devagar e então de repente, em tradução livre).

Já o grande economista Rudi Dornbusch, em frase memorável, afirmou (também em tradução livre): “em economia as coisas demoram mais para ocorrer do que você pensa e então acontecem muito mais rápido do que você imagina”. A verdade é que nossa capacidade como economistas de prever eventos descontínuos não é grande coisa, mas vou me arriscar aqui.

Quem teve a chance de analisar a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), enviada há pouco ao Congresso Nacional, deve ter notado algumas coisas interessantes. Em primeiro lugar, quase uma curiosidade: embora durante a campanha Paulo Guedes tivesse prometido zerar o déficit primário, a LDO prevê déficits recorrentes de 2019 a 2022. Neste aspecto, pelo menos, o ministro parece ter calçado as sandálias da humildade e se dobrado à necessidade de fazer um pouco de conta, atitude positiva, ainda que tardia.

É bem verdade que a trajetória de déficits é declinante no período, caindo a 0,3% do PIB no último ano, consequência da premissa de obediência ao teto de gastos, que força o conjunto da despesa federal a se reduzir relativamente ao PIB, enquanto receitas se mantém aproximadamente constantes.

Por outro lado, quando examinamos as principais contas de dispêndio público projetadas na LDO, é impossível deixar de notar que sua trajetória cadente só se materializaria sob a suposição de contração extraordinária do gasto discricionário, que viria de 1,7% do PIB em 2018 (11% da despesa) para 0,8% do PIB (6% da despesa) em 2022, uma vez que benefícios previdenciários seguiriam crescendo.

Posto de outra forma, a ser respeitado o teto de gastos, na ausência de reforma, a contração necessária da despesa discricionária levaria à paralisação da máquina federal em 2021, ou (mais provavelmente) em 2022, uma vez que requereria um corte em termos reais pouco superior a 40% em quatro anos.

Se, porém, a reforma for plenamente aprovada, seria possível limitar o corte do gasto discricionário a algo como R$ 14 bilhões até 2022 (contra R$ 64 bilhões no cenário sem reforma), o que, com um pouco de sorte, manteria o governo federal operante. Vale dizer, caso a reforma seja muito desidratada, haverá um encontro sério com a realidade das contas públicas num horizonte de 3 a 5 anos.

Em tal circunstância duas coisas me parecem prováveis. Em primeiro lugar, o abandono do teto de gastos, que se tornaria insustentável sem uma reforma parruda da previdência. Todavia, como isto significaria também a impossibilidade de estabilização da dívida como proporção do PIB, o BC teria que deixar de pautar sua política de juros pela inflação, calibrando a Selic para estancar o endividamento.

Neste caso o BC perderia a capacidade de controlar a inflação, devagar e, então, de repente. Se vale o dito de Dornbusch, quando isto ocorrer, provavelmente mais tarde do que prevejo, será muito pior do que imagino.

Autor avatar
Alexandre Schwartsman

Alexandre Schwartsman foi diretor de assuntos internacionais do Banco Central e economista-chefe dos bancos ABN Amro e Santander. Hoje, comanda a consultoria econômica Schwartsman & Associados. Formou-se em administração pela Fundação Getulio Vargas, fez mestrado em economia na Universidade de São Paulo e doutorado em economia na Universidade da Califórnia em Berkeley.