Argentina entre a desonra e a guerra

A crise argentina, que deve permitir a volta do peronismo ao poder, decorre de opção equivocada de Macri: entre o ajuste e o gradualismo, escolheu o segundo e teve que enfrentar o primeiro

Alexandre Schwartsman

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Ninguém esperava um bom desempenho de Maurício Macri nas eleições primárias argentinas realizadas neste fim de semana, que, sem disputas internas nos partidos, funcionaram como prévia das eleições gerais de outubro.

Ainda assim, a magnitude da derrota, com quase metade (48%) dos votos direcionados à chapa da qual Cristina Kirchner faz parte, contra 32% recebidos pelo presidente (resultado que sugere decisão já em primeiro turno), surpreendeu os mercados, levando a quedas expressivas dos ativos argentinos: bolsa e títulos, bem como a moeda.

A reação do mercado financeiro é compreensível. Ainda que Cristina Kirchner não seja a cabeça da chapa peronista, há consenso que ela retomará na prática o controle do governo.

À luz de sua política econômica anterior, marcada por forte intervenção nos mercados, falsificação de dados econômicos, confisco de fundos de pensão, descontrole fiscal e inflação elevada, não há quem nutra expectativas favoráveis para o país, o que se expressa precisamente no comportamento negativo dos ativos financeiros.

Também não é necessário nenhum grande esforço de imaginação para entender a irritação da população com o presidente. Após seis trimestres de recuperação, em que a economia se expandiu ao ritmo médio de 3,4% ao ano, o país voltou a entrar em forte recessão: o PIB caiu nada menos do que 6,5% em comparação ao observado no trimestre final de 2017, seu melhor momento sob Macri.

Por outro lado, a inflação medida em 12 meses, que havia caído para 25% também no final de 2017, voltou a acelerar, e tem permanecido na casa de 55%, apesar de medidas heterodoxas do governo, como o congelamento de alguns preços privados e tarifas públicas, anunciado em abril deste ano.

A causa imediata de ambos os fenômenos (pelo menos da maior parte) é a perda de quase 60% do valor da moeda no período. Na ausência de um mercado de crédito em moeda local, a quase totalidade do endividamento, tanto do setor público, quanto do setor privado, é denominada em dólares; assim, a desvalorização da moeda eleva o valor das dívidas, sufocando as empresas e o governo.

Adicionalmente, a forte dolarização da economia faz com que o encarecimento da moeda estrangeira seja repassado em larga medida para os preços domésticos. Isto transparece no comportamento da inflação de bens (mais sensíveis aos preços internacionais), que era inferior à inflação de serviços (menos sensíveis) no final de 2017 (20% contra 34%), mas que hoje a supera por margem considerável (60% contra 50%).

Isto dito, a questão maior é o que levou ao desempenho desastroso da moeda nos últimos 18 meses, em particular na comparação com outros países emergentes, que também sofreram com a piora do cenário internacional, mas, em sua maioria, não viveram algo tão dramático quanto a desvalorização do peso argentino.

As razões, acredito, se encontram na política econômica doméstica. Em que pese a retórica liberal na eleição de 2015 – e mesmo medidas acertadas no que diz respeito à liberação do câmbio e redução de subsídios –, a verdade é que o governo Macri fez muito pouco nas áreas fiscal e monetária.

Ao assumir, Macri herdou um déficit fiscal na casa de 5% do PIB, dos quais 4% do PIB correspondiam ao balanço primário (isto é, sem considerar o pagamento de juros). Ao contrário, porém, do que se anunciava, jamais houve um programa de austeridade: até o final de 2017, o déficit fiscal aumentou para quase 6% do PIB, principalmente por conta da piora do desempenho primário; apenas a partir de meados de 2018 se observa algum esforço, mas que mantém o resultado negativo na casa de 5% do PIB.

Já no que se refere à política monetária, apesar da inflação já elevada, o BCRA reduziu a taxa de juros de 2016 até o primeiro trimestre de 2018 (de 38% aa para 27% ao ano), só voltando a elevá-la quando o país começou a enfrentar uma séria crise cambial.

Vale notar que a gênese desta crise estava relacionada à piora do ambiente internacional, à época pelo receio de uma elevação mais forte da taxa de juros nos Estados Unidos (enquanto hoje o problema está mais relacionado à guerra comercial), assim como pela queda nos preços das commodities a partir de meados de 2018.

Todavia, a gravidade do problema na Argentina, na comparação, por exemplo, com outros países latino-americanos (até o Brasil!), sugere a existência de mecanismos de ampliação do choque externo que se encontravam presentes apenas lá.

A verdade é que o governo Macri optou pelo gradualismo para tratar dos problemas de contas públicas e inflação, talvez na crença de manutenção do cenário externo favorável que vigorou até o começo de 2018, talvez por suas dificuldades políticas internas, talvez pela combinação de ambos.

De qualquer forma, como ficou claro, não se preparou para dias piores e agora paga o preço desta opção. Não fez os ajustes quando teve oportunidade e teve de fazê-los quando não lhe restava escolha.

Churchill, de maneira profética, alertou Neville Chamberlain: “Você teve de optar entre a guerra e a desonra: escolheu a desonra e terá a guerra”. Não é difícil estender a analogia para o caso argentino.

Antes, porém, de chorar pela Argentina (quem resiste a Andrew Lloyd Webber e Tim Rice?), lembremos que optamos pelo mesmo gradualismo na questão fiscal, embora algo menos grave porque a dívida pública é denominada em moeda nacional e, portanto, não flutua ao sabor da taxa de câmbio.

Isso, porém, não nos confere o dom da invulnerabilidade. Também enfrentamos uma janela de oportunidade modesta para colocar a casa em ordem e a velocidade do ajuste não nos dá qualquer margem para erro.

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Alexandre Schwartsman

Alexandre Schwartsman foi diretor de assuntos internacionais do Banco Central e economista-chefe dos bancos ABN Amro e Santander. Hoje, comanda a consultoria econômica Schwartsman & Associados. Formou-se em administração pela Fundação Getulio Vargas, fez mestrado em economia na Universidade de São Paulo e doutorado em economia na Universidade da Califórnia em Berkeley.