Henry Kissinger: quem foi o diplomata centenário que ainda divide opiniões

Negociações de paz, apoio a ditaduras militares e acusações de crimes de guerra marcam sua biografia

Henry Kissinger
Henry Kissinger discursa durante a celebração do 230° aniversário do Departamento de Estado dos EUA, em julho de 2019 (Getty Images)

Em 29 de novembro de 2023, falecia aos cem anos de idade o principal nome da diplomacia norte-americana dos anos 60 até hoje: Henry Kissinger

Secretário de Estado dos governos de Richard Nixon e Henry Ford, sua figura marcou a geopolítica mundial do século XX. Afeito a negociações de bastidores, protagonizou o acordo de paz da Guerra do Vietnã, a aproximação dos Estados Unidos com a China durante a Guerra Fria, o apoio às ditaduras militares da América Latina nos anos 60 e 70, entre outros fatos importantes e controversos.

Defensor ferrenho da realpolitik – pragmatismo em detrimento de ideologias políticas – seu legado divide opiniões. Para muitos, o alemão de ascendência judaica (e naturalizado estadunidense) foi um dos grandes estrategistas internacionais da história recente. Já outros o consideram um violador de direitos humanos e maior azarão do Nobel da Paz de todos os tempos.

Pai de Elizabeth e David, de sua primeira união que terminou em 1964, Henry Kissinger era casado com Nancy Maginnes Kissinger desde 1974. A seguir, saiba mais sobre a vida do diplomata e alguns dos principais fatos associados ao seu legado.

Quem foi Henry Kissinger?

Heinz Alfred Kissinger nasceu em 27 de maio de 1923 em Fürth, no estado da Baviera, Alemanha. 

Filho de judeus, sua família fugiu para os Estados Unidos em 1938 alguns anos depois da ascensão de Hitler ao poder. Aos 15 anos de idade, Kissinger era um refugiado que viria a adotar a cidadania norte-americana, com o novo nome “Henry”.

O jovem planejava estudar Contabilidade na Universidade de Nova York, mas foi convocado pela infantaria do Exército em 1943, para atuar em uma divisão que acabou sendo transferida para a Europa um ano depois. Lá chegando, destacou-se pela articulação e pelo alemão fluente, o que lhe rendeu a transferência para o serviço de inteligência da divisão.

Seu grupo foi um dos presentes da Batalha das Ardenas, a última contraofensiva dos nazistas contra as forças aliadas. Logo após a rendição alemã e já sargento, Kissinger chegou a participar de ações de captura de agentes foragidos da Gestapo.

A realpolitik e os preceitos do futuro diplomata

De volta aos EUA, formou-se em Ciências Políticas na Universidade de Harvard em 1950, emendando mestrado e doutorado na mesma área. Em sua famosa tese “Paz, Legitimidade e o Equilíbrio”, estudou o Congresso de Viena de 1815 e como se deu a reorganização da Europa após a derrota de Napoleão Bonaparte.

Na ocasião, as potências europeias restauraram as monarquias vigentes antes da Revolução Francesa e dividiram os territórios de alguns países, sob a justificativa de manutenção de uma “paz e equilíbrio duradouros”. Nasciam aí os primeiros preceitos da realpolitik, que visava exclusivamente a defesa dos interesses nacionais, mesmo que sob força ou coerção de minorias. 

Em outras palavras, no fim das contas as decisões mais importantes sempre seriam tomadas pelas maiores potências, mesmo que isso desconsiderasse interesses de países mais fracos. Com base nessa lógica, Kissinger determinou o seu conceito de legitimidade, que viria a pautar toda a sua atuação política dali para frente. Segundo ele, qualquer desafio a essa “ordem internacional legítima” era considerado perigoso e deveria ser combatido.

Início de Kissinger na política

A vida política de Kissinger começou em 1960, quando ele trabalhou na campanha para a nomeação de Nelson Rockefeller, governador de Nova York, como candidato republicano à presidência dos EUA. O partido escolheu Richard Nixon, que viria a perder a eleição para John Kennedy, assassinado em 1963.

Em 1964, uma nova tentativa de emplacar Rockefeller não deu certo. Novamente, Nixon concorreu à presidência contra Lyndon Johnson, vice de Kennedy que conseguiu se eleger por conta própria. Por fim, Richard Nixon venceu a eleição presidencial em 1968, e Kissinger assumiu o Conselho de Segurança Nacional. 

Embora o secretário de estado fosse William Rogers na época, era Kissinger quem de fato chefiava a diplomacia no governo Nixon. Aos poucos, o então secretário passou a conduzir sozinho os acordos com potências estrangeiras. Ao mesmo tempo, a participação de Rogers se tornava cada vez mais apagada, culminando na sua saída do governo, em setembro de 1973.

“Diplomacia triangular” e o acordo com a China

Durante a Guerra Fria, Kissinger trabalhou em uma série de alianças com países que faziam fronteira com a União Soviética. Nesse contexto, uma peça-chave para exercer pressão sobre os soviéticos era a China, com quem os EUA tinham rompido relações desde a Revolução Cultural liderada por Mao Tsé-Tung. 

Antigas aliadas, China e União Soviética vinham tendo conflitos políticos por divergências quanto ao modelo socialista. Então, o Secretário de Estado de Nixon concebeu a “diplomacia triangular”, mantendo relações com os soviéticos ao mesmo tempo que tentava costurar novamente uma relação com os chineses.

Em julho de 1971, Kissinger foi secretamente à China para falar com o primeiro-ministro Zhou Enlai sobre a questão de Taiwan, que o governo chinês reivindicava como seu território. Três meses depois, na Assembleia da ONU de outubro, a China recuperou seu assento no Conselho de Segurança da entidade, ao mesmo tempo que Taiwan foi expulso.

O encontro de Kissinger com Enlai abriu portas para a visita de Nixon ao país em 1972, quando finalmente iniciou a reaproximação entre os dois países.

Operação Condor

Sob a bandeira do “combate ao comunismo”, ditaduras militares da América Latina firmaram uma aliança com os Estados Unidos em meados dos anos 60, que ficou conhecida como Operação Condor.

Na prática, tratava-se de mais uma extensão da Guerra Fria. A princípio, um país latino especificamente preocupava Kissinger: o Chile, depois da vitória do socialista Salvador Allende, eleito presidente em 1970.

Durante os anos 70, a Operação Condor contou com o apoio da CIA no combate a governos de esquerda na América Latina. Em 1973, Allende é assassinado em um ataque militar ao palácio de La Moneda, quando então o general Augusto Pinochet assume o poder e inicia uma ditadura que duraria até 1990.

A ditadura militar argentina, que terminou em 1983, também teve o apoio norte-americano. Por aqui, Kissinger formou canais secretos de comunicação com o governo militar visando transformar o Brasil em aliado na Guerra Fria. Em seu livro “Kissinger e o Brasil”, o professor Matias Spektor observa que esses canais viabilizaram uma “política de consultas oficiais entre os governos brasileiro e norte-americano, para evitar conflitos”.

Kissinger e a Guerra do Vietnã

Desde que foi eleito, Nixon prometia retirar as tropas americanas do Vietnã. Os EUA entraram oficialmente na guerra em 1965, em apoio ao Vietnã do Sul contra o norte comunista. Porém, vinha gastando uma fortuna e perdendo apoio popular em função do número de mortos que aumentava a cada dia.

Kissinger estava convencido de que não havia nenhuma perspectiva realista de vitória americana em campo. Ele dizia que se tratava de uma “guerra de guerrilhas”, sobre a qual uma estratégia baseada em tropas regulares não teria nenhuma eficácia.

Assim, começou a negociar as condições para o fim da guerra com o Vietnã do Norte em 1971. Porém, apoiou secretamente Nixon no bombardeio contra o Camboja, que foi seguido de uma invasão terrestre. Segundo Kissinger, a ideia era dificultar a guerrilha para os soldados norte-vietnamitas, que utilizavam o país como esconderijo e ponto de logística para passagem e suprimentos.

A decisão de atacar o Camboja não passou pelo Congresso americano, e também não surtiu o efeito desejado, que era acabar com o comunismo. Com o país destroçado, os cambojanos iniciaram uma guerra civil que culminou na violenta ditadura de Pol Pot, líder do Khmer Vermelho. Ao todo, estima que o ataque estadunidense ao Camboja tenha matado pelo menos 50 mil civis.

Depois de uma série de negociações difíceis, finalmente vieram os Acordos de Paz de Paris, em 1973, que estabeleceram as condições para o término do conflito. Porém a guerra viria a terminar somente dois anos depois.

Ainda em 1973, o Comitê do Nobel tomou uma decisão que revoltou ativistas pela paz ao redor do mundo. Na sessão mais polêmica do Nobel da Paz já vista até hoje, Henry Kissinger e Le Duc Tho, ministro das Relações Exteriores do Vietnã do Norte, receberam o prêmio pelas respectivas atuações nos Acordos de Paris. Le Duc não aceitou a premiação, alegando que a guerra não tinha terminado. Já Kissinger aceitou a honraria e doou o dinheiro para famílias de soldados americanos mortos na guerra. Dois anos depois, tentou devolver a premiação.

Em 1975, com a captura de Saigon (capital do Vietnã do Sul), o exército norte-vietnamita finalmente consegue implantar o comunismo e o país é unificado. Na ocasião, Kissinger tentou devolver o prêmio ao comitê norueguês.

Saída do governo e palestras pelo mundo

A carreira política de Kissinger sobreviveu ao escândalo de Watergate. Após a renúncia de Nixon, em agosto de 1974, continuou como Secretário de Estado de Gerald Ford, cargo que ocupou até 1977, quando Ronald Reagan assumiu a Casa Branca.

Após sair do governo, Kissinger fundou uma consultoria para empresas internacionais, e passou a participar de diversos fóruns sobre segurança e política externa. Autor de diversos livros sobre memórias e diplomacia, também comentava com regularidade assuntos internacionais na mídia.

Kissinger se manteve em atividade até pouco antes de sua morte. Em 2022, saiu em turnê para divulgar seu novo livro e, em julho de 2023, visitou o presidente chinês Xi Jinping, buscando novamente estreitar relações com a China, depois de cinco décadas da primeira ida ao país.