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Se o sistema criminal fosse uma bolsa de valores e os crimes, as ações nela negociadas, o de lavagem de dinheiro seria, disparado, a “ação” mais valorizada nos últimos anos.
Esse crescimento se deve a três fatores: (i) a ampliação, em 2012, dos crimes antecedentes, cujos proventos podem ser, digamos assim, “lavados”; (ii) a ampliação, no mesmo ano, do rol de pessoas obrigadas a reportar operações suspeitas ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) e outros organismos de controle setorial; e (iii) a melhoria das ferramentas de investigação dos crimes financeiros.
O crime de lavagem de dinheiro foi introduzido no Brasil pela Lei 9.613, de 3.3.1998, que, em seu artigo 1º, incriminou a conduta de “ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente” de crimes graves, como tráfico de drogas ou de armas, terrorismo, extorsão mediante sequestro, e outros.
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Esses crimes, num total de oito diferentes tipos, passaram a ser conhecidos como “crimes antecedentes” de lavagem de dinheiro. Isto é, só havia crime de lavagem se o agente ocultasse ou dissimulasse recursos oriundos daqueles específicos crimes. Sucede que, em 9.7.2012, a Lei 12.683, extinguindo aquela restrição, passou a permitir imputar a prática de crime de “lavar dinheiro” pela ocultação ou dissimulação de recursos de qualquer origem criminosa, mesmo os valores auferidos em crimes leves ou médios, como furto ou estelionato.
A ideia por trás é impedir que o criminoso faça uso do recurso ilícito. Até aí, tudo bem. Mas, logo surgiram situações de evidente desproporção entre as penas altas da lavagem de dinheiro (3 a 10 anos de prisão) e as dos crimes antecedentes mais leves, como furto (1 a 4 anos de prisão). Isto é: usar o recurso obtido passou a ser mais grave do que cometer o crime. Uma clara distorção na realidade das coisas…
Outro fator que muito contribuiu para a supervalorização da lavagem de dinheiro, também advindo da Lei 12.683, foi o aumento do número de pessoas, físicas e jurídicas, cuja atividade profissional ou empresarial passou a exigir, em caráter obrigatório, a comunicação de operações suspeitas ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) e a outros organismos setoriais de controle. Através de instruções, portarias e regulamentos, novas regras de comunicação foram impostas ou aprimoradas para os mais diversos tipos de negócio.
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São exemplos: bancos (circulares BACEN 2852, de 1998; 3461, de 2009; e 3583, de 2012); mercado de capitais (instrução CVM 301, de 1999); cartões de crédito (COAF IN 6, de 1999); seguros (circulares Susep 200, de 2002; e 445, de 2012); planos de saúde (Resolução Normativa ANS 117, de 2005); imóveis (resoluções Cofeci 1.168, de 2010; e 1.336, de 2014); imóveis (COAF IN 26, de 2012); joias e pedras preciosas (COAF IN 23, de 2012); segurança privada (portaria DPF 3.233, de 2012), factorings (COAF IN 21, de 2012); economia e finanças (resolução Cofecon 1.902, de 2013); loterias (portaria SEAE 537, de 2013); contador (resolução CFC 1.445, de 2013); fundos de pensão (instrução Previc 18, de 2014); veículos automotores (COAF IN 4, de 2015); e comércio de obras de arte (portaria Iphan 396, de 15.9.16).
Nos primeiros cinco meses deste ano, houve um grande aumento de movimentações atípicas de recursos no Rio de Janeiro. Muitas pessoas carregaram cartões de crédito pré-pagos com dinheiro em espécie, como mostram relatórios do COAF. De 1º de janeiro até o último dia 16, o órgão identificou 30.537 pessoas que realizaram transações fora do padrão, que podem indicar operações de lavagem de dinheiro. O número é 7% maior do que o registrado ao longo de todo o ano passado.
Em 2017, 28.463 moradores do Estado foram parar na malha do COAF por indícios de irregularidades. Os resultados das análises do COAF constam de Relatórios de Inteligência Financeira (RIF), que são enviados a promotores e à Secretaria de Segurança do Rio. Este ano, o conselho produziu 248 RIFs no Rio. Os documentos servem de base para a abertura de investigações da Polícia Federal e do Ministério Público Federal.
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Com efeito, nos últimos nos, aumentou a quantidade de investigações da PF e do MPF por suspeitas de lavagem de dinheiro. Isto se deve ao trabalho de inteligência e de coleta de dados do Coaf, mas também ao fato de que os promotores têm maior facilidade de obter provas de lavagem de dinheiro (delito que, geralmente, deixa rastros financeiros) do que dos crimes antecedentes – o de corrução, por exemplo.
O Coaf não investiga, apenas detecta movimentações que apresentam indícios de irregularidades e encaminha a informação às autoridades competentes. As movimentações atípicas informadas podem ou não servir de indícios da prática da lavagem de dinheiro. Porém, a Polícia, ao invés de investigar a fundo, limita-se muitas vezes a chamar a pessoa a explicar a transação atípica, o que é um despropósito. Duas transações bancárias em valor acima do seu “perfil financeiro” podem ser o suficiente para que um delegado te convoque a dar “explicações”. Uma situação constrangedora que decorre mais da desatualização dos cadastros dos bancos do que qualquer outra coisa. Assim é que investigações “por lavagem” vêm se multiplicando por todo o país.
O risco dessa supervalorização da lavagem de dinheiro é uma possível hipertrofia na análise dos tribunais, sobre o que seja este crime. “Ocultar” e “dissimular” são conceitos muito vagos que propiciam interpretações variadas. Não se pode banalizar a instauração de investigações criminais. Nem achar que tudo tem que “caber no sapato” da lavagem de dinheiro. A lavagem de dinheiro é a “blue chip” do momento no “mercado” do sistema criminal. Só que este sistema lida com a vida e a liberdade das pessoas, “bens” que o dinheiro não compra.