Ouro não é mais dinheiro e não voltará a ser

Ron Paul, o famoso congressista e libertário americano, certa vez perguntou ao então presidente do Federal Reserve (Fed) Ben Bernanke se “ouro era dinheiro”. O breve debate ocorreu em uma audiência do Financial Services Subcommittee sobre Política Monetária, em julho de 2011. “Quando você acorda de manhã, você se importa com o preço do ouro?”, perguntou ele a Bernanke. “Bem”, disse o ex-chairman do Fed, “eu presto atenção ao preço do ouro. Mas acho que ele reflete um monte de coisas. Ele reflete as incertezas globais. Creio que a razão pela qual as pessoas entesouram ouro é como forma de proteção ao que chamamos de riscos de cauda (tail risk), resultados realmente catastróficos. E na medida em que os últimos anos deixaram as pessoas mais preocupadas com o potencial de uma crise maior, elas então têm ouro como uma proteção”. Não satisfeito, Dr. Paul retrucou: “Você acha que o ouro é dinheiro?”. Bernanke pausou, estranhando a pergunta, mas deu sua resposta: “Não, não é dinheiro. É um metal precioso”.

Fernando Ulrich

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Ron Paul, o famoso congressista e libertário americano, certa vez perguntou ao então presidente do Federal Reserve (Fed) Ben Bernanke se “ouro era dinheiro”. O breve debate ocorreu em uma audiência do Financial Services Subcommittee sobre Política Monetária, em julho de 2011.

“Quando você acorda de manhã, você se importa com o preço do ouro?”, perguntou ele a Bernanke.

“Bem”, disse o ex-chairman do Fed, “eu presto atenção ao preço do ouro. Mas acho que ele reflete um monte de coisas. Ele reflete as incertezas globais. Creio que a razão pela qual as pessoas entesouram ouro é como forma de proteção ao que chamamos de riscos de cauda (tail risk), resultados realmente catastróficos. E na medida em que os últimos anos deixaram as pessoas mais preocupadas com o potencial de uma crise maior, elas então têm ouro como uma proteção”.

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Não satisfeito, Dr. Paul retrucou: “Você acha que o ouro é dinheiro?”. Bernanke pausou, estranhando a pergunta, mas deu sua resposta: “Não, não é dinheiro. É um metal precioso”.

“Mesmo que tenha sido dinheiro pelos últimos 6.000 anos, alguém reverteu isso, eliminou essa lei econômica?”, replicou Dr. Paul.

“Bem, é um ativo”, afirmou o ex-chairman do Fed. “Você diria que Treasury Bills são dinheiro? Tampouco acho que são dinheiro, são um ativo.”

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“Por que bancos centrais possuem ouro?”

“Bem, é uma forma de reserva.”

“Por que não possuem diamantes, em vez de ouro?”

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“Bem, é uma tradição, uma tradição de longo prazo”, concluiu Ben Bernanke.

Quem tem razão nesse debate? Por incrível que possa parecer – e jamais achei que fosse escrever isso –, Bernanke está repleto de razão. Ouro não é dinheiro. Mas os bancos centrais mantêm ouro em reserva não apenas por tradição – nesse ponto, o ex-chairman do Fed é um pouco simplista. A tradição advém dos tempos em que o papel-moeda era de fato lastreado no metal precioso. Há muito mais do que apenas tradição nisso.

Mas Bernanke tem razão, e Ron Paul está errado. Ouro já foi dinheiro, mas não é mais. E não é dinheiro há muitos anos, décadas. Talvez há quase um século. Desde o momento em que os cidadãos foram proibidos de resgatar as cédulas de papel em espécie – moedas e barras de ouro –, para todos os fins práticos dos intercâmbios monetários, ouro não circula na economia há bastante tempo.

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Se definirmos moeda como o “meio de troca universalmente aceito”, é claro que o ouro, hoje, não é dinheiro. Se definirmos moeda como “qualquer bem econômico empregado indefinidamente como meio de troca”, ouro também não pode ser considerado moeda – quase não se tem notícias de empresas que aceitam ouro como forma de pagamento ou de trocas comerciais liquidadas com o metal.

Adquirir ouro hoje em dia é uma tarefa ingrata em muitos países. No Brasil, a forma mais simples para valores expressivos – ainda assim extremamente laboriosa – é por meio de corretoras. Mas faço uma aposta: ligue agora para seu corretor e peça para executar uma ordem de compra de ouro. É bastante provável que ele tenha que desligar para poder se informar no backoffice como diabos se compra ouro no mercado financeiro. Ultrapassadas as barreiras iniciais e lograda a aquisição, você será dono de um papel chamado OZ1D, um contrato cujo lastro são 250 gramas do metal precioso garantido pela BM&F Bovespa. Mas não tente jamais resgatá-lo em espécie, pois essa seria uma aventura digna de outro artigo.

Porém, esse contrato não pode ser transferido a outra pessoa. Para vender o seu OZ1D, você precisa usar novamente a corretora. Se estivéssemos falando de quantidades menores – 10 gramas, por exemplo, que podem ser adquiridas mais facilmente na internet –, as dificuldades de negociação seriam as mesmas que para o papel-moeda em espécie: você não consegue transferi-lo a um comerciante distante; a troca deve ser em pessoa.

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Em outros países, os problemas para aquisição do ativo são similares. O ponto aqui é simples: ouro não é mais dinheiro, é um ativo líquido e, mesmo assim, provavelmente nem tão líquido quanto outros ativos do mercado financeiro (ações, títulos de dívida, etc.). Para você comprar algo com ouro, há uma elevada probabilidade de que precise, antes, conseguir dinheiro, a moeda corrente local, a fim de concretizar a transação. Isso, por si só, seria suficiente para concluir que ouro, definitivamente, não é mais dinheiro.

Não nego o fato de que a evolução do nosso dinheiro não foi nada natural. O papel-moeda que hoje usamos é fruto direto das intervenções dos Estados no âmbito monetário. O ouro não deixou de circular na economia meramente por livre decisão da sociedade; não foi o processo espontâneo de mercado o único responsável pelo desaparecimento do metal no cotidiano da economia. A grande responsabilidade pela eliminação do ouro como dinheiro ou padrão monetário recai nas decisões arbitrárias dos bancos centrais. A âncora no ouro sempre foi um empecilho às políticas monetárias expansionistas; livrar os bancos centrais dessa amarra foi uma decisão política. Não havia ciência nem progresso tecnológico que pudessem justificar o fim do papel desempenhado pelo ouro no sistema monetário.

Mas se ouro não é dinheiro, então o que é? Voltemos a Bernanke: ouro é simplesmente um metal precioso. É uma commodity. E tem sido usado como ativo no portfólio de muitos investidores como proteção contra cenários bastante catastróficos. Um porto seguro para preservação de valor.

Durante milênios, ouro foi ou o meio circulante propriamente dito ou o lastro ao meio circulante. Naturalmente, a memória coletiva da humanidade não permite interromper esse processo de forma abrupta. E justamente devido à tradição milenar de commodity empregada como dinheiro é que o ouro segue sendo um refúgio, um ativo de proteção para muitas pessoas. Nesse sentido, o risco de um cataclismo financeiro global reforça, ou sustenta, a demanda pelo metal precioso – em um cenário de colapso do papel-moeda e de crise sistêmica, o ouro poderá voltar a ser demandado como moeda corrente ou como lastro para as moedas nacionais – esse é o racional.

Por que precificar pelo ouro é errado

Se ouro não é mais moeda e está longe de ser o bem mais líquido em uma economia, precificar outros bens com o metal não tem sentido algum. Analisar a evolução do Dow Jones, da Bovespa ou de qualquer outro ativo do mercado financeiro pelo ouro carece de fundamento.

A característica principal de uma moeda extremamente líquida é a de servir como unidade de conta, seja em uma jurisdição, seja internacionalmente. Para muitos economistas, servir como unidade de conta é a própria definição de moeda – embora divirja dessa opinião, pois moeda é mais um adjetivo que descreve uma propriedade que diferentes objetos podem possuir, em graus distintos, mas deixemos essa discussão para depois.

Voltando ao ponto que interessa, pergunto: qual é a moeda mais demandada no mundo atualmente? O dólar, é óbvio. Não é o euro. Nem o yen. E muito menos o ouro – que não é moeda, é uma commodity.

Mas o fato de o dólar não ter nenhuma base ou lastro para seu valor – depende unicamente das decisões arbitrárias dos PhDs do Fed – não prejudica qualquer análise temporal dos preços de outros bens e ativos? Em outras palavras, o fato de o dólar ser constantemente inflacionado pelo Fed não pode distorcer a análise de valor dos outros bens e ativos? É claro que pode. E, sim, distorce. Mas por ser o bem mais líquido em uma economia, por ser a moeda mais demandada internacionalmente e ter uma oferta relativamente estável – atentem para o “relativamente”, o que não significa desejável ou correto –, o dólar é inevitavelmente a unidade de conta internacional. É a moeda global. É o bem pelo qual todos os outros bens no mundo são precificados atualmente. E não há nada que os 6.000 anos de história do ouro possam fazer para mudar essa realidade.

Se a inflação monetária do dólar engendrada pelo Fed deturpa uma análise precisa de valor ao longo do tempo, que meios temos para mitigar essa falha? A melhor opção existente é ajustar o dólar pela depreciação da moeda conforme medida por índices de preço, apesar dos milhares de defeitos inerentes aos índices de preços. Talvez utilizar alguma mescla de índices de preços minimize as imperfeições de um índice apenas.

Mas ajustar pelo ouro não seria uma alternativa melhor? Se estivéssemos em 1900, talvez. Mas não hoje em dia, em que o ouro foi largamente desmonetizado, não é um bem com alta liquidez no mercado, não é usado como meio de troca; é apenas uma commodity, um ativo de proteção com baixíssima proporção nos portfólios de investimentos globais.

O metal precioso já foi um excelente termômetro da depreciação das moedas fiduciárias. A alta no valor do ouro refletia, em larga medida, a inflação gerada pelos bancos centrais. Contudo, dado o status atual de apenas commodity ou ativo de proteção, essa relação já não é mais tão estreita. Por isso, analisar outros bens e ativos ao longo do tempo, ajustados pelo preço do ouro, é mais do que um equívoco, porque insere uma distorção adicional à já complicada análise pela moeda global, o dólar, que sofre manipulações diárias pelos PhDs do Fed.

Não basta uma oferta estável – como a do ouro – para servir como um bom mensurador de preço ao longo do tempo. É necessário, também, uma demanda relativamente estável. E isso, hoje, o ouro infelizmente não tem. Que estejamos sob um padrão monetário sem lastro algum, em que a provisão de moeda obedece às vontades de economistas com alto grau de discricionariedade, não nego. Aliás, lamento. Mas a realidade é inegável: ouro não é mais moeda. A moeda global é o dólar. O denominador comum mundial é o greenback. Pedaços de papel e dígitos eletrônicos, nos quais as pessoas confiam e pelos quais bens e serviços são intercambiados no mundo todo e a riqueza do planeta é precificada. E esse estado de coisas não retrocederá no tempo.

Ouro não voltará a ser dinheiro

Durante a década de 1960, economistas do calibre de Milton Friedman e Paul Samuelson prognosticaram que, caso o dólar fosse libertado das correntes do ouro, o preço do metal cairia bem abaixo do valor oficial de US$ 35/onça. Segundo eles, o ouro acabaria tendo seu valor restrito ao seu uso não monetário, estimado então em US$ 6/onça. A commodity seria finalmente desmonetizada, previam.

Contudo, uma minoria de economistas da chamada Escola Austríaca de Economia (por ex., Ludwig von Mises e Jacques Rueff, assessor econômico do general Charles DeGaulle) antevia precisamente o oposto: com o fim da conversibilidade do dólar em ouro, a moeda americana ficaria desprovida de lastro, perdendo na prática o câmbio fixo com o metal precioso e possibilitando a inflação descontrolada de papel-moeda. A alta no preço do ouro seria uma consequência inevitável, um reflexo da depreciação do dólar.

Friedman e Samuelson erraram. Mises e Rueff estavam certos nas suas previsões. Quando Richard Nixon cortou o último vínculo formal com o ouro – em 1971, jogando pela janela o sistema de Bretton Woods –, a cotação da commodity disparou, chegando a mais de US$ 70 em poucos meses. Os anos seguintes foram marcados pela inflação galopante do dólar e a implacável alta no preço do ouro. Naturalmente, o metal seguiria servindo como refúgio e proteção em um mundo de papel-moeda e câmbios flutuantes.

O passo político para o início da desmonetização total do ouro foi dado em 1971. Mas as circunstâncias tecnológicas estão se desenrolando há muito mais tempo. Na prática, o ouro já havia sumido do dia a dia da economia décadas antes do fim de Bretton Woods. O metal precioso desapareceu do cotidiano dos agentes econômicos não apenas por decisões políticas, como também por questões de simples conveniência, por questões de uso prático. Recorrendo ao economês, usar ouro em espécie eleva os chamados custos de transação.

Custodiar e transferir o ouro sempre foram empreitadas complicadas, especialmente em longas distâncias. Todo o sistema bancário se desenvolveu para resolver, dentre outras coisas, essa grande desvantagem do metal. Os substitutos de dinheiro (cetificados de depósito, cédulas bancárias e depósitos bancários) foram concebidos para melhor prover os serviços que o metal físico jamais conseguiria. Ironicamente, a materialidade do ouro é uma força – pois por meio dela a escassez é assegurada –, mas é também uma grande fraqueza, porque dificulta a custódia e a simples transmissão de propriedade.

Ouro, como padrão monetário, é insuficiente sem um sistema de pagamentos. Ouro, como moeda, jamais prescindiria de inúmeros terceiros responsáveis pela custódia, liquidação e transferência. Esse emaranhado de intermediários inevitavelmente introduz uma vulnerabildiade no sistema: o risco da contraparte.

Sejamos honestos, transacionar com ouro em espécie é inconveniente. A característica fundamental do ouro como dinheiro reside na sua oferta inelástica, na incapacidade de governos ou bancos inflacionarem a quantidade do metal em circulação. Mas seria a materialidade a única forma de garantir uma moeda inviolável? Mais adiante remotarei esse ponto.

Friedman e Samuelson erraram porque acreditavam que não haveria mais demanda por ouro como ativo. Não entenderam que a estabilidade de valor – a previsibilidade do poder de compra – era protegida pela âncora na commodity. Mises e Rueff entendiam muito bem essa relação. À época, simplesmente não havia alternativa à moeda puramente fiduciária senão o ouro, a despeito de todos os inconvenientes de uso prático.

Mas hoje os tempos são outros.

O invento do Bitcoin mudou radicalmente os fundamentos do ouro. O passo político para desmonetização do metal foi dado há 40 anos; mas será o Bitcoin o responsável pela sua desmonetização absoluta. Uma criptomoeda como o Bitcoin tem o potencial de restringir o valor do ouro ao seu uso não monetário. No futuro, o preço do metal refletirá majoritariamente a sua demanda em aplicações industriais, joias ou qualquer outra utilidade possível. A previsão de Friedman e Samuelson será concretizada, não pelos motivos expostos por eles, mas sim porque hoje há uma alternativa à altura da commodity milenar.

A superioridade tecnológica do Bitcoin

Se os gold bugs continuam lendo até aqui, peço-lhes um pouco mais de atenção aos argumentos que seguem.

Por que afirmo que o Bitcoin é superior ao ouro?

Qualificar o Bitcoin como o ouro digital é subestimar toda a potencialidade dessa invenção revolucionária. Ambas são commodities escassas, uma pelas leis da natureza, a outra pelas leis da matemática. Mas as semelhanças acabam por aí.

Um bitcoin é perfeitamente divisível. Bitcoins podem ser custodiados pelo próprio detentor e em diversos formatos – físico ou digital –, sem precisar de nenhum terceiro. Na verdade, bitcoins não são “manuseados”, não há posse física. O que temos é a titularidade dos bitcoins gravada no blockchain, e o que se guarda são apenas as senhas (chave privada) que dão acesso e controle aos fundos. E não importa o saldo custodiado. O mecanismo de controle é indiferente à quantia em questão.

Podemos transferir bitcoins diretamente entre dois usuários, independentemente de localização geográfica ou montante. Não há fronteiras.

Bitcoin é dinheiro programável. Você pode configurar condicionantes para liberação de fundos. É possível definir múltiplas senhas, em que são necessárias ao menos duas assinaturas para a transferência ser efetuada, em uma espécie de conta-caução (escrow account).

Bitcoins não podem ser confiscados, apreendidos ou bloqueados. Simplesmente não há o que bloquear. Não há a quem cercear ou coagir. A rede não pode ser obstruída por decreto. A não ser que derrubem toda a internet, o blockchain seguirá pulsando nos computadores distribuídos ao redor do mundo.

O Bitcoin é a evolução do dinheiro. É a forma mais abstrata de moeda já inventada pelo homem.

Não muito tempo atrás, uma das críticas contra a moeda digital era: o que você pode fazer com um Bitcoin? Não tem valor intrínseco, não tem utilidade, alegavam os céticos. Hoje a situação é inversa. A quantidade e diversidade de aplicações possíveis ou potenciais da tecnologia são assombrosas. Inclusive, manter-se atualizado acerca de todas as iniciativas e novos projetos sendo desenvolvidos com a inovação do Bitcoin tornou-se um feito quase inalcançável.

Desde registro de ações e transferências de ativos, até plataformas de apostas e previsões, registro de terras, comprovação de documentos, serviços notariais, processos de auditoria, etc. Certamente me esqueci de uma dúzia de outras iniciativas. A utilidade potencial da tecnologia está recém sendo percebida, entendida e desenvolvida.

O ritmo de inovação desencadeado pela invenção do Bitcoin é simplesmente extraordinário.

Mas já que este artigo é essencialmente sobre o ouro – e o início do seu fim como ativo de proteção –, devolvo a pergunta aos gold bugs: o que podemos fazer com o metal precioso? Qual a sua utilidade além de ativo ou moeda? De todas essas aplicações possíveis, quais são realmente essenciais ou relevantes ao seu uso como moeda ou ativo de proteção?

A questão fundamental, porém, e sobre a qual os gold bugs devem refletir, é esta: qual de suas propriedades intrínsecas é realmente essencial à função monetária? Qual característica de fato distinguiu o ouro dentre outros meios de troca? A escassez. A impossibilidade de reproduzi-lo em laboratório. A sua oferta rígida e limitada pela própria natureza. O que nos remete à pergunta feita acima: seria a materialidade a única forma de garantir uma moeda inviolável?

Historicamente, a escassez e a tangibilidade sempre foram inseparáveis. Mas o Bitcoin conseguiu a façanha de dissociar a escassez da tangibilidade. A invenção de Satoshi Nakamoto permitiu recriar a escassez do mundo físico na forma digital. E as implicações disso não podem ser menosprezadas.

Assim, quando um gold bug pergunta “por que não lastrear o Bitcoin em ouro?”, das duas, uma: ou ele não entende o propósito do lastro em ouro ou ele não entende como funciona o Bitcoin. Implicitamente, o que eles buscam é uma forma de assegurar a restrição de oferta, é impedir a inflação, é garantir a escassez. Mas não há com o que se preocupar, pois a criptomoeda já contém esse atributo no seu código-fonte.

O futuro da moeda

Em sua obra “The Case for 100 Percent Gold Dollar”, Murray Rothbard escreveu:

“É particularmente estranho que aqueles que professam ser campeões da economia de livre mercado sugiram padrões monetários complexos para evitar lidar com o simples fato: que o ouro, aquele escasso e valioso metal produzido pelo mercado, sempre foi, e continuará sendo, de longe a melhor moeda para a sociedade humana”.

Estivesse vivo hoje, creio que Murray Rothbard repensaria essa afirmação.

Não sei se o Bitcoin será a moeda corrente no futuro. Não sei que forma ou nome terá a moeda no futuro. Mas tenho cada vez mais convicção de que o ouro não terá nenhum papel a desempenhar no sistema monetário das gerações vindouras. Suas vantagens históricas são potenciais fraquezas hoje em dia.

Naturalmente, o principal ingrediente, em qualquer sistema monetário, é a liberdade. A liberdade de produzir e de escolher moeda. Nesse ambiente, tenho certeza de que a melhor alternativa será descoberta pelos indivíduos. Hoje não temos esse ambiente. Mas mesmo se o tivéssemos, ouro dificilmente seria superior ao Bitcoin.

Considerando o estado de socialismo absoluto no âmbito monetário, a única alternativa viável de uma moeda de livre mercado é o próprio Bitcoin ou o que vier a superá-lo. O que quero dizer com isso? Permitam-me citar um trecho de um artigo de 1966 do ex-chairman do Fed Alan Greenspan, intitulado “Gold and Economic Freedom” (ouro e liberdade econômica), para contribuir com minha resposta:

“Na ausência do padrão-ouro, não há forma de proteger a poupança do confisco inflacionário. Não há nenhuma reserva de valor segura. Se houvesse, o governo teria que tornar a sua posse ilegal, como foi feito com o ouro. Se todo mundo decidisse, por exemplo, converter todos os depósitos bancários em prata ou cobre ou qualquer outro bem, e depois declinasse a aceitar cheques como pagamento para mercadorias, os depósitos bancários perderiam poder de compra e o crédito bancário criado pelo governo perderia qualquer valor para adquirir mercadorias. A política financeira do Estado do Bem-Estar requer que não haja nenhuma forma para os detentores de riqueza protegerem a si próprios” (grifo nosso).

O Bitcoin sobressai-se ao ouro precisamente no ponto em que o último fracassou: uma forma de reserva de valor segura. À prova de confiscos. Imune a bloqueios. Livre do risco de terceiros fiduciários. Especialmente quando levamos em conta a tendência atual de cada vez mais impotência perante o sistema financeiro tradicional – guerra contra o dinheiro e juros negativos –, o Bitcoin surge como uma grata e necessária inovação no mundo financeiro.

Por todos esses motivos, o ouro pouco a pouco perde seu apelo como ativo financeiro, como ativo de proteção, como porto seguro. No longuíssimo prazo, o valor do ouro estará predominantemente ligado a sua utilidade industrial. Acabará sendo nada mais que uma relíquia bárbara, um metal precioso, mais um símbolo na tabela periódica.

Antes de concluir, um breve adendo com relação ao preço do ouro atual (cerca de US$ 1.100/onça). A queda dos últimos meses pode estar refletindo a expectativa de aumento dos juros e um dólar relativamente mais forte, é verdade. Mas também pode estar refletindo justamente o que expus neste texto. É impossível saber com certeza. A reflexão aqui contida, porém, não está embasada pela queda ou alta recentes de um ou outro ativo. O diagnóstico é bem mais profundo que isso.

Vale destacar que boa dose do racional de valorização potencial do ouro – na ótica dos gold bugs – advém principalmente da expectativa de que investidores, cedo ou tarde, se darão conta da insanidade perpetrada pelos bancos centrais mundiais e buscarão refúgio no metal. Alguns anteveem um cenário ainda mais otimista: uma possível remonetização da commodity elevaria sobremaneira sua cotação. Mas essa conjuntura não se materializará.

O Bitcoin já vem sendo demandado como um porto seguro e, na margem, está abocanhando uma fatia do ouro na alocação de investimentos destinados a ativos dessa natureza. Não encarem, contudo, este artigo como um sinal de compra ou venda imediata da criptomoeda ou do metal – não estou fazendo timing de investimento. Meus argumentos e previsões aqui expostos têm mais a ver com uma tendência secular, com uma transformação fundamental no âmbito monetário do que com uma simples oportunidade de investimento.

A seu favor, os gold bugs têm a história. Não se apagam milênios de experiência humana da noite para o dia. Mas isso não será suficiente para manter o status de ativo de proteção nos próximos séculos. O Bitcoin, a seu favor, tem a superioridade tecnológica, a redução nos custos de transação e a blindagem natural contra a coerção estatal. Nada disso é garantia de que será demandado, mas é um bom indício de que pode vir a ser. E um indício melhor ainda de que a liberdade vencerá.

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Fernando Ulrich

Fernando Ulrich é Analista-chefe da XDEX, mestre em Economia pela URJC de Madri, com passagem por multinacionais, como o grupo ThyssenKrupp, e instituições financeiras, como o Banco Indusval & Partners. É autor do livro “Bitcoin – a Moeda na Era Digital” e Conselheiro do Instituto Mises Brasil