Representantes setor imobiliário querem enterrar direitos do consumidor

É preciso deixar claro que ninguém paga por dois ou três anos prestações de um imóvel que não usou e sequer existe para depois desistir do negócio. A grave crise econômica que afetou o país, o desemprego e o enxugamento do crédito tiraram do consumidor as condições para finalizar a compra, deixando para a empresa a livre negociação de um imóvel que sempre foi dela.

Marcelo Tapai

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Não é de hoje que o setor imobiliário vem fazendo manobras para tentar legalizar condutas que até o momento são ilegais e, desta forma, acabar com seus problemas de uma vez por todas.

Desde a tentativa de um projeto de lei em 2015, que acabou sendo um tiro no pé, pois alterações no texto tornaram a futura lei péssima para os interesses das empresas, passando por pactos sem eficiência, e agora com a mais recente investida, que é o lobby para emplacar uma medida provisória, que lhes garanta ficar com até 80% dos valores pagos pelo consumidor em caso de distrato.

Mais absurdo do que isso foi a declaração de um empresário do ramo imobiliário, que pretende ficar com 100% de tudo o que foi pago pelo consumidor e, caso essa pretensão não dê certo, afirma que a solução é chorar.

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Então o choro deve começar, pois a retenção de todos os valores pagos pelo consumidor é proibida por lei de forma taxativa, nos termos do artigo 53 do Código de Defesa do Consumidor, que textualmente traz que “Nos contratos de compra e venda de móveis ou imóveis mediante pagamento em prestações, bem como nas alienações fiduciárias em garantia, consideram-se nulas de pleno direito as cláusulas que estabeleçam a perda total das prestações pagas em benefício do credor que, em razão do inadimplemento, pleitear a resolução do contrato e a retomada do produto alienado”.

A mesma ilegalidade está presente na pretensão de retenção de 80% dos valores pagos, sendo que a mesma lei, em seu artigo 39, estabelece como cláusula abusiva “exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva”. Também é ilegal em razão do enriquecimento ilícito das empresas com essa prática, o que é proibido pelo artigo 884 do Código Civil.

Além disso, de forma invariável, as decisões judiciais de todo o país têm entendimento sedimentado que os descontos em casos de distrato devem ser calculados sobre os valores pagos pelo comprador e variar entre 10% a 20% do total. Como se vê, o assunto está regulamentado no país, porém, as normas não atendem aos anseios econômicos das incorporadoras.

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Insatisfeitas com as regras atuais aproveitam-se as empresas dos negativos índices econômicos para tentar convencer o governo que precisam de uma legislação que lhes prestigie para retomarem as contratações, gerando novos empregos e salvando a economia.

E as ofensivas são das mais variadas, desde pressões e conversas com entes do governo federal, até divulgação de pesquisas que dizem que o Brasil é um país atrasado em relação a outras nações, que impõem penalidades mais severas em caso de distrato.

Mas o problema é que se esquecem também de dizer que em outros países o formato do negócio é diferente. Pratica-se nesses países o modelo de crowdfunding, no qual pequenos investidores aplicam dinheiro na obra para obtenção de lucro, inclusive com resultados garantidos.

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Aqui no Brasil, ainda em fase experimental, há um empreendimento sendo construído nesse formato em São Paulo, e promete à incorporadora rendimento mínimo equivalente ao da poupança.

Analisando a dinâmica da incorporação imobiliária, temos o chamado distrato, que, na verdade, é um cancelamento de reserva. O modelo brasileiro de incorporação prevê que o interessado pode se candidatar à compra de um imóvel a ser construído quando este estiver pronto e que, para isso, deve pagar à incorporadora parte do preço do bem. O comprador adianta os valores do imóvel, financiando a construção.

É um negócio que traz vantagens às empresas e o risco é todo do consumidor, que empresta dinheiro para uma obra, sem capitalização desse capital e sem garantia que esse imóvel ficará pronto. Tanto é verdade que não são raros os casos de falências de incorporadoras que deixam centenas de famílias desamparadas.

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Apenas com a conclusão da obra é que se celebra o contrato de compra e venda e é somente nesse momento que se transfere a posse e propriedade ao comprador. Então não há um prejuízo efetivo, uma vez que aquele que se interessou pela compra no passado não devolve nada à incorporadora, apenas deixa de comprar e a empresa pode vender o bem a quem quiser.

Na sistemática atual, nos casos de desistência da compra, além de receber dinheiro emprestado do comprador sem pagar nem juros nem correção, a empresa ainda fica com um percentual desse dinheiro.

É preciso levar em conta que ninguém paga por dois ou três anos prestações de um imóvel que não usou e sequer existe para depois desistir do negócio. A grave crise econômica que afetou o país, o desemprego e o enxugamento do crédito tiraram do consumidor as condições para finalizar a compra, deixando para a empresa a livre negociação de um imóvel que sempre foi dela.

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Mais ainda, além do lucro no financiamento da construção, as empresas recebem também do cliente as despesas de comercialização, que já foram pagas como corretagem e que também serão cobradas do próximo comprador.

Além disso, sabemos que as unidades são feitas na forma e no modelo determinado pelo construtor, não é uma obra por encomenda que poderia criar dificuldades para a comercialização, mas sim o produto que a incorporadora habitualmente comercializa e pode vender livremente.

Então onde está o prejuízo?

É justamente por isso que, apesar das pressões, órgãos de defesa do consumidor estão combatendo duramente a proposta, que dificilmente será aprovada. E, mesmo que seja aprovada, em nada interferirá nos contratos já assinados, cabendo a futuros compradores entenderem o risco da incorporação imobiliária e assumi-los se tiverem coragem.

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Marcelo Tapai

Marcelo Tapai é advogado especialista em direito imobiliário, vice-presidente da Comissão de Defesa do Consumidor da OAB/SP, diretor do Brasilcon e sócio do escritório Tapai Advogados.