Pessoas com mais de 70 anos poderão partilhar bens ao se casarem, decide STF

Opção é permitida desde que as partes optem em consenso por outro regime e registrem em cartório

Anna França

Fachada do palácio do Supremo Tribunal Federal (STF) em Brasília (DF), em 11/04/2023 (Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil)
Fachada do palácio do Supremo Tribunal Federal (STF) em Brasília (DF), em 11/04/2023 (Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil)

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Na primeira sessão do ano, realizada nesta quinta-feira (1º) após o fim do recesso, o Supremo Tribunal Federal (STF) retomou a votação sobre a obrigatoriedade do regime de separação de bens para pessoas com mais de 70 anos. Por votação unânime, a Corte decidiu que o regime pode sim ser mudado, se houver pedido expresso registrado em cartório pelo casal. A decisão foi proclamada pelo presidente da Corte, ministro Luís Carlos Barroso, também relator do processo.

Na separação total de bens, não há divisão de patrimônio entre o casal em caso de divórcio ou falecimento. Pela decisão desta quinta, o dispositivo de separação de bens obrigatório para pessoas com mais de 70 anos agora se torna opcional, se for expressa a vontade das pessoas antes do casamento em escritura pública registrada em cartório. O tema terá repercussão geral, ou seja, a decisão deve ser seguida pelas instâncias inferiores, valendo tanto para casamentos como para uniões estáveis.

A discussão começou com o debate sobre um Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1309642. No processo em julgamento, a companheira de um homem com quem constituiu união estável quando ele tinha mais de 70 anos conseguiu, na primeira instância, o direito de fazer parte do inventário e entrar na partilha dos bens juntamente com os filhos do falecido.

Porém, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP), com base no dispositivo do Código Civil, aplicou à união estável o regime da separação de bens, por entender que a intenção da lei é proteger a pessoa idosa e seus herdeiros de eventual casamento por interesse.

No STF, a companheira pretendia que fosse reconhecida a inconstitucionalidade do dispositivo do Código Civil e aplicada à sua união estável o regime geral da comunhão parcial de bens.

O reconhecimento da repercussão geral da matéria (Tema 1.236) levou em conta, entre outros pontos, o respeito à autonomia e à dignidade humana, a vedação à discriminação contra idosos e a proteção às uniões estáveis, ponto frisado pela maioria dos ministros em seus votos.

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Princípios constitucionais

Segundo o sócio do Machado Associados na área de Societário, Planejamento Sucessório e Contratos, Mauro Mori, os ministros julgaram a constitucionalidade do dispositivo do Código Civil (art. 1.641, II). “Segundo o STF, ao impor a separação de bens ao casal simplesmente com base em critério etário, a lei civil afronta os princípios constitucionais da dignidade humana e da igualdade, pois retira do casal a autonomia de escolher livremente o regime de bens que regerá a vida conjugal”, esclarece.

Mori ressalta que, além dos efeitos patrimoniais, “o regime da separação obrigatória de bens gera importantes efeitos sucessórios, uma vez que em caso de falecimento de um dos cônjuges, o sobrevivente não concorre com os descendentes (filhos e netos, por exemplo) na sucessão do falecido”. “Ao decidir por um regime de bens diverso da separação obrigatória, o casal envolvendo uma pessoa com mais de 70 anos deverá avaliar não apenas os efeitos patrimoniais, mas também os sucessórios aplicável ao regime escolhido. Por fim, por uma questão de segurança jurídica e evitar riscos quanto às sucessões já ocorridas, os ministros decidiram que o novo entendimento do STF somente poderá ser aplicado para casos futuros”, conclui.

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Impacto nas sucessões

O advogado especializada na área cível do Peixoto & Cury Advogados, Marcos Filipe Araújo, lembra ainda que a via judicial poderá ser acionada para os casamentos ou uniões estáveis firmadas antes do julgamento do STF, “sendo que o impacto da decisão só acontece depois da sentença transitada em julgado, não afetando a divisão de patrimônio feito em período anterior do relacionamento”. “Essa mudança de entendimento causará impacto no Direito de Família e Sucessões, já que irá alterar, de forma importante, o regime patrimonial e sucessório de quem decidir se casar ou constituir união estável após os 70 anos”, avalia.

No entender de Renato de Mello Almada, especialista em Direito de Família e consultor de Chiarottino e Nicoletti Advogados, o correto seria o reconhecimento da inconstitucionalidade do artigo 1.641, II, do Código Civil, como aliás sustentam vários profissionais. “Sem dúvida, o STF avançou de forma importante em relação ao tema, ao reconhecer que o regime da separação de bens pode ser afastado no caso de expressa manifestação de vontade das partes, o que deve ocorrer mediante escritura pública. A restrição imposta aos maiores de 70 anos apenas em razão da idade não se sustenta”, opina.

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Expectativa de vida

A importância do julgamento é inegável, na opinião da advogada Janaína De Castro Galvão, sócia na área de Contencioso Cível e Resolução de Conflitos da Innocenti Advogados. “Julgamento atende à realidade da população, uma vez que casamentos e uniões estáveis iniciadas em idade avançada são uma realidade para uma população que a cada ano tem sua expectativa de vida ampliada”, diz.

Para Janaína, a autonomia do idoso deve ser preservada e como estava, em última análise, contribuía para o etarismo, preconceito contra pessoas com base em sua idade. Conforme a advogada, o número de casamentos entre maiores de 60 anos praticamente dobrou em 2022, na comparação com o número de casamentos celebrados nos últimos cinco anos, conforme dados da Associação dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil).

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De acordo com Daniela Rocegalli Rebelato, sócia da área de Direito de Família e Sucessões do Marzagão e Balaró Advogados, a decisão considera e valoriza a autonomia individual de pessoas maiores e capazes, com plena capacidade de decisão sobre suas escolhas existenciais e patrimoniais”.

Além disso, para Rocegalli, a fórmula anterior priorizava a proteção de patrimônio para os futuros herdeiros, sendo contraditória ao artigo 426 do Código Civil, que veda o contrato sobre herança de pessoa viva, chamado “pacta corvina”, expressão em latim que significa “acordo do corvo”, referindo-se aos hábitos alimentares da ave que fica aguardando a morte de suas vítimas para se aproveitar de seus restos mortais.

Anna França

Jornalista especializada em economia e finanças. Foi editora de Negócios e Legislação no DCI, subeditora de indústria na Gazeta Mercantil e repórter de finanças e agronegócios na revista Dinheiro