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“A Argentina está acostumada à quebra, à recuperação e ao declínio relativo”. A afirmação do jornalista Enric González em reportagem do El País de março de 2021 parece resumir o último século da economia do país vizinho e ex-principal parceiro comercial do Brasil.
No dia 19 de novembro, o ultraliberal direitista Javier Milei venceu o segundo turno das eleições presidenciais contra Sergio Massa, candidato da coligação União Pela Pátria. Durante a campanha presidencial, sobraram críticas a ambos os candidatos. Por um lado, a fragilidade econômica do país impulsionou o discurso inflamado do vitorioso Milei, que culpava o atual governo pela disparada do dólar e da inflação. Por outro lado, Massa atribuía à gestão de Mauricio Macri, que apoiou Milei, a responsabilidade pela crise econômica, que, em suas palavras, “entregou a Argentina ao Fundo Monetário Internacional”.
Longe de um único culpado, o fato é que diversos fatores na gestão macroeconômica trouxeram o país ao cenário que vemos hoje.
Neste conteúdo, destacamos cinco aspectos que, na visão de Paulo Gala, economista-chefe do Banco Master e professor de Economia na Fundação Getúlio Vargas de São Paulo, ajudam a entender a instabilidade econômica nas últimas décadas.
1 – Escassez de dólares
Diferentemente do Brasil, a Argentina não acumulou reservas de dólares quando teve a chance de fazê-lo, no início dos anos 2000. Segundo Paulo Gala, nada é mais prejudicial para a economia de um país emergente do que a falta de dólares, pois isso provoca uma desvalorização cambial descontrolada, o que, em última instância, eleva drasticamente a inflação.
“Ao contrário do Brasil, que chegou a acumular US$ 350 bilhões, a Argentina gastou o dinheiro em importações e insistiu no endividamento externo, e isso zerou as suas reservas de dois ou três anos para cá”, diz o economista.
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Em meados de outubro, a inflação argentina atingiu 138% no acumulado dos últimos 12 meses, o maior patamar desde agosto de 1991, época na qual o país adotou a paridade de um peso para um dólar.
Uma das promessas eleitorais de Milei foi a dolarização da economia. Mas um país não pode simplesmente decidir que vai usar dólares no lugar da sua moeda sem ter a divisa estrangeira em casa.
“A pergunta é: quem vai querer emprestar dinheiro para a Argentina dolarizar a sua economia?”, observa Gala, relembrando que, nos anos 1990, o país não chegou propriamente a adotar a dolarização. Na época, o que o governo adotou foi a paridade de um peso por um dólar, ou seja, o governo imprimia pesos com contrapartida em dólares. Porém, isso não é dolarização, pois a Argentina não abriu mão de sua moeda.
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“No caso argentino, a dolarização pode criar uma crise de outra natureza, com efeitos como a queda do PIB e recessão, por exemplo. Milei me parece muito extremista, vendendo soluções mágicas como se fosse uma bala de prata, e isso não existe”, alerta Gala.
2 – Falta de credibilidade dos dados oficiais de inflação
De 2007 a 2016, os argentinos conviveram com um “apagão de informações”, que, literalmente, deixou no escuro os dados sobre a inflação do país durante nove anos. Para Paulo Gala, esse foi um erro gravíssimo cometido nos governos de Néstor e Cristina Kirchner, pois fez com que o país perdesse credibilidade.
Na época, técnicos do INDEC (Instituto Nacional de Estatísticas e Censos), órgão equivalente ao IBGE, renunciaram aos cargos e chegaram a denunciar “intervenção política” nos números oficiais. Tudo para que a inflação do período se mantivesse dentro da meta do governo, que era de até 10% ao ano.
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Assim como no Tesouro Direto, havia na Argentina muitos títulos públicos federais indexados à inflação – o equivalente às NTN-B brasileiras.
“Ao não reconhecer a inflação correta, a Argentina reduziu o indexador do título público. Com isso, a capacidade de o governo se financiar no mercado de dívida doméstica começou a ser destruída, o que fez com que a dívida externa aumentasse”, explica o economista.
3 – Aumento da dívida externa
Ao assumir a presidência da Argentina, em 2015, Macri implementou medidas como ajustes de tarifas de serviços públicos, mais transparência nos números, controle cambial, entre outras. Suas ações lhe permitiram reconquistar a confiança dos mercados doméstico e internacional quanto ao pagamento da dívida de US$ 9,3 bilhões aos “fundos abutres” – fundos especulativos que reuniram títulos de credores que recusaram a renegociação da dívida argentina feita entre 2005 e 2010.
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O respiro momentâneo fez o país contrair novamente uma dívida externa, depois de 15 anos fora do mercado internacional. Em 2016, províncias e bancos argentinos receberam US$ 40 bilhões em empréstimos, o que elevou a dívida pública. A cifra acendeu uma luz amarela entre economistas, pelo medo de uma nova “chuva de dólares”, que poderia comprometer os esforços em conter a inflação e retomar o crescimento.
Além disso, preocupava também o perfil dos recursos que entraram no país. Segundo especialistas ouvidos pela BBC Mundo na época, muitos empréstimos eram “andorinha”, ou seja, capital de curto prazo que poderia facilmente sair do país a qualquer sinal de turbulências econômicas.
De fato, os prognósticos pessimistas se confirmaram. Em 2018, o FMI aprovou US$ 57 bilhões para a Argentina, e liberou US$ 44 bilhões desse valor ao país exclusivamente para a renegociação da dívida. O montante chegou aos cofres argentinos antes que Alberto Fernández, sucessor de Macri, assumisse o cargo, em dezembro de 2019.
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Durante seu governo, Macri manteve altos gastos públicos, praticamente em linha com seus antecessores. Segundo analistas, pressões sindicais e as eleições legislativas de 2017 contribuíram para a manutenção do desequilíbrio das contas públicas.
4 – Subsídios para preços públicos
Com uma população empobrecida e fortemente dependente de subsídios estatais, a promessa de manutenção dessas vantagens tem sido uma das armas de Massa na disputa presidencial contra Milei. No início de outubro, o atual ministro da Economia chegou a aumentar as isenções de Imposto de Renda para todos os trabalhadores, mesmo sacrificando metas fiscais acordadas com o FMI.
Segundo Paulo Gala, a política de subsídios públicos é outra questão que o país precisará equalizar. “No meu entender, o reequilíbrio das contas públicas de que a Argentina precisa passa, necessariamente, pelo corte de subsídios, especialmente para os preços de energia e combustíveis”, afirma.
5 – Fraca industrialização
Ao lado da dívida pública, a lacuna na industrialização é um dos problemas mais antigos da economia vizinha.
No início do século 20, a Argentina chegou a ter renda per capita semelhante à dos Estados Unidos, fato que, até hoje, suscita discussões sobre já ter sido rica. No entanto, a suposta prosperidade se devia, basicamente, a duas variáveis: uma população relativamente pequena e um setor agroexportador forte.
“A Argentina era uma espécie de ‘Catar’, só que das carnes e do trigo, e não do petróleo”, compara Paulo Gala. Ou seja, embora a renda per capita fosse alta, o país estava muito longe de um desenvolvimento industrial como o da Alemanha, Inglaterra e EUA, as maiores potências industriais da época.
Assim como no Brasil, o modelo de substituição de importações funcionou na Argentina até o início dos anos 80, pois ela construiu uma base tecnológica e produtiva importante. Porém, explica Gala, o país não conseguiu dar o próximo passo, que seria conquistar o mercado mundial com manufaturas de alto conteúdo tecnológico.
“Países como Coreia do Sul, Singapura, Taiwan e Israel, conseguiram dar esse salto tecnológico, e todos eles fizeram substituição de importações. O problema não é esse, mas sim parar no processo de substituição. O passo de exportar manufaturados é o mais difícil, e foi isso o que a Argentina não conseguiu fazer de forma consistente”, analisa.
Apesar disso, o economista observa que o país possui algumas “gloriosas exceções”, como a capacidade de fazer satélites e outras indústrias de ponta. Segundo ele, é importante dizer que a Argentina tem um parque industrial relativamente avançado, que somente perde para o Brasil na América do Sul.
“O grande problema do país tem sido mesmo a estabilidade macroeconômica, prejudicada pela alta inflação nas décadas de 70 e 80. Nos anos 90, o Plano Cavallo conseguiu um grande avanço, que foi estabilizar a moeda, mas novos problemas vieram a partir de 1995, com a não acumulação de reservas e todos os problemas que vimos anteriormente”.