Argentinos criam “engenharia financeira” para driblar inflação, comprar dólar e fazer o salário render

Em uma economia instável às vésperas de eleição polarizada, estratégias envolvem contas digitais, visitas a "cuevas" e operações com o chamado "dólar bolsa"

Luciana Taddeo

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A dinâmica é sempre a mesma: seja um jovem engenheiro, como Ramiro González*, ou uma dona de floricultura, como Catalina Banach, o que quase todo argentino faz quando sobra dinheiro no fim do mês é comprar dólares – dos mais variados jeitos, legais ou não.

Em uma economia altamente instável, com inflação de quase 13% ao mês e 138% em um ano, às vésperas de uma eleição presidencial que pode provocar mudanças profundas na cena política, esse é o jeito para manter o poder de compra na Argentina.

Os malabarismos para um argentino ter a vida financeira nos eixos, no entanto, são elaborados. Na empresa de e-commerce em que trabalha, o salário de González, de 26 anos, é de cerca de 550 mil pesos (R$ 3 mil na cotação do mercado paralelo). Em novembro, passará a ganhar 20% mais, com o terceiro reajuste que receberá só neste ano.

As correções, no entanto, são insuficientes. “Hoje ganho praticamente a metade em dólares do que ganhava quando comecei neste trabalho, há um ano”, contou ao InfoMoney.

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Para não perder poder aquisitivo com a inflação acelerada, assim que o salário cai na conta González paga a fatura do cartão de crédito, faz compras no supermercado para as duas semanas seguintes e adquire os materiais necessários para reformar uma propriedade de sua mãe, onde mora.

Depois, como muitos dos seus conhecidos, González transfere recursos para a conta digital remunerada mais famosa no país. Lá, o dinheiro parado rende cerca de 100% ao ano. Se parece muito, é bom lembrar que a taxa básica de juros da Argentina é de 133% atualmente, enquanto a Selic brasileira está em 12,75%.

Devido à liquidez imediata, a conta digital é vista pela população – traumatizada por constantes crises e um confisco bancário em 2001 – com melhores olhos do que outros investimentos de renda fixa.

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Da conta remunerada para o “dólar bolsa”  e as “cuevas”

O que sobra o engenheiro troca por dólares, que junta em casa para proteger as economias. “Compro logo, porque no fim do mês o peso sempre vai estar valendo menos. Se precisar de 50 ou 100 mil pesos mais, você vende parte dos dólares que comprou”, diz.

Até alguns meses atrás, González conseguia ter acesso aos 200 dólares que os argentinos podem comprar legalmente no banco pelo câmbio oficial (365 pesos por dólar). Mas depois que sua empresa recebeu um auxílio do governo, os trabalhadores foram impedidos de obter a moeda americana dessa forma.

Por isso, ele compra o chamado “dólar bolsa” ou “dólar MEP”. A operação implica em comprar títulos financeiros ou ações usando pesos e depois vendê-los em dólares, com a intermediação de uma corretora de valores.

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Os dólares obtidos na venda podem ser sacados depois de 24 horas em agência bancária. A cotação do “dólar bolsa” (cerca de 884 pesos) é próxima à do mercado paralelo (985 pesos), porém a operação é legal e mais vantajosa.

Outra opção são casas de câmbio, ou “cuevas”. Elas operam ilegalmente devido a restrições à compra de divisas impostas no final da presidência de Mauricio Macri, em 2019. Na época, a vitória do atual presidente, Alberto Fernández, nas eleições provocou uma disparada do dólar.

“Tenho gente conhecida nas ‘cuevas’, consigo bons preços e eles entregam em casa”, diz González. É uma alternativa para não ter de esperar as 24h do “dólar bolsa”, nem correr o risco de receber do banco notas velhas ou de valores diferentes de US$ 100.

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Na Argentina, a taxa de câmbio das “cuevas” para notas de US$ 100 antigas – apelidadas de “cara chica”, já que o rosto de Benjamin Franklin estampado nelas é menor do que nas cédulas novas – ou de valores como US$ 50 ou US$ 20 é pior.

Engenharia financeira para driblar a inflação

Tanta engenharia financeira, no entanto, tem ficado encostada nos últimos tempos. “Comprei pouquíssimos dólares neste ano, pois gasto o que entra”, conta González. “Saio uma ou duas vezes por semana para bares ou baladas, só uso ônibus, cozinho e sempre procuro descontos para o dinheiro render. Sempre tive esse hábito”.

Solteiro e sem filhos, ele paga aluguel para a própria mãe, reajustando o valor só quando o salário aumenta – e não anualmente, como é o padrão, seguindo um índice imobiliário determinado pelo Banco Central. Neste ano, viajou para Montevidéu e Rio de Janeiro para ver os jogos do Argentinos Juniors, seu time do coração, sem mexer nas economias. Se não precisasse reformar a casa, conseguiria economizar 100 ou 200 dólares todo mês, calcula.

Catalina, a paisagista, de 62 anos, diz que também não tem conseguido guardar em dólares tanto quanto costumava. Hoje, ela recebe cerca de 550 mil pesos por mês cuidando dos jardins de cerca de 20 edifícios, montando jardins verticais em domicílios e recebendo auxílios governamentais por ter um filho com deficiência. A floricultura, aberta há quatro anos, ainda não dá lucro.

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Catalina Banach, 62, dona de uma floricultura em Buenos Aires (Foto: Luciana Taddeo)

A maior parte dos gastos são com o plano de saúde do filho, que tem uma doença cardíaca. “É a primeira coisa que pago todo mês, para não haver nenhum tipo de problema no caso de uma urgência. São pelo menos 100 mil pesos”, conta. Outros 300 mil pesos vão para seu próprio plano de saúde, comida, seguros, impostos. “O que sobra, uso para gastos extras”.

Sua rotina financeira não é tão sistematizada quanto a de González, já que seus clientes pagam as faturas em momentos diferentes. Mas o que entra também vai para a conta digital remunerada e para a compra 100 ou 200 dólares por mês. “Fiquei viúva, tive um ano caótico e ultimamente só tenho conseguido guardar 50 dólares”, diz.

Como recebe auxílio governamental, Catalina também não pode comprar os 200 dólares liberados para os argentinos no câmbio oficial. Por isso, frequenta as “cuevas” ou adquire a moeda de uma vizinha. Seu filho, de 19 anos, anda preocupado por viver a sua primeira crise financeira grave no país. “Podemos comer carne, ir a uma cafeteria, fazer uma viagem. Está tudo bem”, costuma dizer a ele.

Assim como ela, González já não se apavora com momentos de instabilidade – como o da semana passada, quando o dólar ultrapassou 1.000 pesos pela primeira vez no mercado paralelo. “Não me assusta, o que me provoca é dor, pena”, lamenta.

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Calejados, ambos sempre economizaram em dólares. Quando criança, González pedia que os “presentes” em dinheiro da família fossem trocados por dólares. “Quando tinha 8 anos, 1 dólar valia 3 pesos”, diz. Catalina segue a tradição familiar consolidada ao longo das consecutivas crises das últimas décadas.

Eleições à vista – mudanças também?

Apesar da eleição presidencial deste domingo (22), a perspectiva não é de melhores dias para os dois argentinos. González, que já votou na sigla macrista Juntos por el Cambio, diz que vai de voto em branco dessa vez.

A proposta de dolarização de Javier Milei [candidato de extrema-direita] me dá muito medo, mas as propostas dos outros também não me convencem”, diz. “Com Massa, o dólar sobe 20% em um dia, o que também dá medo. Aconteça o que acontecer, não acho que vamos estar melhor”.

Já Catalina votará em Patricia Bullrich, candidata de direita da sigla macrista. “Não gosto dela, mas é em quem dá para votar”, diz. “Meu filho, como toda a juventude, vai votar no Milei, porque dizem que já conhecem os políticos tradicionais e querem algo diferente. Mas pela minha experiência, tenho medo, não gosto das propostas dele”.

No mar de dúvidas sobre os rumos da economia local, a única certeza é que nem Catalina nem González guardarão dinheiro nos bancos. “Vocês, brasileiros, acham perigoso ter dinheiro em casa. Para nós, perigoso é ter dinheiro depositado no banco”, diz o engenheiro, escancarando o trauma histórico que ainda assombra e molda a vida financeira dos argentinos.

* Nome fictício a pedido do entrevistado.