Lula sugere moeda comum entre países do Mercosul e fala em criar as condições para BNDES financiar gasoduto na Argentina

Ideia de moeda comum ainda é incipiente e não substituiria as moedas nacionais - o real, no Brasil, e o peso, na Argentina

Marcos Mortari

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Em visita à Argentina, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) defendeu, nesta segunda-feira (23), a implementação de uma moeda comum para operações de comércio exterior com o país-vizinho e disse que os respectivos ministros de Fazenda estão trabalhando para apresentar uma proposta.

As declarações foram dadas ao lado do presidente argentino, Alberto Fernández, após encontro bilateral em Buenos Aires. Esta é a primeira viagem internacional de Lula após tomar posse pela terceira vez como presidente do Brasil. O gesto reforça a proximidade entre os governos e a importância que o novo governo dá política e economicamente ao país-vizinho.

Respondendo a jornalistas, Lula sugeriu que se tentasse criar uma moeda comum entre países do Mercosul, de modo a reduzir a dependência do dólar em negócios regionais. O presidente lembrou que Brasil e Argentina já tentaram movimento similar de fazer comércio com as moedas locais, mas ele classificou a experiência como “tímida” por ser uma decisão optativa, e não impositiva.

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“O que estamos tentamos trabalhar agora é que nossos ministros da Fazenda, cada um com sua equipe econômica, possa nos fazer uma proposta de comércio exterior e de transações entre os dois países que seja feita em uma moeda comum, a ser construída com muitos debates e muitas reuniões”, disse.

“Se dependesse de mim, a gente teria comércio exterior sempre nas moedas dos outros países, para não precisar ficar dependendo do dólar. Por que não tentar criar uma moeda comum entre os países do Mercosul? Por que não tentar criar uma moeda comum como se tentou entre os países dos BRICS? Acho que, com o tempo, isso vai acontecer. E acho que é necessário que aconteça. Muitas vezes, há países que têm dificuldade de adquirir o dólar, e você pode fazer acordos, estabelecer um tipo de moeda para o comércio, que os Bancos Centrais todo mês ou de quanto em quanto tempo quiserem, façam um acerto de contas para que os dois países possam continuar fazendo negócio”, argumentou.

O movimento para a criação de uma moeda comum ainda é incipiente (e visto com muita desconfiança entre atores políticos e agentes econômicos), mas gerou muita polêmica. A ideia dos governos, no entanto, não é substituir as moedas locais – o real no Brasil e o peso na Argentina -, mas reduzir a dependência no dólar para a realização de comércio entre os dois países.

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“Eu não estranho a curiosidade que uma discussão como essa apresenta. Tudo que é novo causa estranheza. E tudo que é novo precisa ser testado. Porque nós não podemos, no meio do século XXI, continuar fazendo a mesma coisa que fazíamos no século XX. Deus queira que os nossos ministros da área econômica, os presidentes dos Bancos Centrais, tenham a inteligência, a competência e sensatez necessárias para darmos um salto de qualidade nas nossas relações comerciais e financeiras”, afirmou.

O presidente argentino Alberto Fernández admitiu que o assunto, já discutido em outras oportunidades, não avançou por entraves técnicos. “A verdade é que não sabemos como poderia funcionar uma moeda comum entre Argentina e Brasil. Tampouco sabemos como funcionaria uma moeda comum na região. Mas o que sabemos é como funcionam as economias dependendo de moedas estrangeiras para poder fazer comércio. E sabemos como isso é nocivo”, disse.

“Se não tivermos a coragem de mudar, vamos continuar padecendo dos meus males. E é necessário que aprofundemos os vínculos entre Brasil e Argentina, porque esse vínculo vai motorizar todas as relações da América Latina”, reforçou.

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As notícias ajudam a gerar um ambiente político mais favorável a Fernández no plano doméstico. O presidente argentino deve disputar a reeleição neste ano, mas conta com índices de popularidade desafiadores, que chegaram a apresentar alguma melhora na virada do ano – possivelmente embalados em parte pela emoção local provocada pela conquista da Copa do Mundo.

A volta do BNDES

Lula também indicou interesse em resgatar o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) no financiamento de empreendimentos na região “dentro das possibilidades econômicas” do Brasil, mas não entrou em detalhes sobre como se daria o processo. Ele citou a construção de um gasoduto saindo de Vaca Muerta, segunda maior reserva do mundo de gás de xisto e a quarta de petróleo não convencional, localizado na província de Neuquén, na Patagônia argentina.

“Tenho certeza [de] que os empresários brasileiros têm interesse no gasoduto. Certamente os empresários brasileiros têm interesse nos fertilizantes que a Argentina tem. Tenho certeza que os empresários brasileiros têm interesse no conhecimento científico e tecnológico da Argentina. E, se há interesse dos empresários e há interesse do governo e temos um banco de desenvolvimento para isso, vamos criar as condições para fazer o financiamento que pudermos fazer para ajudar o gasoduto argentino”, disse Lula.

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O presidente brasileiro disse que tem “orgulho de quando o BNDES tinha mais recursos que o Banco Mundial” e podia financiar uma obra num país da América do Sul ou da África. “É isso que os países maiores têm que fazer para auxiliar os países que têm menos condições em determinados momentos históricos”, justificou.

Durante seus dois primeiros mandatos, Lula expandiu o uso do banco público, que na prática chegou a exercer papel de instrumento da política externa. O tema é frequentemente explorado pela oposição aos governos petistas como o uso de recursos de cidadãos brasileiros para financiar o desenvolvimento em países politicamente alinhados.

Nas última campanha eleitoral, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), à época candidato à reeleição, dedicou parte importante de suas propagandas no rádio e na televisão e mesmo participações em debate para criticar a participação do BNDES em investimentos na Venezuela e em Cuba, em detrimentos a carências locais. Já Lula criticava a política de redução orçamento do banco público, que nos últimos anos precisou devolver recursos ao Tesouro Nacional.

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Defensores da posição “expansionista” do banco público no passado alegam que tal política ajuda na projeção de empresas brasileiras no exterior e aumenta o poder de influência brasileira na cena política internacional. Ganho de companhias nacionais no exterior pode, sob este argumento, gerar retornos favoráveis para o país e a população.

“De vez em quando, no Brasil, nós somos criticados por pura ignorância. Pessoas que acham que não pode haver financiamento de engenharia para outros países. Acho não só que pode, como é necessário o Brasil ajudar todos os seus parceiros. E é isso que vamos fazer, dentro das possibilidades econômicas do nosso país”, disse Lula.

“O BNDES é muito grande. Durante a crise de 2008, se não fossem o BNDES e os bancos públicos, a economia brasileira teria quebrado. Foi graças ao financiamento de R$ 500 bilhões que o BNDES colocou para o nosso crescimento econômico, que o Brasil foi o último país a entrar na crise e o primeiro a sair”, prosseguiu.

“Dia de celebração”

Em sua primeira viagem internacional desde voltou à Presidência da República após um hiato de 12 anos, Lula disse que hoje era dia de “celebração” entre Brasil e Argentina. “Hoje é a retomada de uma relação que nunca deveria ter sido truncada”, disse.

“Nós vamos reconstruir aquela relação de paz, produtiva, avançada de dois países que nasceram para crescer, se desenvolver e gerar melhores condições de vida para seus povos”, continuou.

Durante a declaração à imprensa, Lula agradeceu o apoio de Fernández em momentos difíceis de sua vida, como a prisão em razão de condenação em segunda instância no caso do tríplex do Guarujá (SP) – que acabou anulada posteriormente pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

E pediu desculpas ao povo argentino e ao seu homólogo no país-vizinho pela “grosserias” do antecessor, Jair Bolsonaro (PL). “Um país que tem a grandeza do Brasil, que tem a extensão territorial do Brasil, que tem 16 mil km de fronteira com a nossa querida América do Sul, que é maior economicamente e industrialmente, não tem o direito de ficar procurando inimigos. Precisamos construir amigos”, disse.

“O Brasil está outra vez de braços abertos para acolher os companheiros argentinos: nos negócios, na cultura, no futebol e na manutenção da relação de amizade que temos há tantos anos”, declarou. “A Argentina será tratada com o carinho e o respeito que sempre mereceu e que nem o futebol será motivo para nos dividir”.

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Marcos Mortari

Responsável pela cobertura de política do InfoMoney, coordena o levantamento Barômetro do Poder, apresenta o programa Conexão Brasília e o podcast Frequência Política.