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Depois dos eventos na Europa em 2011 e 2012, quando a crise da chamada “periferia europeia” – que, paradoxalmente, compreendia nada menos do que a terceira e quarta maiores economias do bloco – quase levou à implosão da Zona do Euro, seria de se esperar que propostas sobre unificação monetária fossem formuladas não só com o mínimo de cuidado, mas principalmente levando em conta as lições de um evento que ocorreu praticamente ontem.
Não é o caso da proposta de criação de um moeda sul-americana por Fernando Haddad e Gabriel Galípolo. Se alguma coisa impressiona no artigo por ambos cometido nas páginas da Folha de S. Paulo é a desconsideração esforçada acerca de tudo que foi aprendido sobre a crise europeia, boa parte de que, diga-se, já fazia parte da sabedoria convencional a partir do trabalho original de Robert Mundell sobre áreas monetárias ótimas.
Embora os autores apresentem a sugestão como forma de acelerar a integração comercial e econômica da América do Sul (mais a respeito logo abaixo), a preocupação mal disfarçada é o receio com a posição dominante do dólar no sistema monetário internacional, ainda mais à luz das sanções recentemente impostas à Rússia.
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A ideia, portanto, seria a criação de uma moeda sul-americana (por eles apelidada de SUR) que permitisse aos países da região contar com uma alternativa ao dólar (e, presumivelmente, ao euro também) e, assim, se proteger de medidas similares às impostas à Rússia.
O antiamericanismo latente não chega a ser surpreendente num mundo em que boa parte da esquerda nacional mal contém a simpatia para com a invasão russa da Ucrânia, como, por exemplo, o ex-presidente Lula, que trata como iguais o invasor e o invadido, sem deixar de colocar a culpa do conflito na Otan.
Apesar de a motivação real ser o antiamericanismo, os autores tentam vender a ideia como mecanismo de aceleração da integração regional. E aí, ignoram todas as lições da crise europeia.
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A adoção do euro em 1999 foi pensada como o pico de um processo de integração comercial e econômica na Europa, que se iniciara quase 50 anos antes, com a criação da CECA (Comunidade Econômica do Carvão e Aço), embrião de vários acordos que foram levando gradualmente à maior integração.
Primeiro por meio da criação de uma área de livre comércio, seguida de união aduaneira, liberdade de movimento de pessoas, criação de mecanismos de governança supranacional e harmonização de políticas macroeconômicas (os limites de dívida e déficits), para citar apenas alguns dos passos adotados entre 1951 e 1999.
Ainda assim, na esteira da crise financeira de 2008, as falhas na construção da moeda única ficaram evidentes.
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A despeito da liberdade de movimentação de pessoas, ficou evidente que o mercado de trabalho não era integrado, com taxas de desemprego elevadas na “periferia” convivendo com taxas substancialmente menores em países como a Alemanha.
O mercado de trabalho regionalmente segmentado não era compatível com uma moeda única, exatamente como alertado por Mundell em 1961, ponto aliás destacado de forma profética por Milton Friedman em 1998.
Adicionalmente, a harmonização das políticas macroeconômicas existia no papel, mas não na prática, como mostrado pela situação fiscal grega, mais do que em qualquer outro país.
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A inexistência, exatamente por este motivo, de mecanismos de transferência de recursos entre áreas (pense, por exemplo, no repasse de Imposto de Renda no Brasil), também desafiou a existência da moeda única.
Face a um choque assimétrico (fuga de capitais da “periferia” para o “centro”), a recessão fez as receitas tributárias minguarem e despesas explodirem, agravando a questão fiscal na “periferia”, cuja dívida rapidamente se viu sujeita a questionamentos acerca de sua sustentabilidade.
Não havia também integração financeira. Bancos “periféricos”, afetados pela combinação mortal de queda de qualidade de seus empréstimos (por força da recessão) e dos próprios títulos de seus governos, teriam que ser resgatados pelos governos nacionais, realimentando a própria crise fiscal.
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Em suma, mesmo depois de cinco décadas de acordos, reformas, crises cambiais, crises políticas etc., o euro, como construção institucional, se mostrou despreparado para lidar com eventos de 2011-12. Como resultado, sua adoção precipitada por pouco não reverteu décadas de penosa construção institucional.
Apesar disso, os autores acreditam que podemos literalmente botar o carro na frente dos bois e partir para integração monetária sem ter cuidado de nenhum dos passos anteriores.
O Mercosul, por exemplo, supostamente uma união alfandegária, é um arremedo de área de livre comércio, onde abundam restrições de toda sorte. Não há livre movimentação de pessoas, nem, claro, integração dos mercados de trabalho, muito menos financeira.
Pensar em harmonização das políticas macroeconômicas é uma brincadeira de mau gosto num continente em que convivem, por um lado, Chile, Colômbia e Uruguai, e, pelo outro, Argentina e Venezuela, notando que, no espectro da região, mais países se alinham a estes últimos do que aos primeiros.
Trata-se de ambiente fértil para corridas cambiais. Não faltam candidatos a políticas macroeconômicas equivocadas ou má gestão de riscos bancários, para não falar dos azares dos mercados de commodities. Qualquer um destes motivos pode deflagrar uma corrida contra a moeda de um desses países. E aí?
Se tiver adotado o SUR, os demais terão que botar suas reservas na roda para sustentar o problemático? Se não, será que reservas denominadas em SUR oferecerão a mesma proteção que o dólar, o euro ou o iene? Haverá mercados de capitais profundos o suficiente para oferecer os ativos em SUR?
As perguntas acima são obviamente retóricas (as respostas, caso queiram saber, são “não”, “não” e “não”).
A verdade é que a adoção de uma moeda comum é, como pensado (mas não plenamente executado) no caso do euro, a culminação dos esforços de integração; jamais um acelerador.
Sim, bem sei que a tentação por atalhos é demasiada: todo mundo acredita ter uma ideia brilhante, como foi a URV no caso do Plano Real, que resolveria problemas sem a necessidade de um processo lento, intelectualmente trabalhoso e politicamente complicado.
A realidade, porém, aí está para mostrar que todas soluções simples para problemas complexos terminam em sangue, suor e lágrimas, geralmente as nossas.
No final das contas, o antiamericanismo primitivo é base teórica muito pobre para uma tarefa que, para ser bem feita, demanda muito mais do que os autores têm a oferecer.