A mágica do investidor no futebol

O futebol vive um período peculiar, que mescla euforia, oportunidade, desespero e oportunismo. No lugar de pragmatismo e ações organizadas, é sempre mais fácil partir para soluções mágicas, que resolvem o problema hoje, mas deixam buracos que durarão uma eternidade

Cesar Grafietti

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(Getty Images)
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Reza a lenda que o futebol brasileiro é um mar de oportunidades para investidores ávidos por formas de ganhar dinheiro, mas essencialmente participar do maravilhoso mundo do futebol pentacampeão mundial. O único, aliás!

E então a lenda vai crescendo apoiada em diversas variações sobre o mesmo tema, e com o apoio de muitos ilusionistas. Tem muita gente que cai na conversa fácil. Afinal, quem nunca comprou o Cristo Redentor, a Estátua da Liberdade ou a Torre Eiffel? Há sempre alguém pronto a fazer uma proposta tentadora e irrecusável para alguém buscando oportunidades.

Os últimos dias têm sido bastante movimentados em termos de criatividade. Surgiu investidor árabe em associação, teve gente que já apurou um desconto em dívida bilionária de clube e ainda garantiu que as receitas possibilitam um payback do investimento em poucos anos. Vimos também empresas desconhecidas querendo tomar o lugar de gigantes mundiais a partir de investimento em futebol.

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Tudo bem, tudo certo. Mas vamos com calma. Infelizmente, é mais fácil no papel e nas declarações que na prática.

Então vamos aos fatos: ninguém precisa de SAF para ser um clube corporativo, como mostram os casos do Red Bull Bragantino e do Cuiabá, empresas antes da Sociedade Anônima do Futebol. Mas é claro que a SAF trouxe algumas evoluções, como a equidade fiscal, e uma série de benesses para quem quer tentar aplicar uma reestruturação unilateral.

Ou seja, a SAF é apenas um instrumento que pode proporcionar a chegada de novos donos aos clubes ou permitir uma tentativa de reestruturação forçada das dívidas. No primeiro caso, quando o processo for feito de forma ética e transparente, há boas chances de dar certo. Porque se não for, migrará naturalmente para a segunda possibilidade. Daí, pode ter certeza de que teremos uma enxurrada de discussões nos tribunais, colocando em risco a tese da SAF. Natural para uma lei escrita de uma forma a transferir ao Judiciário sua aplicação.

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Quando alguém te disser que um clube que deve R$ 1 bilhão pode transformar a dívida em R$ 600 milhões e com uma receita de R$ 200 milhões conseguirá um payback (retorno) do investimento em cinco anos, pode anotar: não tem a menor ideia do que está dizendo, mas está tentando te vender a Golden Gate.

Primeiro, porque parte do princípio de que a renegociação da dívida será bem-sucedida e o clube conseguirá 40% de desconto no total. Sem nem saber qual a composição da dívida, o que pode ou não ser renegociado e reduzido, se os credores terão paciência e boa-vontade para negociações, ainda mais se o processo de constituição da SAF for feito sem consulta prévia aos credores.

Outro tema são as dívidas com clubes que acabam gerando processos e sanções na Fifa. Essas dívidas não podem permanecer na associação e sem pagamento, pois o novo clube, no caso a SAF, é sucessor, conforme jurisprudência de uma decisão da entidade no caso do CSKA Sofia, que quebrou e recomeçou como um novo clube. Neste processo, as dívidas ficaram no clube quebrado e o novo começou “limpo”. Mas a entidade entendeu que um era sucessor do outro em relação às dívidas esportivas. Logo, permaneceu punido até o pagamento total dos débitos com outros clubes, agentes e atletas.

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Considerou esta condição na conta? Não, claro que não. E quando isso ocorrer será mais um ponto a favor do credor que ficou no ativo podre.

Para piorar, a lei da SAF indica que o novo clube deve remeter até 20% das receitas para pagar as dívidas. Então, se tudo funcionar eticamente, o clube de R$ 200 milhões com R$ 1 bilhão de dívidas precisa enviar R$ 40 milhões anuais para pagar contas da associação. Logo, sobram R$ 160 milhões. Esse dinheiro não vai para o novo dono da SAF, mas para pagar as despesas correntes. Sabemos que sobra pouco para que o clube consiga se manter competitivo, ainda mais num mercado em que clubes já estão faturando acima de R$ 400 milhões. Logo, falar em payback considerando as receitas totais é meio sem sentido. Mas você acreditou e agora é feliz proprietário do Cristo Redentor!

Nem vou falar sobre o sonhado crescimento vertiginoso de receitas, pois já mostrei em várias análises e artigos que eles não existem. Nem vendendo NFT, fan-token e todas essas invenções para pegar desavisados. Não é daí que vem dinheiro relevante. Mas, se você acreditou nisso, então provavelmente já deve ter comprado o direito de nomear uma estrela, numa das ideias mais fantásticas da história dos golpes de ilusão. Nem David Copperfield ou Harry Houdini faria melhor. Mas ok, a estrela está lá em algum canto do espaço e tem seu nome.

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Ah, claro, já ia esquecendo: o investidor compra um clube numa situação complexa e vai conseguir tudo isso pagando quanto? Além de pagar – se é que vale alguma coisa – ainda precisa colocar dinheiro para reconstruí-lo. Ou vai seguir sonhando em ser campeão mundial com a estrutura atual?

Logo, antes de pensar em retorno, o novo dono vai precisar colocar a mão no bolso e gastar um bom dinheiro para qualificar a equipe. Lembra do payback em cinco anos? Pois é, acho que não vai dar.

Deixe-me lembrar uma coisa. Investimento em clube de futebol tem duas formas de gerar retorno ao investidor: negociando direitos de atletas e/ou comprando barato e vendendo caro. Não tem saída de caixa, pagamento de dividendos. Se fizer isso, o clube perde capacidade competitiva. Mas para que haja revenda futura é preciso que haja um mercado. Não há e vai demorar um bocado.

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Na Inglaterra, há raríssimos casos de sucesso no investimento, simplesmente porque o novo dono compra barato, consegue valorizar o clube, mas perde o timing da venda, porque é bacana ser dono de clube de futebol e há sempre a chance de subir um pouco mais na tabela de classificação, chegar na Champions League e por aí vai. Falta sangue frio e disciplina.

Mas nesses dias, não é só a SAF que vai salvar o futebol e tornar investidores milionários. Os clubes associativos resolveram resgatar uma figura tradicional do nosso futebol, o “investidor”. É o curioso caso de repetir experiências que deram errado esperando que deem certo agora.

Surge então o investidor (árabe, brasileiro, chinês, americano ou outra nacionalidade qualquer que esteja na moda) que vai pagar a contratação e os salários de um atleta que venha reforçar o time e mudá-lo de patamar. Você já ouviu isto, e se não estou enganado, associado a nomes como Ricardinho, Leandro Damião, Centurión e Daniel Alves, por exemplo.

O mais curioso é que ninguém faz as perguntas certas em relação ao tema: i) qual o interesse do investidor?; ii) como ele será remunerado?; iii) qual a garantia de que ele pagará tudo até o final?; iv) será uma doação, um empréstimo ou estará fora do balanço do clube?; v) envolve valores referentes a outros atletas?; vi) se for um empréstimo, qual o custo e o prazo de pagamento?; vii) o clube dá garantias adicionais?

Vamos lá, não tem almoço de graça. O pessoal lembra do caso Paulo Nobre no Palmeiras, mas ele era presidente do clube, tinha a gestão nas mãos e organizou uma operação de empréstimo com estrutura de pagamento. O caso dos Menin com o Atlético Mineiro também é de empréstimo e, ainda que não tenha fluxo e estrutura de pagamentos, existe um projeto por trás, além de influência na gestão. Posso discordar do método e ter dúvidas sobre o resultado, mas não é um investidor qualquer.

E nem me fale no uso da imagem. O único caso que funcionou sob esta condição foi a relação entre Ronaldo e Corinthians, e porque Ronaldo é um só. O resto foram tentativas infrutíferas. Mesmo o Corinthians e a relação com a Taunsa para pagamento da remuneração do Paulinho é algo que precisa ser bem estudado, porque o projeto da empresa é, no mínimo, arrojado. Mas como fizeram, logo vem outro clube buscar a mesma coisa, caso do São Paulo com Douglas Costa.

O futebol vive um período peculiar, que mescla euforia, oportunidade, desespero e oportunismo. No lugar de pragmatismo e ações organizadas, é sempre mais fácil partir para soluções mágicas, que resolvem o problema hoje, mas deixam buracos que durarão uma eternidade. Tem quem compre nome de estrela, mas também quem prefira se aproximar de buracos negros. Está faltando admirar o céu com os pés no chão.

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Cesar Grafietti

Economista, especialista em Banking e Gestão & Finanças do Esporte. 27 anos de mercado financeiro analisando o dia-a-dia da economia real. Twitter: @cesargrafietti