Como tornar viável um planeta pós-petróleo?
Apesar de todo o senso de urgência destilado na COP26, existem obstáculos a uma transição energética global
A maior representação nacional presente na COP26, a conferência do clima realizada em Glasgow no início de novembro, foi a brasileira. Mas havia um grupo ainda maior, mesmo que não oficialmente organizado, tentando se fazer ouvir nas negociações: a indústria do petróleo.
Os 503 lobistas das petroleiras superaram os 479 integrantes da delegação brasileira. Oficialmente, não tinham lugar à mesa, mas o objetivo deles era defender com unhas e dentes uma sobrevida dos combustíveis fósseis.
A COP26 colocou em relevo uma realidade que só os negacionistas mais renitentes não se dispõem a aceitar: para evitar as consequências mais graves — e imprevisíveis — do aquecimento global, o mundo precisa agir logo. Isso significa acabar com o desmatamento, fazer adaptações urgentes para proteger as populações mais vulneráveis e acelerar a transição energética.
A pressão sobre os produtores e os consumidores de combustíveis fósseis nunca foi tão grande. O Engine No. 1, um pequeno fundo ativista americano, orquestrou uma campanha de Davi contra Golias contra a ExxonMobil e conseguiu três assentos no conselho de administração da maior empresa de petróleo do mundo. “Nossa esperança é que a Exxon olhe não somente para os próximos um ou dois anos, mas também para como vai ter sucesso em cinco, dez ou 15”, disse a CEO do Engine No.1, Jennifer Grancio.
Pode parecer um horizonte curto para uma empresa cuja história começou em 1870, mas as mudanças estão acontecendo rapidamente. Um grupo de seis países, liderado por Dinamarca e Costa Rica, anunciou na COP26 o compromisso de reduzir a produção de óleo e gás imediatamente e a não dar início a novos projetos de exploração.
“Nossos objetivos e ambições não são modestos”, disse o ministro da Energia dinamarquês, Dan Jorgensen. “Esperamos que hoje marque o começo do fim do petróleo e do gás.”
Os sinais já aparecem nas ruas dos países ricos. O carro mais vendido na Europa em setembro foi o Tesla Model 3. A partir de 2025, a venda de carros a combustão será proibida na Noruega. Cinco anos depois, a mesma medida entrará em vigor na vizinha Suécia e também na Irlanda e na Holanda. Na bolsa, a Tesla vale mais do que as nove maiores montadoras do mundo. Veículos leves representam cerca de um quarto do total do petróleo consumido globalmente.
Acreditar que os carros elétricos representam o fim do petróleo é um engano
Fatih Birol, presidente da Agência Internacional de Energia
É uma fatia relevante, mas “acreditar que os carros elétricos representem o fim do petróleo é um engano”, diz o presidente da Agência Internacional de Energia, Fatih Birol. Na primeira metade de 2021 foram vendidos 2,6 milhões de carros elétricos. Estima-se que a frota mundial seja de 1,2 bilhão. E a eletrificação não será a solução para caminhões, ônibus (com exceção dos municipais), navios e aviões.
No transporte terrestre, um dos principais obstáculos é a necessidade de recarregar as baterias com rapidez. No ar e no mar, existe um problema adicional: o peso das baterias. Uma das apostas para substituir o petróleo é a água. Ou quase isso: trata-se do hidrogênio verde (H2V), produzido por meio da eletrólise da água.
Com a adição de energia limpa e um processo eletroquímico conhecido há dois séculos, é possível separar as moléculas de hidrogênio das de oxigênio. Comprimido em forma gasosa ou líquida, o combustível é colocado em tanques, e células de combustível fazem o processo inverso. O resultado é energia elétrica — que vai movimentar o motor — e vapor de água saindo pelo escapamento.
No início de novembro, a Embraer anunciou quatro modelos-conceito de aeronaves para um futuro pós-petróleo. Dois deles usam hidrogênio como fonte de energia. A expectativa da empresa é que a tecnologia esteja madura o bastante para que os primeiros voos comerciais ocorram em 15 anos. “Os aviões de pequeno porte serão uma prova de conceito [das inovações], que depois serão estendidas às aeronaves maiores”, afirmou Arjan Meijer, CEO da Embraer Aviação Comercial.
O potencial brasileiro
Além do desafio técnico, será necessário baratear a produção do H2V. Um quilo de hidrogênio verde obtido por eletrólise hoje custa cerca de US$ 5. Estima-se que ele seja competitivo na faixa de US$ 1,50. A boa notícia é que o Brasil reúne as condições ideais para produzir o H2V. Já existem diversos estudos para a instalação de unidades produtivas no Nordeste.
Se concretizados, os investimentos passariam de US$ 20 bilhões. “O Brasil tem plenas condições de ser líder nessa nova commodity energética”, diz um estudo do Coppe, centro de estudos de energia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Os compradores estão principalmente na Europa. Um dos projetos em avaliação é a construção de uma planta junto ao Porto de Pecém, no Ceará, e a produção seria destinada essencialmente à exportação.
“De um ano para cá, o interesse no hidrogênio explodiu”, diz Emilio Matsumura, presidente da consultoria E+ Transição Energética. Além do uso potencial nos transportes, o H2V pode substituir o gás natural e até mesmo o carvão em indústrias pesadas, como siderurgia e cimento.
Mas a produção em grandes volumes ainda deve demorar em todo o mundo e, assim, o petróleo deve resistir. Segundo a Energy Information Administration, uma agência do governo americano, pouco mais de 84% de toda a energia consumida no planeta vem de combustíveis fósseis.
Em 2050, quando o mundo deveria atingir a neutralidade de carbono prometida no Acordo de Paris, esse percentual ainda será de 70%. O mundo como o conhecemos hoje foi construído em torno da infraestrutura do petróleo. E o dinheiro continua perseguindo o ouro negro.
Segundo um levantamento da Pitchbook, uma companhia que acompanha investimentos privados, fundos de private equity colocaram US$ 1,1 trilhão no setor de energia nos últimos dez anos — e somente 12% dessa montanha de dinheiro foi para iniciativas renováveis.
A Noruega é um dos países que têm uma relação única com o petróleo. A exploração das reservas offshore do Mar do Norte rendeu o maior fundo soberano do mundo, de US$ 1,4 trilhão. Ao mesmo tempo, o país tem uma das políticas de descarbonização mais agressivas do mundo.
O recém-eleito premiê do país, Jonas Gahr, afirmou numa entrevista recente que os combustíveis fósseis são um paradoxo. Sem petróleo, disse Gahr, não é possível realizar a transição para uma economia verde.
Ou seja: o mundo pós-petróleo pode estar no horizonte, mas até lá ainda vamos queimar muita gasolina.
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